Open Access Peer-Reviewed
Editorial

Endotélio e cirurgia da catarata: grandes desafios

Endothelium and cataract surgery: big challenges

Sérgio Kwitko1

DOI: 10.1590/S0004-27492000000300012

ATUALIZAÇÃO CONTINUADA

SOCIEDADE BRASILEIRA DE CATARATA E IMPLANTES INTRA-OCULARES

Endotélio e cirurgia da catarata: grandes desafios

 

Endothelium and cataract surgery: big challenges

 

Sérgio Kwitko

 

 

O aumento no volume de cirurgias de catarata na segunda metade do século XX proporcionou uma série de descobertas e melhoramentos tecnológicos nesta área, inclusive a importância do endotélio corneano. Por incrível que pareça, o conhecimento das funções endoteliais de barreira à entrada de fluidos e de bomba ativa de transporte de íons e água para fora do estroma corneano, foi desvendado somente a partir da década de 50, principalmente por estudos de Davson 1, Mishima e Hedby 2 e Maurice 3.

Até há pouco tempo (décadas de 80 e 90) a ceratopatia bolhosa pseudo-fácica era a principal causa de transplante penetrante de córnea nos Estados Unidos da América e Europa, devido ao relativo desconhecimento da importância do endotélio corneano na manutenção da transparência da córnea e ao grande uso de lentes intra-oculares inadequadas após a cirurgia da catarata, especialmente as de câmara anterior com alças rígidas e as de fixação irianas 4.

Com o grande aperfeiçoamento do microscópio, instrumental cirúrgico, lentes intra-oculares e desenvolvimento de agentes visco-elásticos protetores do endotélio corneano durante a cirurgia da catarata, a descompensação endotelial após esta cirurgia vem, felizmente, se tornando cada vez menos freqüente.

Sabemos hoje que as funções endoteliais de barreira e de desidratação ativa constante da córnea dependem de um número mínimo de células endoteliais, sem espaços livres entre elas, e de um perfeito funcionamento da bomba endotelial 5.

A população endotelial normal no ser humano adulto varia de 2.000 a 3.000 céls/mm2, em média, e é composta de células hexagonais pobremente aderidas entre si e à sua membrana basal, a membrana de Descemet 5.

Como as células endoteliais humanas não apresentam a capacidade de se reproduzir, devemos fazer de tudo para preservarmos a população endotelial do nosso paciente, ao realizarmos uma intervenção cirúrgica como a de catarata.

Existem diversos fatores pré, trans e pós-operatórios que podem interferir com o funcionamento normal do endotélio corneano. Discorreremos a seguir sobre os principais.

 

FATORES PRÉ-OPERATÓRIOS

Independentemente da técnica que utilizemos para a facectomia, obviamente a avaliação do endotélio corneano pré-operatoriamente é fundamental. Esta avaliação deve ser realizada de rotina, e é feita facilmente através de duas maneiras:

1- Avaliação da anatomia endotelial

A verificação do número de células e da morfologia do endotélio, por meio da reflexão especular no exame biomicroscópico em 40x ou pela microscopia especular é fundamental para termos uma idéia da população endotelial daquela córnea, já que sabemos que quanto menor o número destas células, maior a chance de descompensação corneana após a cirurgia. A análise do tamanho das células é um bom indicativo do número de células, pois quanto menor a população endotelial, maior o tamanho das células (polimegatismo), as quais assumirão formatos diversos (pleomorfismo) 6, 7. Além disto, podem-se observar falhas, áreas escuras, entre as células endoteliais, indicando a presença de córnea "guttata", portanto com comprometimento da função endotelial. Este exame anatômico da população endotelial é, entretanto, uma avaliação indireta do funcionamento destas células, que é o que realmente nos interessa saber. Clinicamente, a melhor maneira que dispomos para avaliarmos a função endotelial é através da verificação da espessura corneana.

2- Avaliação da função das células endoteliais

Feita pela paquimetria ultra-sônica, ou seja, medida da espessura corneana. Sabemos que o pobre funcionamento do endotélio corneano leva ao edema de córnea e conseqüente aumento progressivo da espessura corneana. Este exame é também uma avaliação indireta do funcionamento do endotélio corneano, entretanto, mais próximo à realidade do que somente a avaliação da anatomia celular, pois a espessura corneana está diretamente relacionada ao funcionamento das células endoteliais 6, 7.

Existem algumas condições pré-operatórias específicas que diminuem a população endotelial e, portanto, a perda celular após a facectomia será maior nestes casos, os quais requerem cuidados redobrados. Exemplos disto são córnea "guttata", 8 cirurgia prévia do segmento anterior (como por exemplo transplante de córnea) 7, síndrome de pseudo-esfoliação 9, 10 e diabete mélito 11.

