Open Access Peer-Reviewed
Editorial

Transplante de glândulas salivares labiais no tratamento do olho seco grave

Transplantation of labial salivary glands for severe dry eye treatment

Eduardo Jorge Carneiro Soares1; Valênio Perez França1

DOI: 10.1590/S0004-27492005000400012

RESUMO

OBJETIVO: Estudar os efeitos clínicos da secreção das glândulas labiais como alternativa de lubrificação ocular para alívio do olho seco, avaliar a durabilidade dos resultados e simplificar a técnica. MÉTODOS: Estudo prospectivo de 37 cirurgias de enxerto glândulo-mucoso, composto pela mucosa labial e glândulas salivares subjacentes, colocado no fórnice conjuntival de 21 pacientes. Todas as cirurgias foram realizadas em olhos com grave xeroftalmia, sendo a técnica do procedimento descrita em todos os detalhes. Os parâmetros que serviram para a análise comparativa dos resultados foram o quadro clínico, o brilho ocular, o quadro biomicroscópico, a visão e o uso de colírios lubrificantes. RESULTADOS: A integração do enxerto ocorreu em 97,2% das cirurgias que foram realizadas durante o período de julho/2000 a janeiro/2004. Foi observado que em 91,9 % dos casos houve melhora dos parâmetros avaliados e a evolução (acompanhamento médio de 19,7 meses) mostrou persistência e estabilidade dos resultados. As complicações observadas foram: um olho com infecção hospitalar e três pálpebras com ptose. CONCLUSÃO: A melhora clínica do olho seco grave observada após o enxerto das glândulas salivares labiais foi estatisticamente significativa. A lubrificação da superfície ocular produzida pela secreção salivar mostrou ser eficiente, bem tolerada e constante. O transplante das glândulas salivares labiais para o fórnice conjuntival demonstrou ser procedimento de fácil execução, acessível a qualquer cirurgião oftalmologista.

Descritores: Glândulas salivares; Conjuntiva; Ceratoconjuntivite seca; Lubrificação; Lágrimas; Aparelho lacrimal; Transplante autólogo

ABSTRACT

PURPOSE: To study the clinical effects of the secretion of transplanted labial glands used as ocular lubricant to treat severe dry-eye cases, to evaluate the duration of the results and to simplify the surgical technique. METHODS: Thirty-seven surgeries were performed in twenty-one patients during the period of July 2000 to January 2004. The graft, consisting of labial mucosa and underlying salivary glands, was transplanted to the previously prepared area in the conjunctival fornix. All procedures were recommended in severe dry-eye cases, that is, eyes with total or nearly total xerophthalmia. The preoperative and postoperative protocols are presented emphasizing the items which were used in the comparative analysis of the results as well as the technical description of the surgical procedure. RESULTS: The graft survival and integration into the host tissues were observed in 97.2% of the cases. The clinical improvement, demonstrated by the disappearance of the symptoms, better biomicroscopic aspect of the ocular surface, better vision and disuse of lubricant drops, was observed in 91.9% of the cases. The follow-up showed not only persistence but also stability of the results. Infection represented one case and ptosis represented three cases of the only four observed complications. CONCLUSION: The improvement of severe dry-eye cases detected after the transplantation of labial salivary glands is significant. It demonstrates that the lubricant ocular surface produced by the salivary secretion is efficient and well-tolerated. The follow-up shows that the result persists in the long term from which it is concluded that the production of the secretion is permanent. The surgical technique of transplanting the labial salivary gland to the conjunctival fornix is very simple and easily accessible to any ophthalmic surgeon.

Keywords: Salivary glands; Conjunctiva; Keratoconjunctivitis Sicca; Lubrification; Tears; Lacrimal apparatus; Transplantation, Autologous


 

 

INTRODUÇÃO

O olho seco (ceratoconjuntivite seca, xerofalmia) é causado por deficiência na produção da lágrima, seja na quantidade, seja na qualidade ou constituição. O quadro clínico se manifesta por queixas subjetivas com intensidade muito variável, que vão desde uma irritação ou desconforto nos olhos até graves lesões da superfície ocular com perda da visão. Apesar das inúmeras novas fórmulas de produtos substitutivos da lágrima, o tratamento conservador nos casos graves é ainda frustrante e a oclusão dos pontos lacrimais e as cantorrafias não são suficientemente eficazes. Na ausência de secreção lacrimal, os enxertos de córnea, de limbo ou de membrana amniótica estão quase sempre fadados ao insucesso.

