Leciana Rorato Chiconelli Vanzo1; Agostinho Bryk Junior2; Maria Claudia Gomes Komatsu2; Carlos Augusto Moreira Junior2
DOI: 10.1590/S0004-27492001000400010
RESUMO
Objetivo: Verificar o crescimento de P. aeruginosa e S. aureus em perfluoroctano líquido (PFO). Métodos: Utilizaram-se três meios de cultura: PFO, caldo de digestão de soja e caseína e solução salina a 0,9%. Dividiram-se 5 ml de PFO em frascos contendo 1 ml cada. Nos frascos 1 e 2 inoculou-se 1 colônia inteira de P. aeruginosa e nos recipientes 3 e 4 a mesma quantidade de S. aureus. O frasco 5 serviu como controle sem sofrer contaminação. Inoculou-se também 1 colônia de cada bactéria em 1 ml dos demais meios de cultura. As soluções foram mantidas em incubadora a 37ºC por 10 dias. Em câmara de fluxo laminar realizou-se o repique utilizando-se alça calibrada de 1:1000 no tempo zero, 72 h, 168 h e 240 h após contaminação. Verificou-se o crescimento bacteriano por meio da contagem de colônias em placas de agar sangue 24 h após cada repique. Resultados: Houve crescimento de P. aeruginosa e S. aureus no tempo zero em todos os meios, confirmando a inoculação bacteriana. Nas horas seguintes o crescimento não mais foi observado em PFO. Ambas as bactérias desenvolveram-se abundantemente nos demais meios de cultura em todos os tempos. No frasco controle não houve crescimento bacteriano. Conclusão: Os resultados demonstram que o PFO não representa meio favorável para o crescimento bacteriano.
Descritores: Crescimento bacteriano; Fluorocarbonetos; Contaminação bacteriana ocular; Pseudomonas aeruginosa; Staphylococcus aureus
ABSTRACT
Purpose: To determine the growth of P. aeruginosa and S. aureus in liquid perfluoroctane (PFO). Methods: Three culture media were used: PFO, soy and casein digestion broth and 0.9% saline solution. Five ml PFO were distributed to 1 ml flasks. Flasks 1 and 2 were inoculated with 1 entire colony of P. aeruginosa and flasks 3 and 4 were inoculated with the same amount of S. aureus. Flask 5 served as control without any contamination. One colony of each bacterium was also inoculated in 1 ml of the remaining culture media. All solutions were kept in an incubator at 37º C for 10 days. The cultures were replated under a laminar flow hood using a calibrated 1:1000 loop at times zero, 72 h, 168 h and 240 h after contamination. Bacterial growth was determined by counting the colonies on blood agar plates 24 hours after each replating. Results: Time zero demonstrated bacterial growth in all media, confirming inoculation. During the subsequent hours no further growth of these microorganisms was observed in PFO. Both bacteria developed abundantly in the remaining culture media at all times studied. The control flask did not show any bacterial growth. Conclusions: The results show that PFO does not represent a favorable medium for bacterial growth.
Keywords: Bacterial growth; Fluorocarbons; Ocular bacterial contamination; Pseudomonas aeruginosa; Staphylococcus aureus
INTRODUÇÃO
Desde os primeiros relatos de uso de perfluorocarbonos líquidos (PFCL) na cirurgia vítreo-retiniana, a partir de 1987 com os trabalhos de Chang e col.(1-5), é cada vez mais difundido seu uso entre os cirurgiões de retina.
Essas substâncias mostraram-se úteis por apresentarem propriedades físico-químicas favoráveis ao bom desempenho do ato cirúrgico(6), possibilitando conforto e segurança ao cirurgião tanto na sua administração quanto na sua remoção ao final da intervenção cirúrgica. No entanto, não é rara a permanência de pequenas quantidades de PFCL (bolhas ou gotículas)(7) dentro da cavidade vítrea após o término da cirurgia.
A permanência de uma substância estranha na cavidade vítrea poderia representar um meio de cultura para a proliferação bacteriana, ocasionando assim uma infecção grave e de tratamento complicado, pois há dificuldade de se manter concentrações terapêuticas de antibióticos na cavidade vítrea por tempo adequado(8). Desta forma é importante verificar o potencial de contaminação dos PFCL. Inúmeras pesquisas demonstram que os agentes patogênicos mais comuns nas infecções intraoculares são S. aureus e P. aeruginosa(8-12).
O objetivo do presente estudo foi verificar o crescimento de S. aureus e P. aeruginosa em perfluoroctano (PFO), um dos PFCL mais utilizados na cirurgia vítreo-retiniana(6).
MÉTODOS
Os perfluoroquímicos líquidos são compostos pertencentes a uma classe de oligômeros do óxido de perfluoropropileno purificados. Apresentam excelente estabilidade química e térmica em virtude de suas conformações estruturais de carbono, oxigênio e flúor. Os perfluorocarbonos líquidos (PFCL) geralmente apresentam as seguintes propriedades: são imiscíveis com a água(6,13), transparentes, incolores, inertes quimicamente, inodoros, não são inflamáveis, possuem baixa viscosidade, insolubilidade em solventes orgânicos e alta gravidade específica(14).
