Consuelo Bueno Diniz Adán1; Amanda Rocha Diniz2; Débora Perlatto; Flávio Eduardo Hirai; Elcio Hideo Sato3
DOI: 10.1590/S0004-27492008000200009
RESUMO
HISTÓRICO: Apesar dos esforços que vêm sendo realizados mais recentemente, a falta de córneas para transplantes ainda é uma realidade no Brasil, principalmente em algumas regiões. O Banco de Olhos do Hospital São Paulo tem como objetivo garantir a qualidade e conservação dos tecidos oculares humanos para disponibilizá-los para transplantes. A qualidade do tecido encontra-se diretamente ligada a todos os processos realizados pela equipe do banco de olhos, a partir da seleção dos doadores. OBJETIVO: Conhecer o perfil dos doadores de córneas do Banco de Olhos do Hospital São Paulo num período de dez anos. MÉTODOS: Estudo retrospectivo de fichas de doadores, no período de janeiro de 1996 a dezembro de 2005. RESULTADOS: Chegaram ao Banco de Olhos do Hospital São Paulo 3.624 córneas. A idade média dos doadores foi de 56,8 anos. A faixa etária com maior doação foi de 70-79 anos. A causa mortis mais freqüente foi doença cardiovascular, seguida por neoplasias, doenças respiratórias e trauma. O tempo "enucleação" foi em média de 3,8 horas e o tempo "preservação" foi em média de 3,6 horas. A maioria dos tecidos foi preservada em meios Optisol GS®. Os doadores jovens tiveram maior proporção de córneas consideradas de qualidade "Excelente" ou "Boa". CONCLUSÃO: Ao longo do período estudado de 10 anos, houve tendência de redução no recebimento de tecidos de outros bancos de olhos e progressivo aumento na captação e preservação de tecidos pela equipe do próprio Banco, com redução significativa no tempo de preservação dos tecidos. Os doadores foram, na maioria, do sexo masculino e as doenças cardiovasculares lideraram as causas de óbito. Apesar da maioria das córneas serem provenientes de doadores acima de 60 anos, o maior percentual de aproveitamento de córneas para transplantes ópticos foi de doadores jovens.
Descritores: Bancos de Olhos; Transplante de córnea; Endotélio da córnea; Transplante de tecidos; Doadores de tecidos
ABSTRACT
BACKGROUND: Despite all efforts towards the improvement of the eye bank system, the shortage of corneal tissue for transplant is still an important issue in Brazil. The Hospital São Paulo Eye Bank aims to provide high-quality ocular tissues for surgery starting with rigorous selection of donors. PURPOSE: To investigate the characteristics of cornea donors to the Hospital São Paulo Eye Bank during a 10-year period. METHODS: Retrospective analysis of Hospital São Paulo Eye Bank records from January 1996 to December 2005. RESULTADS: 3,624 corneas were evaluated by the Hospital São Paulo Eye Bank during this 10-year period. Mean age of donors was 56.8 years the highest proportion being in the 70-79 years age category. The most common cause of death was cardiovascular disease followed by cancer and trauma. Mean "enucleation" and "preservation" times were 3.8 and 3.6 hours, respectively. The number of corneas received by our eye bank from other eye banks decreased substantially whereas the number of corneas harvested by the Hospital São Paulo Eye Bank staff increased. Optisol GS® were the most utilized preservation media and a high proportion of corneas classified as "Excellent" or "Good" came from young donors. CONCLUSIONS: In a period of 10 years, there was a decreasing trend in the number of donated corneas provided by other eye banks to the Hospital São Paulo Eye Bank and an increase in the number of corneas harvested and processed by the Hospital São Paulo Eye Bank staff with a significant reduction of preservation time. Most donors were male and the main cause of death was cardiovascular disease. Although a great proportion of donated corneas came from older donors, the majority of corneas used for optical transplants came from younger ones.
Keywords: Eye banks; Corneal transplantation; Endothelium corneal; Tissue transplantation; Tissue donors
INTRODUÇÃO
As doenças da córnea, segunda causa de cegueira reversível no mundo, atingem uma população jovem e ativa, levando a importante perda econômica e social. A falta de tecidos e de Bancos de Olhos capacitados para fornecer córneas em número e qualidade adequada para transplantes ainda é uma realidade entre nós, apesar dos esforços que vêm sendo feitos.