Com o objetivo de melhorar a qualidade de vida desses pacientes, alguns procedimentos cirúrgicos podem estar indicados, optando-se por um ou por outro de acordo com a gravidade do quadro clínico. Didaticamente esses recursos podem ser agrupados da seguinte maneira:

A) Cirurgias dos pontos lacrimais destinadas a impedir a drenagem da pouca lágrima produzida, de modo a prolongar a sua presença sobre a superfície ocular e manter a lubrificação.

B) Cirurgias da rima palpebral que reduzem a área exposta da superfície ocular e conseqüentemente diminuem a evaporação da lágrima.

C) Cirurgias de transplantes glandulares que substituem a lágrima pela secreção salivar através dos transplantes das glândulas salivares para o fórnice conjuntival.

Esse último grupo de procedimentos tem sido explorado desde que Filatov e Chevalijev, em 1951, descreveram a transferência do ducto de Stenon, da parótida, para o fundo de saco conjuntival, com o objetivo de complementar a lubrificação ocular com a saliva(1).

Esse artigo relata a experiência dos autores com o procedimento descrito por Murube em 1998, que consiste em implantar, em um leito preparado no fórnice conjuntival, um enxerto glândulo-mucoso composto pela mucosa labial e glândulas salivares subjacentes(2). Os nossos objetivos foram estudar clinicamente os efeitos dessa secreção salivar como alternativa de lubrificação ocular para alívio do olho seco, avaliar os resultados ao longo do tempo e oferecer simplificações técnicas para tornar o procedimento acessível de ser executado por qualquer cirurgião oftalmologista.

 

MÉTODOS

A cirurgia foi realizada em 37 olhos de 21 pacientes portadores de Olho seco grave, entre julho/2000 e janeiro/2004, nos Serviços de Plástica Ocular do Hospital São Geraldo, Hospital Mater Dei e da Policlínica Oftalmológica. Todos os pacientes consentiram em se submeter à cirurgia proposta, após terem sido esclarecidos a respeito do procedimento. A indicação cirúrgica obedeceu aos critérios elaborados segundo a classificação de Murube(3) que divide os casos em discretos moderados e graves. Para esse estudo foram selecionados somente os olhos com xerose total ou quase total, com intenso sofrimento da superfície ocular e perda visual.

O protocolo elaborado para avaliação pré-operatória descrito a seguir serviu tanto para a seleção dos pacientes quanto para a avaliação dos resultados.

No exame foram documentados inicialmente os dados da anamnese oftalmológica dirigida para a causa da afecção (Tabela 1), evolução da doença e tratamentos realizados, incluindo as cirurgias prévias já realizadas (Tabela 2).

 

 

As informações sobre o estado atual da doença incluíram os sintomas referidos pelo paciente, a medicação em uso e o exame oftalmológico de rotina. No quadro sintomatológico, as queixas referidas por todos os pacientes foram de ardor, secura, sensação de corpo estranho, fotofobia e coceira. Todos os pacientes estavam em uso de colírios lubrificantes de maneira constante com intervalos muito curtos. O exame oftalmológico incluiu o exame externo, visão, tonometria, biomicroscopia e oftalmoscopia. Em todos os olhos, a avaliação da superfície ocular mostrou sofrimento do epitélio e as córneas apresentavam graus variáveis de irregularidades da espessura, nubéculas ou leucomas e invasão vascular de maior ou menor intensidade.

Na avaliação específica do olho seco consideramos clinicamente relevante a análise ectoscópica do aspecto externo da superfície ocular, principalmente em relação ao seu brilho: se ausente, atestava a falta total e completa da secreção lacrimal (xeroftalmia).

O quadro clínico do olho seco foi então considerado grave em todos os pacientes(3), mas no nosso protocolo este grupo foi subdivido em dois, conforme ainda existisse a presença de algum brilho residual na superfície ocular ou não; com a ausência do brilho significando xeroftalmia completa (Tabela II).

Constou também a informação de qualquer queixa do paciente a respeito da salivação e do estado da mucosa oral, especialmente dos lábios. A queixa de boca seca ou a presença de gengivites, espessamentos ou ceratinização da mucosa labial foram motivos para contra-indicar o procedimento e excluir o paciente deste estudo.