Córnea "guttata" é uma situação relativamente freqüente em pacientes acima de 60 anos de idade. Isto não significa que todos estes pacientes apresentem Distrofia de Fuchs ou que venham a desenvolver descompensação corneana após a facectomia. Uma das maiores dificuldades é avaliar qual o paciente que possui um endotélio resistente ao trauma cirúrgico da facectomia, por menor que este seja, e qual o que irá descompensar a córnea e que necessita, portanto, de indicação de transplante de córnea concomitante à extração da catarata.

Mais importante que um exame isolado (seja da morfologia ou da função endotelial) é a avaliação periódica deste endotélio ao longo do tempo. É a única maneira de sabermos se aquele endotélio está em sofrimento e em deterioração progressiva. Se acompanharmos este paciente ao longo do tempo, previamente à cirurgia da catarata, saberemos se está havendo alguma alteração endotelial progressiva.

Por exemplo, uma microscopia especular que revela 1800 células/mm2 pode ser considerada normal se este paciente nos últimos anos tinha esta mesma contagem. Entretanto, se sua contagem normal era de 2500 células /mm2 há 2 anos, isto é um dado objetivo da diminuição da população endotelial deste paciente. O mesmo se aplica à paquimetria, ou seja, uma espessura corneana de 600µ pode ser normal se sempre foi esta. Entretanto, se este paciente era acompanhado com paquimetrias periódicas, e sua paquimetria normal era de 500µ, o valor mais alto é sinal de que este endotélio está deficiente, sob o ponto de vista funcional, e não está conseguindo manter a espessura corneana dentro dos padrões de normalidade daquele indivíduo. Ou seja, terá uma grande chance de não resistir ao trauma cirúrgico da facectomia, por menor que ele seja.

Daí a importância de avaliação morfológica (reflexão especular ou microscopia especular) e funcional (paquimetria ultra-sônica) periódica do endotélio em pessoas portadoras de córnea "guttata".

É difícil estabelecer um número limite, seja da população endotelial seja da espessura corneana, a partir do qual a córnea irá descompensar após a facectomia, e portanto estaria indicada a cirurgia tríplice (associada ao transplante penetrante de córnea) e não somente a cirurgia da catarata. Entretanto, sabemos que uma população endotelial com menos de 1000 células/mm2 e/ou paquimetrias superiores a 650µ geralmente indicam provável descompensação (imediata ou tardia) da córnea após a cirurgia da catarata. Entretanto, não é raro examinarmos córneas transparentes com menos de 1000 células/mm2 e com espessura maior que 650µ.

Como salientamos anteriormente, mais importante que um número isolado, é a documentação da perda progressiva deste endotélio ou do aumento progressivo da espessura corneana ao longo do tempo. Além disto, alguns dados clínicos são extremamente importantes na avaliação pré-operatória do endotélio em paciente portadores de córnea "guttata", quais sejam, edema corneano epitelial matinal, com conseqüente sintomatologia (sensação de areia, dor e diminuição da acuidade visual) ao acordar. Isto reflete um aumento de espessura corneana ao acordar, devido ao pobre funcionamento endotelial, com conseqüente maior edema fisiológico noturno.

Optamos, portanto, pela realização de somente a cirurgia da catarata em pacientes com córnea "guttata" quando:

- não houver perda endotelial progressiva (documentada pela microscopia especular e pela paquimetria ultra-sônica);

- a espessura corneana for inferior a 650m;

- a contagem celular endotelial for superior a 1000 céls/mm2;

- não houver edema corneano, sensação de areia, dor ou diminuição da acuidade visual ao acordar;

- não houver franco edema de córnea.

Em qualquer situação oposta às das acima, procedemos à cirurgia tríplice, ou seja, transplante penetrante de córnea, facectomia e implante de lente intra-ocular, devido ao já grande comprometimento endotelial.

 

FATORES TRANS-OPERATÓRIOS

Independentemente da técnica cirúrgica utilizada, há uma perda celular endotelial média imediata com a cirurgia de catarata moderna, em córneas normais, de 10% a 20% 12, 13, e uma perda progressiva crônica durante, no mínimo, 10 anos após a cirurgia de 2,5% ao ano 14, 15 . Esta perda é 2,5 a 8 vezes maior que a perda anual normal, devido ao envelhecimento, de um olho não operado 14. A perda crônica endotelial após a facectomia em córnea "guttata" passa para 7,5% ao ano 14. Devemos, portanto, estar cientes de todos os fatores potencialmente lesivos ao endotélio corneano durante uma cirurgia de catarata, e protegermos da melhor forma esta camada celular tão importante para a perfeita transparência corneana.