O Banco de Olhos do Hospital São Paulo (BOHSP) tem sede no Hospital São Paulo, serviço terciário, ligado à Universidade Federal de São Paulo/Escola Paulista de Medicina (UNIFESP/EPM), e segue os padrões internacionais para captação e preservação de córneas, baseados nas normas da Associação Panamericana de Bancos de Olhos (APABO)(1) e da Associação Americana de Bancos de Olhos (EBAA)(2).
Devido à escassez de estudos sobre Bancos de Olhos no Brasil, o objetivo desde trabalho foi avaliar o perfil dos doadores de córneas do BOHSP num período de 10 anos.
MÉTODOS
Este estudo retrospectivo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UNIFESP sob o número 0936/06.
Realizamos levantamento manual dos dados a partir de fichas de doadores de córneas que foram distribuídas via BOHSP (córneas captadas pelo próprio BOHSP, Banco de Olhos de Sorocaba (BOS) ou por outros hospitais, como Santa Casa de Santos, Hospital Santa Marcelina, Hospital do Servidor Público do Estado de São Paulo) no período de janeiro de 1996 a dezembro de 2005.
A partir dos formulários dos doadores obtivemos informações quanto à idade, sexo, causa mortis, intervalo entre o óbito e a captação e preservação da córnea, além do destino dado ao tecido, ou seja, disponibilização ou não para enxerto e tipo de enxerto.
O tempo "enucleação" é o número de horas entre o óbito do doador e a retirada dos globos oculares. O BOHSP realiza captações em doadores até 6 horas após o óbito ou até 24 horas, caso o corpo esteja sob refrigeração ou ainda em doador de múltiplos órgãos. O tempo "preservação" é o número de horas entre a retirada dos globos oculares e o processamento do tecido, ou seja, a preservação da córnea.
O BOHSP submete os tecidos à avaliação biomicroscópica em dias subseqüentes por dois examinadores para sua classificação final em "Excelente", "Bom", "Razoável", "Ruim" ou "Inaceitável". As três primeiras categorias permitem que o tecido seja utilizado em enxertos para fins ópticos. Já os tecidos classificados como "Ruins" são destinados a enxertos tectônicos e os tecidos considerados "Inaceitáveis" são descartados.
Na análise estatística utilizou-se o teste t de Student para as variáveis contínuas e o teste de qui-quadrado para as variáveis categóricas. Para medir a significância das tendências aplicou-se o teste de Cochran-Armitage. Foram considerados significativos valores de p<0,05.
RESULTADOS
Durante os 10 anos do estudo (1996-2005) passaram pelo BOHSP 3.624 córneas. A falta de uniformidade nos dados e registros limitaram a análise a 2.787 doações. A avaliação dos dados foi dividida em dois períodos de cinco anos para comparação. Observou-se que na primeira metade (1996-2000), ocorreram 740 doações. Já no segundo período de cinco anos (2001-2005) o número de doações aumentou para 2.047.
Faixa etária
Quanto à faixa etária dos doadores, a média foi de 56,8 ± 20,5 anos para o período de 10 anos; 61,9 ± 19,4 anos no período de 1996-2000 e 54,9 ± 20,6 anos para o período de 2001-2005 (Tabela 1). O doador mais jovem foi de um ano e o mais idoso, de 102 anos; com mediana de 60 anos. A faixa etária que apresentou maior percentual de doação foi de 70-79 anos (18,9%), seguida pela faixa dos 60-69 anos (18,6%) (Figura 1).
Sexo
Quanto à distribuição relacionada ao sexo, verificou-se que 56,8% dos tecidos eram provenientes de doadores do sexo masculino. Não houve variação significativa quanto ao sexo dos doadores entre os períodos de cinco anos (Tabela 1).
Procedência dos tecidos
Entre 1996-2000, 50,3% dos tecidos que chegaram ao BOHSP eram provenientes do Banco de Olhos de Sorocaba, seguidos por captações feitas pelo próprio BOHSP (27,6%), tecidos procedentes de Banco de Olhos internacionais (13,9%) e de outros bancos de olhos (8,2%). Nos cinco anos seguintes (2001-2005), os tecidos procedentes de captações feitas pelo próprio BOHSP somaram 56,4% do total, contra os 13,2% originados do BOS, de BO Internacionais (0,6%) e de outros bancos de olhos (29,8%) (Tabela 1).