No protocolo pós-operatório as anotações para a análise dos resultados registraram as informações sobre o aspecto cirúrgico e sobre as alterações observadas no quadro clínico (sintomas), ectoscopia (brilho), aspecto biomicroscópico da superfície ocular, acuidade visual, sobre o uso de colírios lubrificantes e complicações observadas.

Técnica

O procedimento foi realizado, na maioria dos casos, sob anestesia local com sedação monitorizada por anestesista, em regime ambulatorial. Os casos bilaterais foram realizados no mesmo ato cirúrgico. A área receptora foi o fórnice superior em 91,9% dos procedimentos e o fórnice inferior em 8,1%.

1- Preparação do leito receptor no fórnice conjuntival (Figura 1): Inicialmente a pálpebra deve ser evertida com o retrator de Desmarres, fixando-a em posição adequada com uma rédea de fio 5.0 passada na margem palpebral. Em seguida injeta-se anestésico xilocaína 2% sem vasoconstritor no espaço subconjuntival para separar a mucosa do plano muscular subjacente (músculo de Müller) e facilitar a dissecção. A incisão da conjuntiva deve ser preferentemente feita a meio caminho entre a borda superior do tarso e o fundo do fórnice, no sentido horizontal, estendendo por cerca de 2 cm a partir do canto medial, paralela à curva da borda superior do tarso. Na maioria dos casos que apresentam seqüelas cicatriciais da conjuntiva, a simples incisão da mucosa provoca a sua retração, deixando o leito aberto em forma de elipse, necessitando apenas da dissecção das margens da ferida para que sejam depois suturadas ao enxerto. O objetivo é criar uma área cruenta fusiforme na face posterior da pálpebra superior, de aproximadamente 2 cm de comprimento por 1 cm de altura, com o leito constituído pelo músculo de Müller. Quando o enxerto é colocado na pálpebra inferior, o leito é formado pelo plano dos músculos retratores. Ambas essas estruturas são ricamente vascularizadas.

2- Obtenção do enxerto: O enxerto glândulo-mucoso é obtido do lábio superior ou inferior, ou mesmo de ambos, nas áreas onde a população glandular é mais numerosa e onde o acesso cirúrgico é muito fácil (Figura 2). A incisão em elipse da mucosa labial, com 2 a 3 cm de comprimento por 1cm de largura, deve ser aprofundada até o plano muscular. Em seguida, com uma tesoura de pontas rombas, retira-se o enxerto fazendo uma dissecção seguindo o folheto areolar que separa o manto glandular do plano muscular.

 

 

O enxerto é assim retirado em um conjunto único, constituído pela mucosa e glândulas salivares subjacentes, com seus microscópicos condutos excretórios intactos. Essas pequenas glândulas, engastadas na lâmina própria da mucosa, umas maiores outras menores, apresentam-se aglomeradas como cacho de uvas, formando um manto entre o epitélio e o plano muscular dos lábios(2).

3- Sutura do enxerto (Figura 3): O enxerto glândulo-mucoso deve ser então levado para o leito receptor com a face glandular em contato com a superfície cruenta. A conjuntiva é suturada à mucosa do enxerto, de forma contínua, com fio de nylon 6.0, com as extremidades do fio enodadas na pele sobre um pequeno chumaço de algodão.

A área doadora é fechada com uma sutura contínua de nylon 6.0, deixando também as extremidades do fio fixadas externamente sobre a pele do lábio. Assim se evita a presença de enodamentos na face interna da pálpebra ou do lábio, que podem causar sensação de corpo estranho e desconforto no pós-operatório.

4- Medicação pós-operatória: A medicação incluiu apenas colírio de antibiótico (uma gota 4 a 6 vezes ao dia) durante uma semana.

O transplante de glândulas salivares labiais foi feito de maneira isolada em dez (10) olhos e em 27 olhos o procedimento foi complementado, no mesmo ato cirúrgico, com uma ou mais das seguintes cirurgias corretivas: simbléfaro, triquíase, entrópio e recobrimento da córnea com membrana amniótica (Tabela 3).

