Rubens Belfort Jr; Paulo Schor
DOI: 10.1590/S0004-27492000000400001
Programas inteligentes, inteligência artificial e oftalmologia
Rubens Belfort Jr & Paulo Schor
Uma das maiores preocupações e objetivos dos educadores de médicos para a próxima geração é justamente conseguir convencer que saber realizar a melhor e mais rápida busca pela informação já é mais importante do que tentar memorizar e saber a própria informação.
O desenvolvimento de ligações ou "hiperlinks" permitiu a composição de livros quase que interativos, e o sistema de gravação e reprodução em "cd-rom" ampliou sua distribuição. A informação está sendo digitalizada e sua leitura e composição têm sido direcionada para os teclados e monitores.
A Internet adiciona uma enciclopédia britânica de texto por dia nos servidores espalhados pelo mundo. Discriminar o bom do ruim passou a ser vital para encontrar os caminhos e evitar o naufrágio no "infomar".
A vida média das "verdades científicas e médicas " é cada vez mais curta, e torna-se mesmo muitas vezes perigoso o médico que, por saber, ou julgar saber, deixa de procurar pelo que existe de mais novo em sua área e a resposta frente a um problema clínico ou cirúrgico.
Os livros de papel precisam de um ano para serem produzidos, as revistas científicas com "peer review" seis meses. O "site" dos principais jornais brasileiros é atualizado a cada meia hora.
Assim, além da necessidade de saber buscar, encontrar e selecionar a informação correta, o desenvolvimento das capacidades cognitivas deve ser sempre o grande objetivo do ensino.
Neste contexto se apresenta uma realidade a ser analisada. O universo digital contém as informações, e pode organizá-las de modo coerente.
Passamos pelas palavras, figuras, livros e "sites", e agora temos à nossa disposição a enorme capacidade de interligação dos computadores. Oferecemos às máquinas a informação de que adicionando-se secreção mucosa, a hiperemia conjuntival, início abrupto e presença de folículos temos uma conjuntivite viral. Ponderamos o peso de cada sintoma no diagnóstico final e adicionamos todos os sintomas oculares conhecidos e todas as patologias existentes. Para o paladar humano tal composição é indigesta, porém para os processadores dos mais modestos computadores, as respostas são somas ponderadas simples e objetivas. Assim temos as máquinas "pensando" por nós. Os programas inteligentes são o processo de combinação que ensinamos as máquinas a repetirem. Economizamos o tempo gasto para que o mesmo raciocínio seja feito no paciente João e no paciente Hoo Wo Tsu, detectando repetições e oferecendo respostas previamente programadas para ocorrer. O médico não será mais obrigado a saber "de cabeça" a interpretação das queixas dos pacientes e, mesmo, os diagnósticos diferenciais e tratamentos mais raros. Alguém terá feito isso por nós, e vários de nós terão contribuído com mais e mais dados para tornar os programas mais e mais fidedignos e corretos. A constante alimentação de dados e as correções de diagnósticos errôneos permite a atualização constante destas ferramentas, que se ajustam à medida que recebem retroalimentação.
A vida própria desta engrenagem não é provável, porém é necessária a mudança de paradigma e a realocação do médico como fonte de obtenção de informações, e agente da ação. A relação com o paciente passa a ter papel diferencial na prática clínica, deixando as tecnicalidades como elemento comum em todas as clínicas.
O paciente deverá procurar o médico com este fim, uma vez que os programas estarão disponíveis ao público leigo, que saberá seu diagnóstico, e entenderá sua doença até bem, ou melhor, que o médico. A informação, que já é de domínio público, passa a ser acessível para todos.
Já temos laboratórios onde o paciente vê os resultados de seu exame "on-line", com todo o sigilo necessário que o segredo médico impõe. Temos eventos tipo "chat" com especialistas que podem ser assistidos pelo público leigo ao vivo. Novas tecnologias permitem a realização de testes de visão de cor e contraste pela Internet, e seus resultados podem ser discutidos com uma rede de médicos virtuais em qualquer parte do globo.
Recentemente foi inaugurada a Internet II que liga a Unifesp, Unicamp,USP, Incor, PUC e Fapesp, permitindo a colaboração em tempo real com discussão de exames interativos. Os médicos virtuais começam a ser uma realidade, e podemos exercer nossa atividade sem sair de casa, e em qualquer casa.
A digitalização avança para os aparelhos diagnósticos, e podemos colocar quase todos os exames oftalmológicos em dados binários. Um exemplo disso são os programas de gerenciamento de Clinicas, onde podemos adicionar à história clínica mapas da superfície da córnea, filmes de retinografia fluorescente, traçados de campo visual, etc. Quando esses programas forem adaptados à Internet teremos a possibilidade de "examinar" o "paciente" à distância e "propor" um diagnóstico, ou diagnósticos, para seu caso. Teremos inicialmente um médico especialista em campo visual recebendo as informações de 30 pacientes e montando hipóteses diagnósticas para os exames em duas horas. Em pouco tempo teremos os programas formulando as hipóteses em 30 segundos, e um especialista revendo-as em 30 minutos. Na última etapa os programas estarão corrigidos e deverão errar menos do que o melhor especialista.
Os programas de diagnóstico testados em clinica médica como o Iliad ou o Quick Medical Reference, que são sistemas inteligentes de apoio ao diagnóstico médico em Medicina Interna têm este perfil. São testados contra um painel de especialistas e devem ao menos empatar com o mesmo. Tal "façanha" tem sido conseguida em quase todos os casos.
A interligação de máquinas também tem avançado na oftalmologia, e um exemplo disso é a cirurgia refrativa, onde um novo aparelho chamado analisador de frentes de onda, ou "wavefront analiser" faz uma refração automática dos 6 mm centrais da córnea, obtendo 3000 pontos e se "comunica" com um "Excimer laser" que trabalha com um sistema de feixe estreito, programando a ablação customizada da córnea, dependente da refração de cada porção da córnea. Tal avanço pode teoricamente resultar em correções visuais que melhorem a melhor visão dos pacientes, deixando-os com 20/15 ou 20/10.
Não se trata de somente economizar tempo e recursos humanos e econômicos, mas também de conseguir realizar tratamentos até então impossíveis, onde o cirurgião não consegue transmitir à máquina sua limitada observação visual.
Estão também em desenvolvimento há alguns anos, programas de inteligência artificial que acoplados a máquinas fotográficas de retina, serão capazes de interpretar o aspecto do fundo de olho, identificar alterações relacionadas à doença e automaticamente e quase instantaneamente guiar o tratamento de fotocoagulação a "laser" individualizado.
Doenças como diabetes, alterações sistêmicas e inflamatórias poderão assim ser tratadas, quase sem o empenho humano direto.
Evidentemente sobrará sempre o lugar do médico nesse processo, mas seu reposicionamento em função às tecnologias ocorrerá inevitavelmente, bem como o deslocamento de médicos e outros profissionais da saúde de uma para outra área à medida que seus afazeres anteriores sejam substituídos por máquinas providas de inteligência artificial.