Causa mortis
Quanto às causas do óbito, agrupou-se em seis grupos, baseado no Código Internacional das Doenças (CID 10). As causas mais freqüentes de óbito dos doadores no período de 10 anos foram doenças cardiovasculares (40%), seguidas por neoplasias (15,9%), doenças do aparelho respiratório (14,9%), causas externas/traumas (13,9%) e doenças infecciosas e parasitárias (6,5%). Outras causas foram responsáveis por 8,8% dos óbitos dos doadores no período de dez anos. Diferentemente dos primeiros cinco anos do levantamento, o óbito por causas externas foi responsável por 16,3% dos óbitos, enquanto que nos primeiros cinco anos respondeu por 5,8% de todos os óbitos dos doadores (p<0,01) (Tabela 1).
Intervalos óbito/captação e captação/preservação
O tempo "enucleação" foi em média de 3,8 horas (3,7 h nos primeiros cinco anos e 3,4 h no segundo período de cinco anos).
O tempo "preservação" foi em média de 3,6 horas (4,4 h no período de 1996-2000 e 3,4 h no período de 2001-2005) (Tabela 1).
Processamento dos tecidos
Neste estudo, observou-se que a preservação dos tecidos ocorreu em 99,7% dos casos e apenas 0,3% foram utilizados diretamente da câmara úmida. Entre 1996 e 2000, o meio Optisol GS® foi utilizado em 85,6% dos casos. Já entre 2001-2005, 94,3% das córneas foram preservadas naquele meio. De modo geral, nesses 10 anos de estudo, o meio Optisol GS® foi utilizado em 92,2% dos casos. Outros meios de preservação de córneas como Eusol®, Ophthalmos®, Dexsol®, e Likorol® foram pouco utilizados. A preservação em glicerina para uso em transplantes tectônicos permaneceu constante nesse período, em aproximadamente 2,6% dos casos (Tabela 1).
Qualidade e aproveitamento dos tecidos
Quanto ao aproveitamento dos tecidos, no período de 1996 a 2000, 57,2% das córneas foram utilizadas para transplantes ópticos; 25,4% para enxertos tectônicos e 17,4% dos tecidos foram descartados.
No período de 2001-2005, 30% das córneas foram utilizadas para transplantes ópticos e 15% para tectônicos. Nesse período, cerca de 58% das córneas foram avaliadas como satisfatórias para enxertos ópticos (excelente, bom, regular). Aproximadamente 30% das córneas foram utilizadas para transplantes ópticos. Os tecidos descartados perfizeram aproximadamente 49%.
Quanto à faixa etária, no período de 10 anos (1996-2005), observou-se que a faixa dos 20-29 anos foi a que apresentou maior porcentagem de aproveitamento para enxertos ópticos (Figura 2). Entre 2001-2005, a faixa etária < 20 anos apresentou a maior porcentagem de córneas consideradas excelentes/boas.
DISCUSSÃO
O Banco de Olhos do Hospital São Paulo (BOHSP) foi fundado em 1991 e é uma entidade sem fins lucrativos. Atualmente, a instituição realiza busca ativa de doações dentro do próprio hospital, realiza captações em hospitais públicos e privados, necrotérios, Instituto Médico-Legal e domicílios localizados na área de sua competência de atuação, conforme a legislação vigente. Nessa área estão aproximadamente seis milhões de pessoas(3). Durante a década de 90 e até 2005, além destas fontes, chegavam ao BOHSP córneas já processadas, provenientes de outros Bancos de Olhos localizados no Estado de São Paulo, como por exemplo, o Banco de Olhos de Sorocaba para que fossem reavaliadas e distribuídas aos pacientes da Instituição que aguardavam na lista por um transplante de córnea. Ainda na década de 90, por escassez de tecidos, o BOHSP recebia córneas de bancos de olhos norte-americanos.
Neste estudo, a maioria dos doadores tinha idade acima de 60 anos, semelhante aos resultados de outros bancos de olhos. Na verdade, a maior proporção de doações ocorreu entre 70 a 79 anos. Num estudo realizado na mesma Instituição, na década de 90, a maioria dos doadores também se encontrou em faixas etárias acima de 60 anos(4). No Banco de Olhos de Minnesota, as doações mais freqüentes provinham de indivíduos entre 60 e 69 anos, seguidos pelos doadores de 70 a 75 anos de idade(5). Num estudo australiano, observou-se que dois terços dos doadores estavam na faixa entre 54 a 64 anos(6).