 

RESULTADOS

O seguimento dos pacientes foi feito por 3 a 46 meses, com média de 19,7 meses (Tabela 4). O aspecto pós-operatório imediato dos casos de transplantes glândulo-mucosos feitos de maneira isolada (10 olhos), ou seja, sem nenhum outro procedimento associado, apresentou discreto a moderado edema e congestão das pálpebras e da conjuntiva, semelhantes ao de uma blefaroplastia, que desapareceram após oito a dez dias. As queixas relativas ao desconforto pós-operatório imediato foram mínimas, relatadas como leve dor nos movimentos oculares mais amplos e sensação de pálpebra mais pesada.

Os enxertos apresentaram-se com aspecto pálido somente nas primeiras 24 horas, mas sem nenhum sinal de sofrimento, sendo sua incorporação vital à área receptora processada naturalmente, readquirindo a sua coloração rosada original a partir do segundo dia do pós-operatório. Nos doze (12) olhos em que o enxerto foi colocado intencionalmente em áreas com simbléfaro (9 no fórnice superior e 3 no inferior), houve melhora significativa da amplitude do fórnice.

A área doadora no lábio mostrou a aparência semelhante à de um leve trauma cirúrgico, sem dor ou incômodos importantes. A ferida resultou em uma cicatriz linear quase inaparente.

O alívio dos sintomas do olho seco foi observado já logo nos primeiros dias, traduzido pela sensação de umidade e maior conforto para abrir o olho, além da melhora subjetiva da acuidade visual. Estas modificações no quadro clínico foram referidas pela totalidade dos pacientes com exceção apenas de um caso (BSP) que apresentou infecção hospitalar pós-operatória.

Também foi observado que no pós-operatório houve recuperação do brilho da superfície ocular acompanhado de grande diminuição do quadro irritativo, da fotofobia e do blefaroespasmo reacional existentes no pré-operatório (Figura 4).

O quadro biomicroscópico de sofrimento epitelial desapareceu completamente em todos os casos. com exceção de três (3 olhos) que apresentaram discreta ceratite puntata inferior no pós-operatório tardio.

A melhora objetiva da visão foi constatada em 32 olhos, ou seja, em 86,4% dos casos (Tabelas 2 e 4). Consideramos melhora da visão quando o paciente subiu um ou mais degraus na escala visual além da medida pré-operatória.

Quinze olhos (40,5%) operados não usaram mais os colírios lubrificantes, demonstrando que a produção da "lágrima salivar" era suficiente e estável. Dois pacientes relataram lacrimejamento ocasional em um dos olhos operados.

Foi também observado que em quatorze olhos (37,9%) os pacientes tiveram necessidade de voltar a usar lágrimas artificiais em determinadas situações, como em ambientes com ar condicionado, exposição ao vento, trabalhando por longo tempo em computador ou assistindo televisão ou ainda voltaram a usar o colírio simplesmente por estarem ansiosos ou emocionalmente instáveis. Sete olhos (18,9%) permaneceram com lubrificação insuficiente, mas o uso do colírio ficou restringido a uma freqüência menor que no pré-operatório. Desses sete olhos, cinco (13,5%) foram submetidos a um enxerto complementar para aumentar a lubrificação com sucesso, perfazendo o total de trinta e quatro (91,9%) olhos que deixaram de usar ou diminuíram a freqüência de uso das lágrimas artificiais.

No olho direito de uma criança de 8 anos (B.S.P.) com simbléfaro total bilateral causado pela síndrome de Stevens Johnson, em que foi realizado um enxerto de membrana amniótica associado com o transplante glândulo-mucoso em toda a extensão do fórnice superior, houve insucesso total da cirurgia devido à infecção hospitalar (2,7%).

As complicações observadas foram de um caso com infecção hospitalar e três casos de ptose parcial definitiva, isto é, irreversível.

 

DISCUSSÃO

Todos os pacientes estudados apresentavam grave deficiência de produção lacrimal e lubrificavam seus olhos com lágrimas artificiais de maneira quase constante. Muitos deles apresentavam visão incapacitante decorrente de lesões causadas por doenças muco-sinequiantes ou autoimunes, por queimaduras e iatrogenias. Trinta olhos já tinham sido submetidos a várias cirurgias, incluindo oclusões dos pontos lacrimais, correção de entrópios, triquíase, simbléfaros e enxertos de córnea, estes últimos todos mal sucedidos (Tabela 2).