1- Trauma cirúrgico

Obviamente, um dos maiores fatores de insulto ao endotélio corneano, independente da técnica cirúrgica, é a pouca habilidade do cirurgião em manipular os instrumentos cirúrgicos e a lente intra-ocular (LIO) na câmara anterior 7. Este é atualmente um dos fatores mais importantes na lesão endotelial durante a cirurgia da catarata.

A manipulação adequada do instrumental cirúrgico e da LIO pode, por exemplo, provocar descolamento da membrana de Descemet, e consequentemente, perda endotelial progressiva 7.

2- Trauma químico

Perda endotelial pode decorrer de soluções inadequadas infundidas na câmara anterior, tais como, água destilada, soro fisiológico não balanceado, conservantes, resíduos químicos tóxicos de esterilização de material (detergentes, formol, etc.), concentração e/ou pH inadequados de antibióticos, anestésicos, ou qualquer outra solução 7, para citar alguns.

Aqui vale lembrar o uso de corantes da cápsula anterior, cada vez mais utilizados para a realização da capsulorrexe na ausência do reflexo vermelho. Os menos tóxicos são o azul de tripan 0,1% e a indocianina verde 0,5% 16-18. Entretanto, aconselha-se a corar a cápsula sob bolha de ar para uma maior proteção endotelial.

O uso também recente de anestésicos intra-camerulares em associação à anestesia tópica tem demonstrado não ser um fator adicional à perda endotelial durante a facoemulsificação 19-22.

3- Lentes intra-oculares

Sabe-se que as lentes intra-oculares (LIOs) atuais, com bordas bem acabadas, lisas, desenho e polimento adequados, além de materiais biocompatíveis não aumentam em nada a perda endotelial na cirurgia da catarata, desde que adequadamente manipuladas na câmara anterior, sem toque da LIO com o endotélio 13-25.

As LIOs de câmara anterior (CA) de alças rígidas e/ou fechadas e as LIOs de fixação iriana estão abandonadas devido a grande perda endotelial que provocaram nas décadas de 70 e 80 25, 26.

Já as LIOs de CA de alças flexíveis e abertas, do tipo Kelman multiflex® têm hoje comprovadamente segurança semelhante à das LIOs de câmara posterior (CP), no que diz respeito à agressão endotelial. A perda endotelial com estas LIOs de CA varia de 11,5% a 32%, comparada com 7,6% a 25% das LIOs de CP 25, 27-29.

Não há também diferença na perda endotelial em relação aos diversos materiais utilizados atualmente para a confecção das LIOs (PMMA, poli-hema, acrílico e silicone) 24, 30-32 . O PMMA é um material utilizado há aproximadamente meio século, já bem conhecido em relação à tolerância das estruturas intra-oculares a ele, a chamada biocompatibilidade. Na realidade, os materiais utilizados atualmente para a manufatura de LIOs dobráveis são até mais biocompatíveis que o PMMA, provocando menor perda celular ao toque direto com o endotélio corneano. Dos materiais utilizados atualmente, o mais biocompatível e portanto com menor perda endotelial ao toque direto, é o hidrogel (poli-hema), seguido pelo silicone, acrílico e, por último, o PMMA. 24

4- Visco-elásticos

Outro grande avanço no campo da cirurgia da catarata foi o maior entendimento e desenvolvimento de melhores agentes visco-elásticos. Uma das importantes funções dos visco-elásticos é a proteção endotelial às manobras na CA (de facoemulsificação, de implante de LIO, etc.). Os visco-elásticos que melhor protegem o endotélio corneano são os dispersivos, com alta viscosidade e baixa tensão superficial, pois detém a qualidade de manterem-se aderidos ao endotélio corneano durante a movimentação de instrumentos, LIO ou soluções de irrigação na CA 33-35.

Cabe aqui lembrar que o ar talvez tenha sido o primeiro agente utilizado na tentativa de reduzir o dano endotelial nas cirurgias de catarata 35. Sabe-se que o ar, entretanto, é discretamente endotélio-tóxico, provavelmente devido a fenômenos de tensão superficial 37, 38.