As idades mínima e máxima de um doador para utilização do tecido variam conforme as Normas Médicas de cada banco de olhos. Neste levantamento a menor idade foi de um ano. Atualmente, em nossa instituição, são captados tecidos de doadores acima de dois anos de idade, em decorrência das dificuldades técnicas cirúrgicas inerentes aos tecidos de crianças de faixa etária mais baixa. Na literatura, há Bancos de Olhos em que a idade mínima para doação chega até a 10 anos(7), mais alta do que a maioria de bancos de olhos brasileiros.
No BOHSP não existe limite superior de idade para a captação. No período do levantamento, nosso doador mais idoso tinha 102 anos. A idade avançada costuma ser um fator limitante já que a maioria dos cirurgiões prefere não utilizar córneas de pacientes acima de 75 anos(4,7-9).
Essa idade é arbitrária, uma vez que a idade do doador não parece estar relacionada com a sobrevivência do enxerto(7). Deve-se reavaliar este aspecto, uma vez que a sobrevida da população está aumentando e a não utilização dos tecidos baseada apenas na idade, pode gerar aumento significativo no descarte de tecidos(5,8). Por outro lado, doadores idosos podem apresentar história de cirurgia intra-ocular prévia e doenças corneanas, como a guttata, condições que poderiam limitar o uso de córneas em transplantes.
Quando se comparou a idade média do doador entre os períodos de cinco anos, observou-se redução na idade média do doador (61,9 anos entre 1996-2000 e 54,9 anos entre 2001-2005) (p<0,01). Isto poderia estar relacionado ao aumento de óbitos por causas externas (traumatismo) e doenças do aparelho circulatório nesse período.
Na distribuição dos doadores por sexo, observou-se que 56,8% eram do sexo masculino, sem que houvesse significância estatística neste dado. A preponderância de doadores homens é citada nos resultados publicados em outro estudo, possivelmente porque os homens morrem mais jovens que as mulheres devido a trauma e doenças cardiovasculares(7).
De fato, as doenças cardiovasculares foram a mais freqüente causa de óbito dos doadores, seguidas pelas neoplasias e causas externas (trauma). Em estudo anterior, realizado na mesma Instituição, também foram as causas cardio-respiratórias as mais freqüentes(4). Dados semelhantes foram encontrados por outros autores(5-6).
Ao se comparar os dois períodos de estudo, observamos que houve aumento significativo nas causas externas e doenças infecciosas e neoplasias (Tabela 1). O aumento nas causas externas (trauma) pode estar relacionado ao modo de vida de metrópole, como a cidade de São Paulo, onde a violência pode levar a número progressivo de perda de vidas. Já o aumento das causas infecciosas pode ser explicado pela detecção de maior número de casos, e triagem sorológica mais acurada.
Quando se observa a procedência dos tecidos, verificou-se que neste período houve redução significativa da distribuição de córneas procedentes do exterior, diferentemente do observado em estudo prévio(4). Naquela época, a falta de Banco de Olhos nacionais capacitados promoveu a criação de programa de "Banco de Olhos Irmãos" que facilitava o intercâmbio de tecidos procedentes de Bancos de Olhos americanos. As córneas procedentes do Banco de Olhos de Sorocaba, instituição com tradição na captação de tecidos, também tiveram participação reduzida nas estatísticas do nosso banco de olhos, já que nos últimos cinco anos do levantamento o BOHSP se transformou em agente captador em vez de ser apenas redistribuidor. Outros hospitais tiveram sua participação aumentada no envio de tecidos ao BOHSP para processamento dos mesmos. Esta participação deve aumentar ainda mais, uma vez que tem havido maior divulgação, campanhas, além da legislação atual, que estimula o surgimento e a participação de Equipes e Comissões intra-hospitalares para aumentar a captação de tecidos. Também é importante ressaltar que acreditamos que o expressivo aumento de captação própria do BOHSP no período de 2001 a 2005 foi um impacto direto da estruturação de equipe própria permanente de captação, exclusivamente ligada ao Banco de Olhos, e não mais dependente de residentes ou estagiários temporários.