As glândulas salivares têm sido exploradas como fontes alternativas para lubrificar a superfície ocular desde Filatov e Chevalijev, que em 1951 descreveram a transferência do ducto de Stenon da parótida para o fundo de saco conjuntival, com o objetivo de tratar o olho seco com a saliva(1). No entanto, esse procedimento apresentava algumas desvantagens tais como a epífora constante, exacerbada pelo estímulo da mastigação(4), e a natureza serosa da secreção da parótida, muito diferente da composição do filme lacrimal. Mas na experiência de um dos autores desse artigo, que realizou alguns casos na década de 60, a principal complicação que levou esse procedimento ao desuso foi a elevada freqüência de parotidites, provocada pela contaminação retrógrada da glândula pela flora conjuntival (Soares).

Descrita por Murube em 1986(5), a transferência da glândula submandibular para a região temporal, conectada ao fórnice superior pelo ducto de Wharton, é que tem apresentado melhores resultados(6-7). A principal desvantagem dessa técnica é sua maior complexidade e o tempo de execução, aproximadamente 6 horas em mãos experientes, inacessível(7). É um procedimento realizado sob anestesia geral e exige do cirurgião uma grande experiência em micro-cirurgia vascular, pois a interrupção do suprimento sanguíneo por mais de uma hora pode causar grave dano ao parênquima glandular comprometendo o sucesso do transplante. Além disso a glândula submandibular é estimulada por via reflexa pela mastigação.

Em 1998 Murube(2) descreveu a técnica do enxerto de glândulas labiais submucosas. Os resultados deste procedimento estão descritos na literatura em casos isolados(8) ou com pouco tempo de evolução(9).

Em conjunto, as glândulas salivares ditas menores (labiais, genianas, linguais e palatinas), em condições basais produzem cerca de 50% da saliva total(10). Entre elas, as glândulas labiais são mais numerosas que as outras e de mais fácil acesso cirúrgico. A sua secreção é aquo-serosa e mucosa, com características biofísicas e bioquímicas não muito diferentes da lágrima, sendo muito bem tolerada pela superfície ocular.

Os testes de Schirmer, "break-up time" e coloração da superfície ocular com rosa bengala não foram realizados nesse estudo porque existia intensa fotofobia e blefaroespasmo, além do processo irritativo-inflamatório causado pelo entrópio, triquíase, simbléfaro e lagoftalmo retrátil, que estavam presentes em todos os casos antes da cirurgia (Tabela 2).

A área de nossa preferência para colocar o enxerto ocupa os dois terços mediais do fórnice superior, preservando-se o terço lateral nos casos em que ainda existe produção lacrimal, por menor que seja. Nos olhos com secura total utilizamos toda a extensão do fórnice. Quando existe simbléfaro no fórnice, mesmo que seja no inferior, o enxerto pode ser colocado nessa área após serem desfeitas as aderências, corrigindo concomitantemente o defeito (Tabela 3). É importante ressaltar que o enxerto vai precisar de um leito bem vascularizado para sobreviver, motivo pelo qual temos tido o cuidado de evitar a vasoconstrição local e a cauterização excessiva.

A técnica do procedimento é simples e apresentou mínima morbidade. A integração do enxerto ao leito receptor se processou já nas primeiras 48 horas, evidenciada pela rápida recuperação da coloração normal e pela melhor lubrificação observada concomitantemente com a recuperação do brilho da superfície ocular, alívio dos sintomas e melhoria das condições visuais.

A melhora clínica observada após o enxerto, juntamente com a diminuição do uso dos colírios lubrificantes são devidas ao fato da secreção dessas glândulas conter elementos que conservam e protegem a superfície ocular principalmente através da mucina produzida em maior quantidade, que aumenta a viscosidade da "lágrima salivar". Essa secreção mais consistente diminui a evaporação e forma uma camada humidificante mais duradoura e estável(9).