5- Facoemulsificação x Extracapsular

Nos primórdios da facoemulsificação, quando se realizava esta cirurgia na câmara anterior sem agentes visco-elásticos adequados, a perda endotelial era bem maior que na extração extracapsular da catarata (7-28% contra 12-38%, respectivamente) 39-41. Com a realização da faco dentro do saco capsular e com adequado agente visco-elástico, a perda endotelial caiu para níveis bem menores (5-15%). 41

Atualmente a facoemulsificação realizada corretamente proporciona uma menor perda endotelial que a extração extracapsular da catarata, devido a vários fatores, entre eles o menor tempo cirúrgico, a manutenção da câmara anterior fechada durante a cirurgia, e a ausência do toque do núcleo do cristalino com o endotélio durante e a expressão do mesmo na extracapsular. 13,42

Diversos são os fatores que podem lesar o endotélio durante a facoemulsificação, além dos já citados anteriormente:

a) Tipo de incisão: as incisões em córnea clara induzem discreto aumento na perda endotelial em relação ao túnel escleral, entretanto diferença não significativa43-45. Portanto, realizamos túnel escleral em casos onde necessitamos uma maior proteção endotelial, como por exemplos em pacientes portadores de córnea "guttata" ou tendo transplante de córnea prévio 44.

b) Tamanho da incisão: quanto menor a incisão, menor a perda endotelial 43.

c) Toque de fragmentos do núcleo: este talvez seja o fator mais importante em relação à lesão endotelial. O contato direto dos fragmentos nucleares com o endotélio durante a facoemulsificação é hoje considerado um dos maiores fatores de agressão ao endotélio, e portanto isto está diretamente relacionado à dureza do núcleo.46

d) Efeito "surge": após o término da emulsificação e aspiração de um fragmento nuclear com alto vácuo, a desoclusão súbita da ponteira da caneta de vácuo provoca um colapso abrupto da câmara anterior, devido à continuidade instantânea do vácuo previamente formado. Diversos mecanismos foram desenvolvidos nas máquinas modernas de facoemulsificação para controlar este efeito, protegendo, portanto, o endotélio. 47

e) Tempo de ultra-som, Turbulência ultra-sônica, Movimentação de fluidos: atualmente, as incisões auto-selantes pequenas proporcionam uma menor quantidade de movimentação de fluidos na CA e maior controle da CA. Os facoemulsificadores mais potentes e com controle "anti-surge", associados ao uso de visco-elásticos protetores do endotélio, nos possibilitam uma menor turbulência ultra-sônica na CA 48, 49.

f) Técnicas de faco: a cirurgia moderna de facoemulsificação, especialmente para os núcleos mais densos, deve ser aquela que quebra o núcleo em diversos fragmentos antes da facoemulsificação propriamente dita, para diminuir o tempo de faco e a quantidade de fragmentos nucleares lançados contra o endotélio corneano, reduzindo, portanto, a lesão destas células 12, 50.

g) Angulação da abertura da ponteira de titânio da caneta de faco: além do maior controle "anti-surge", da maior potência dos facoemulsificadores, das melhores técnicas de fragmentação nuclear, a maior angulação da abertura da ponteira de titânio da caneta de faco proporciona uma eficiência maior, diminuindo o tempo de ultra-som necessário para emulsificar um fragmento nuclear denso. Angulações de 90° são mais eficientes, mais rápidas, e portanto, induzem à menor perda endotelial que as de 30° 48.

 

FATORES PÓS-OPERATÓRIOS

Certas condições pós-operatórias da cirurgia de catarata adicionam risco para a descompensação endotelial, especialmente se o trauma cirúrgico foi maior e/ou se o endotélio apresentava previamente algum grau de sofrimento.

1- Contato com outras estruturas

O contato direto do endotélio corneano com a íris, hialóide anterior e/ou LIO, como mencionado anteriormente, é fator adicional para maior perda celular no pós-operatório da catarata, independentemente da técnica utilizada 7.

2- Hipertensão ocular

O aumento da pressão intra-ocular para níveis superiores a 40 mmHg, especialmente de maneira prolongada, é também fator adicional para o aumento da lesão endotelial. 7

3- Inflamação

Processo inflamatório exacerbado, como por exemplo em pacientes portadores de uveíte, endoftalmite infecciosa ou mesmo asséptica, também é motivo adicional de perda celular endotelial 7.

4- Crescimento epitelial para a câmara anterior

Esta complicação é felizmente cada vez menos freqüente com as modernas técnicas de microcirurgia do segmento anterior. Entretanto, a proliferação epitelial para a câmara anterior vai substituindo o endotélio sadio de maneira irreversível e, portanto, comprometendo significativamente sua função de bomba ativa de desidratação corneana 7.

 

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Médico do Setor de Córnea do Serviço de Oftalmologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
Mestre e Doutor em Oftalmologia.
Ex-fellow Doheny Eye Institute ¾ University of Southern California.


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