Acreditamos que a agilidade dos processos numa instituição como Banco de Olhos é necessária tendo em vista que a preservação da vitalidade e qualidade dos tecidos é também função do tempo. Intervalos prolongados entre o óbito e a captação e entre a captação e preservação podem justificar a não liberação do tecido para transplantes ópticos, pelo risco de falência do enxerto. Apesar desta possibilidade, um outro estudo realizado na Instituição não mostrou diferença estatística entre os diferentes intervalos de tempo e o aumento nas taxas de falência primária do botão transplantado(10). De forma geral, o tempo "enucleação" foi de 3,8 (± 2,9 horas); o tempo "preservação" foi de 3,6 ± (4,8 horas). Nos últimos cinco anos do levantamento houve significativa redução do número de horas para a preservação dos tecidos (Tabela 1). Isto se deu, provavelmente, pela melhoria de condições internas do BOHSP, principalmente pela profissionalização do pessoal, conscientização e motivação da equipe em decorrência da importância do trabalho realizado, além do suprimento do material necessário. Já a não redução do tempo enucleação pode ser explicada, nos casos de captação externa ao HSP, por diversos fatores, como a dificuldade de transporte para se chegar ao doador, grandes distâncias percorridas, percursos com tráfego intenso e congestionamento, próprios da cidade. Em alguns bancos de olhos, onde a captação pode ocorrer em áreas rurais, com dezenas de quilômetros de distância, este problema também se torna evidente(5). Nos óbitos dentro do próprio HSP, a demora na chegada dos familiares para entrevista familiar é um dos fatores que contribui para o retardo na enucleação. Apesar de complexos e multifatoriais, acreditamos que estes parâmetros possam ser melhorados com aprimoramento do serviço.
O BOHSP realiza a preservação das córneas fazendo a excisão com aba escleral de 3 mm, sob condições assépticas, em capela de fluxo laminar e armazena os tecidos em meio de preservação sob refrigeração de 2º a 8ºC(1). Os tecidos são liberados para o uso após informação sobre a negatividade das sorologias das amostras sangüíneas e ausência de contaminação biológica do meio. Casos de retirada in situ da córnea constituem situações raras, e caso não preencham os quesitos de esterilização, algumas vezes não são utilizados em receptores. A preservação em glicerina também pode ocorrer em eventuais situações, como para o armazenamento de tecidos cuja qualidade justifica apenas o uso tectônico.
No período de dez anos o meio Optisol GS® (Bausch and Lomb, Rochester, NY) foi utilizado em 92,2% dos casos; outros meios (Ophthalmos®, Eusol®, Dexsol® e Likorol®) foram usados em 4,9% dos casos. Quando os períodos de cinco anos foram comparados, observou-se o aumento significativo na utilização do meio Optisol®, que é padronizado em virtude de sua qualidade, e a redução da utilização de outros meios. A preservação em glicerina permaneceu constante nesse período, aproximadamente em 2,6% dos casos.
Apesar de não traduzir diretamente o estado funcional do mosaico endotelial, a avaliação biomicroscópica dos tecidos pré e pós-preservação e a análise das células endoteliais em número e forma, constituem pilares para a classificação e liberação dos tecidos para transplantes ópticos ou tectônicos.
O BOHSP libera para transplantes ópticos apenas as córneas cuja contagem de células endoteliais é maior ou igual a 2.000 células/mm2 (média de três medidas).
Estudo de alguns autores referem que córneas transplantadas com a contagem de 2.000 células/mm2 atingem a contagem considerada de viabilidade crítica de 500 células/mm2 com cerca de 20 anos pós-transplante(11).
Densidades endoteliais maiores podem ser requeridas, conforme as normas médicas de cada banco de olhos (5,7). O aproveitamento dos tecidos para enxertos ópticos foi de 57,2% entre 1996 a 2000; 25,4% foram utilizados para enxertos tectônicos e 17,4% descartados. Já entre 2001 a 2005, aproximadamente 30% das córneas destinaram-se aos transplantes ópticos, aproximadamente 15% foram destinados a tectônicos e terapêuticos e aproximadamente 50% não foram utilizados em transplantes por motivos relacionados à qualidade dos tecidos, sorologia ou contaminação. Observou-se que o percentual de tecidos disponíveis para transplantes ópticos (classificados como "excelentes/boas/razoáveis") foi maior do que a porcentagem de enxertos ópticos realizados. Isto pode ter ocorrido porque muitos tecidos, avaliados inicialmente como razoáveis, podem ter perdido qualidade com o decorrer dos dias de preservação. A redução do percentual de córneas liberadas para enxertos ópticos foi significativa e ocorreu, provavelmente, pelo melhor controle de qualidade do BO. O conhecimento de medidas para atingir a segurança e qualidade totais, a satisfação do cliente, o aprendizado com a experiência própria e de outros serviços, têm ensinado aos bancos de olhos serem mais cuidadosos e eficientes.