Os resultados observados se mantiveram estáveis ao longo do período de evolução de até 4 anos, com acompanhamento médio de 19,7 meses. A melhoria da lubrificação foi comprovada pela análise comparativa dos parâmetros estudados no pré e pós-operatório mostrando objetivamente a recuperação do brilho ocular, do quadro biomicroscópico da superfície ocular e da visão. Essa nossa observação pode ainda ser confirmada pela presença de amilase encontrada em diversas concentrações na "lágrima salivar" colhida no pós-operatório de alguns dos nossos pacientes(11). A inferência que podemos fazer é que a melhor lubrificação é produzida pela secreção das glândulas enxertadas, pois esses pacientes apresentavam xeroftalmia grave antes do transplante. A estabilidade da produção pode ser ainda corroborada pelo estudo histológico da biópsia de um enxerto obtida após 3 meses da cirurgia, que mostrou a presença de ácinos glandulares e ductos contendo mucina e infiltrado linfocitário(8).

No entanto, quando se trata de doença auto-imune, o paciente pode ser acometido por um processo inflamatório recorrente no pós-operatório tardio, o que pode levar à recidiva do olho seco. Esse fato foi observado em três olhos nos quais houve recidiva do sofrimento epitelial após processo inflamatório ocorrido no pós-operatório tardio de dois olhos com síndrome de Stevens Johnson e de um olho com penfigóide. Nesses pacientes um novo enxerto foi realizado com sucesso. A possibilidade de repetição do enxerto das glândulas salivares labiais constitui outra vantagem do procedimento.

As complicações observadas foram de um caso com infecção hospitalar e três casos de ptose parcial definitiva, em pacientes que apresentavam deformidades palpebrais graves com simbléfaros, entrópios e retrações cicatriciais.

O resultado de um transplante parece não estar relacionado com a causa etiológica do olho seco, pois resultados ótimos foram observados tanto nos pacientes com síndrome de Stevens Johnson quanto nos pacientes que tiveram a glândula lacrimal removida cirurgicamente. É importante ressaltar que o nosso estudo, analisando os resultados de 37 olhos operados e a evolução ao longo de 4 anos, corrobora as observações descritas em publicações anteriores(8-9).

A ausência de grupo controle é justificada pela dificuldade de fazer esse estudo em pacientes com olhos secos graves e também pelo fato de não apresentarem melhora espontânea em sua evolução natural.

 

CONCLUSÕES

A melhoria do quadro clínico e biomicroscópico do olho seco grave observada após o enxerto das glândulas salivares labiais é significativa e demonstra que a lubrificação da superfície ocular produzida pela secreção salivar é eficaz. Sendo mais viscosa, essa secreção contribui para diminuir a evaporação, formando uma camada humidificante mais duradoura e estável.

O acompanhamento dos casos mostrou que os resultados persistiram ao longo do período de tempo estudado (4 anos com acompanhamento médio de 19,7 meses), demonstrando que a produção da "lágrima salivar" é constante e estável.

A indicação do enxerto deve ser a princípio limitada a olhos com xeroftalmia grave, com sofrimento da superfície ocular causado pela falta total da lágrima.

O transplante das glândulas salivares labiais para o fórnice conjuntival é um procedimento de fácil execução, acessível a qualquer cirurgião oftalmologista.

 

REFERÊNCIAS

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2. Murube J. Labial salivary gland transplantation in severe dry eye. Oculoplast Orbital Reconstr Surg. 1998;1:104-10.         

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9. Raus P. Radiosurgery aids in salivary gland transplants for severe dry eye. Ocular Surg News. 2003;12:15-6.         

10. Murube J. Cirugía substitutiva del ojo seco y transplantes glandulares. In: Murube J, editor. Ojo seco. Quito: Tecnimedia; 1997. p.207-21.         

11. Pereira MGB. Dosagem da amilase na lágrima de pacientes submetidos a transplante de glândula salivar labial [tese]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2004.         

 

 

Endereço para correspondência
Eduardo J.C. Soares
Rua Timbiras, 3468
Belo Horizonte (MG) Cep 30140-062
E-mail: [email protected]

Recebido para publicação em 07.10.2004
Versão revisada recebida em 16.02.2005
Aprovação em 08.04.2005

 

 

Trabalho realizado no Setor de Plástica Ocular do Departamento de Oftalmologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); da Clínica de Olhos do Hospital Mater-Dei e da Policlínica Oftalmológica.
Nota Editorial: Após concluída a análise do artigo sob sigilo editorial e com a anuência do Dr. Élcio Hideo Sato sobre a divulgação de seu nome como revisor, agradecemos sua participação neste processo.


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