Esses compostos são opticamente transparentes sendo seu índice de refração semelhante ao do corpo vítreo normal, ou seja, 1,29, o que permite uma fácil observação intra-ocular durante manobras per-operatórias(13).
A baixa viscosidade de 2 a 3 centistokes a 25ºC(13) bem como a insolubilidade em solventes orgânicos convencionais(14) representam outras propriedades favoráveis desses compostos.
Utilizaram-se três meios de cultura: PFO, caldo de digestão de soja e caseína (TSB) e solução salina a 0,9% (SS).
Dividiram-se 5 ml de PFO em frascos contendo 1 ml, identificados pela numeração de 1 a 5. Nos frascos 1 e 2 inoculou-se uma colônia inteira de P. aeruginosa (ATCC 27853) e nos recipientes 3 e 4 a mesma quantidade de S. aureus (ATCC 25923). O frasco 5 serviu de controle sem sofrer contaminação. A utilização de colônias bacterianas inteiras se deve ao fato do PFO ser imiscível em água.
Com o objetivo de se verificar a viabilidade dos microrganismos, inoculou-se separadamente uma colônia de cada bactéria em frascos contendo 1 ml de TSB, um meio de cultura rico em nutrientes favoráveis à proliferação bacteriana.
Repetiu-se o mesmo procedimento para a contaminação da solução salina a 0,9%, a fim de se comparar os resultados do PFO com outro meio que não possui nutrientes.
Todas a soluções foram homogeneizadas em Vortex a 1000 rpm e, posteriormente, mantidas em uma incubadora a 37ºC por 10 dias.
Realizou-se o repique utilizando-se uma alça calibrada de 1:1000 no tempo zero, 72 horas, 168 horas e 240 horas após a contaminação. Efetuou-se toda a manipulação do material em uma câmara de fluxo laminar a fim de evitar contaminação externa.
Verificou-se o crescimento bacteriano através da contagem de colônias em placas de agar sangue 24 h após cada repique.
RESULTADOS
Observou-se o crescimento de 1 colônia e 3 colônias de P. aeruginosa nos frascos 1 e 2, respectivamente. No entanto, nos demais tempos de aferição não se detectou nenhum desenvolvimento dessa bactéria em PFO. Já nos meios TSB e SS o crescimento foi abundante em todos os tempos conforme a tabela 1.
Constatou-se no tempo zero a presença de 01 colônia e de 16 colônias de S. aureus nas amostras 3 e 4, respectivamente. Nas horas seguintes o crescimento desse microrganismo não mais foi observado em PFO. Com o passar do tempo houve um decréscimo no desenvolvimento do estafilococo em TSB e SS, no entanto o crescimento mesmo assim foi abundante (Tabela 2).
No frasco 5, controle não contaminado, não houve proliferação bacteriana em nenhum dos tempos.
DISCUSSÃO
O maior crescimento bacteriano se deu em caldo de digestão de soja e caseína por se tratar de um meio de cultura próprio para o desenvolvimento bacteriano.
Embora a P. aeruginosa seja um microrganismo muito resistente, capaz de se desenvolver até em meios extremamente desfavoráveis, não se observou seu crescimento em nenhuma das amostras de PFO em estudo, com exceção daquelas do tempo zero, que correspondem ao momento da inoculação do germe. Somente a falta de nutrientes não explicaria adequadamente a ausência de crescimento dessa bactéria, porque demonstramos que mesmo em solução salina a 0,9% essa cresceu abundantemente.
Não houve crescimento de S. aureus em PFO, exceto no tempo zero quando se observou o crescimento de 01 colônia na primeira amostra e de 16 colônias na segunda. Em solução salina a 0,9%, o desenvolvimento do estafilococo foi abundante, no entanto houve um pequeno decréscimo a partir de 168 horas (7 dias).
Na amostra de PFO utilizada como controle não contaminado, não ocorreu proliferação de nenhuma bactéria, demonstrando que o PFO em uso era um produto estéril além de não ter ocorrido contaminação externa durante a manipulação da substância.
Os resultados deste estudo "in vitro" demonstraram que o PFO não representa um meio favorável para o crescimento bacteriano.
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Trabalho realizado no Serviço de Oftalmologia do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná.
1 Médica Residente em Oftalmologia do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná.
2 Acadêmicos do 5º ano de Medicina da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Paraná.
3 Professor Titular de Oftalmologia da Universidade Federal do Paraná.
Os autores declaram não possuir interesse financeiro no desenvolvimento ou marketing de qualquer instrumento ou substância referidos no estudo.
Endereço para correspondência: Maria Claudia Gomes Komatsu - R. Alferes Poli, 271 - Curitiba (PR) CEP 80230-090. E-mail: mailto:[email protected]