Neste estudo houve uma tendência estatisticamente significativa (Teste de Cochran-Armitage) de que quanto maior a faixa etária, menor o aproveitamento do tecido para transplante óptico. Ao se analisar o aproveitamento dos tecidos em relação à faixa etária, observou-se que no período de 1996 a 2005, doadores entre 20-29 anos tiveram o melhor aproveitamento (maior porcentagem de transplantes ópticos realizados). Num estudo, o fator idade foi o maior determinante para o uso cirúrgico do tecido. Enquanto 77% dos tecidos procedentes de doadores menores que 30 foram utilizados em cirurgias, apenas 22% dos tecidos procedentes de doadores acima de 70 anos tiveram o mesmo fim(9).
Quando se comparou a faixa etária à classificação da córnea em "Excelente/Bom", versus "Outros" ("Razoável", "Ruim" ou "Inaceitável"), verificou-se que doadores menores de 20 anos tiveram uma maior proporção de córneas excelentes/boas. Repetiu-se a tendência de que quanto maior a faixa etária, menor a proporção de córneas consideradas excelentes/boas (p<0,001).
No estudo em questão, apesar de não se ter analisado diretamente o número de células endoteliais em relação à faixa etária, a menor porcentagem de córneas boas em faixas etárias mais avançadas pode ter ocorrido pela menor densidade endotelial apresentada pelo grupo. Já os doadores mais jovens costumam apresentar as mais altas densidades endoteliais, o que pode ter contribuído para maior porcentagem de córneas classificadas como excelentes e boas neste grupo. Armitage e cols encontraram correlação significativa entre a idade avançada e menor densidade endotelial(8). Entretanto, num outro estudo não se observou diferença significativa na contagem de células endoteliais com o aumento da idade(5).
É importante ressaltar que este estudo apresenta algumas limitações. Uma delas é a falta de informações completas em todas as fichas de doadores. Isto prejudicou uma análise mais abrangente e uniforme, limitando os dados de nossos doadores. O levantamento manual das informações requer tempo, retarda o conhecimento de informações importantes e limita ações corretivas. Faz-se necessário informatização dos arquivos da instituição para o levantamento de maior número de dados, realização de estatísticas e estudos científicos de forma mais eficiente.
CONCLUSÕES
Observamos que houve aumento no número de córneas disponibilizadas para transplantes pelo BOHSP, principalmente nos últimos anos do período estudado. Além disto, o BOHSP deixou de ser mero distribuidor de tecidos e passou a exercer uma de suas principais atribuições, a de agente captador de córneas.
Outro aspecto positivo evidenciado no estudo foi a redução, de forma significativa, no tempo de preservação dos tecidos, fator relevante para a manutenção da qualidade dos mesmos.
Apesar de a maioria das doações terem sido provenientes de doadores acima de 60 anos, grande parte desses tecidos não pôde ser disponibilizada para transplantes ópticos, como ocorreu com os tecidos de pacientes jovens. Sobre este aspecto, o ideal seria aplicar métodos que avaliassem o estado funcional dos tecidos, com o objetivo de se obter maior aproveitamento dos mesmos, desde que estejam garantidas, sempre, a segurança sanitária dos serviços e das córneas para transplantes.
Estudos desta natureza oferecem a oportunidade de se verificar as falhas, aprender com elas, corrigi-las e adicionar valores e críticas para melhoria contínua nos processos realizados pelo BOHSP.
REFERÊNCIAS
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Endereço para correspondência:
Consuelo Bueno Diniz Adán
Av. Onze de Junho, 737/224
São Paulo (SP) CEP 04041-052
E-mail: [email protected]
Recebido para publicação em 25.04.2007
Última versão recebida em 27.06.2007
Aprovação em 22.12.2007
Trabalho realizado no Banco de Olhos do Hospital São Paulo da Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP.
Nota Editorial: Depois de concluída a análise do artigo sob sigilo editorial e com a anuência do Dr. José Américo Bonatti sobre a divulgação de seu nome como revisor, agradecemos sua participação neste processo.