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Editorial

Capitulação ou Altivez?

Harley E. A. Bicas

DOI: 10.1590/S0004-27492000000300001

EDITORIAL

Capitulação ou Altivez?

 

Harley E. A. Bicas

 

 

Entre as expressões culturais que mais caracteristicamente identificam uma associação humana, a linguagem se sobressai como uma das mais importantes, talvez a mais necessária. De fato, como instrumento pelo qual se faz a transmissão inter-pessoal de conhecimentos, a preservação social de valores e a comunicação de experiências existenciais, a palavra falada e a escrita simbolizam a comunhão dos que as utilizam, convertendo-os em usuários de uma só "voz". Tem sido assim, tanto para comunidades restritas como torcidas organizadas (com seus hinos próprios e "palavras de ordem"), quanto para a multidiversidade de grupamentos sociais, formando nações. Todas são ciosas das formas particulares de entendimento entre seus membros, criando-lhes até novas especificidades (sinais gráficos e gestuais, gírias, etc.) para melhor julgar comprometimentos de inserção tribal e reduzir as possibilidades de intromissões indesejadas.

Enfim, aquilo a que chamamos língua, conservando-se através de gerações é, provavelmente, o mais refinado patrimônio cultural de um povo, sua distinção e espelho. É por ela que se mostram as mais delicadas formas de sua alma, só acessível aos que a compreendem na intimidade. É com ela que se canta a cantiga de ninar aos filhos e depois aos netos e se lhes ensina a vida. É dela com que são feitos os sonhos e as poesias. Um símbolo de respeito e carinho. Um totem.

Mas há uma outra língua e é a do comércio. Não a do coração e dos afetos, mas a da razão e das forças e também, por isso, importante. É com ela que se apresentam mercadorias e são feitas trocas, tudo igualmente necessário e conveniente. É nessa forma de comunicação que um dá conhecimento do que tem para que outro disso tome consciência. A convenção, todavia, é que prevaleça, como instrumento de expressão, a língua do dominador. Yes, we have bananas.

Em Ciência, propriamente dita, fonte de tecnologia mas alimentada, ela também, por investimentos, há toda uma dependência do poder econômico. Numa roda viva, ciência gera conhecimento ou produto (tecnologia), que gera dinheiro, que gera ciência. E ainda que a criação intelectual seja a propulsora do movimento, para mantê-lo com eficácia vão longe os tempos românticos em que bastava a centelha da inspiração e uns poucos recursos materiais. Por isso, também em Ciência, a língua é a do domínio comercial, agora o inglês. Como já foi o francês e, antes, o latim (mantido pela tradição escolástica mesmo depois da queda do Império Romano). Assim, para que a produção científica de um país seja lida pelo resto do mundo, deve então ser vertida para o inglês. Isso já tem sido tradicionalmente feito, sob a forma de resumos, por nós inclusive e desde há muito.

Mas não precisamos proceder como macacos em lojas de louças, quebrando e misturando nossos legados que as gerações anteriores carinhosamente nos preservaram. A língua espanhola, bem aparentada à nossa, teve o orgulho de chamar S.I.D.A. à síndrome da imunodeficiência adquirida, enquanto, preguiçosamente, copiávamos A.I.D.S. do original, depois passada a aids, mas com pronúncia errada. Ao contrário, embora entoando como um gringo, fica intolerável a promiscuidade gráfica de um texto em que alguém afirma acessar um site para um download de homepage. Traduz-se: enorme desleixo, falta de criatividade, desprezo pelas raízes, indigência cultural. Ainda se fosse sáit, dáunloud e rompêij, o estrago seria menos grave. O lojista que emplaca laundry em sua lavanderia de Irecê, ou o intelectual que nomeia workshop ao seu seminário (em português) e faz nele um coffee break (como se então o intervalo, ou o café, ficassem mais refinados ou gostosos); o que diz que uma acuidade visual é 20/20 (será que também anuncia sua altura em pés e polegadas, ou seu peso em libras?) e nomeia patch a uma oclusão, revelam, todos, o mesmo nível de pobreza cívica e de capitulação, dando uma demonstração cabal do sentimento de inferioridade que nos impede de ver mais poesia num abre-alas que numa pole position. Yes, we are bananas, sorry, have bananas.

Por tudo isso, pode parecer paradoxal que os Arquivos Brasileiros de Oftalmologia estejam se decidindo a verter artigos do português para o inglês e assim publicá-los, nas duas línguas. Certamente conservando as finalidades com as quais os Arquivos foram fundados, isto é, as de: "a) dar publicidade aos trabalhos originais dos oculistas patrícios; b) transmitir a todos os médicos brasileiros, interessados pela especialidade, o que existir de mais moderno no campo da oftalmologia mundial; c) fomentar o estudo e o aperfeiçoamento de oftalmologia" (A.B.O., no 1, 1938) pensamos que para a primeira empreitada e mais do que nunca, torna-se necessária uma apresentação na língua com que a ciência é, se não inteiramente feita, pelo menos, extensamente divulgada. Merecem nossos autores propagação mais ampla de seus escritos e convém ao mundo saber melhor o que por aqui se faz de bom. Em outras palavras, em inglês há uma facilitação formal daquilo a que em cienciometria se chama o impacto de uma publicação, avaliada por quanto um artigo é citado (o que o supõe lido). Para manter o segundo objetivo, seria impensável banir o português de nossas publicações (ainda que isso fosse mais econômico), em detrimento dos que são tão brasileiros (ou talvez mais) quanto aqueles que falam inglês. Finalmente, o terceiro objetivo também se beneficia com a publicação bilingüe.

Esse procedimento inovador torna-se possível pelo incentivo e apoio do Presidente de nosso Conselho Brasileiro de Oftalmologia, Prof. Dr. Marcos Pereira Ávila, que com sua visão abrangente e mentalidade aberta, reconhece, na produção oftalmológica brasileira, não apenas a conveniência dessa tomada de posição, mas a necessidade quase imperiosa de que ela seja assumida sem mais demoras.

Yes, we have bananas. Entretanto, também, praticamos uma boa ciência oftalmológica e somos respeitados por uma sua excelente aplicação, da qual muito nos orgulhamos, mas de cuja divulgação mais ampla estamos necessitados. Por altivez e pela razão, para melhor mostrar a força de nossa produção, precisamos do inglês. O desafio é enorme e será enfrentado por partes. Inicialmente pretende-se que apenas alguns trabalhos passem por essa duplicação. Ela representará um prêmio a seus méritos e espera-se que possa agir como estímulo a um melhor acabamento e conteúdo de todos, elevando ainda mais o prestígio de nossas publicações. Editores, sendo humanos, possivelmente falharão em seus julgamentos e escolhas. Mas o fruto compensa o risco. E que Deus nos ajude. Ainda, porém, com maior respeito pela nossa identidade; com todo afeto para com aqueles de quem aprendemos e aos que vamos transmitir; com todo o orgulho pelo que somos e viremos a ser (principalmente se soubermos resgatar a nossa auto-estima), fica o Português!


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