Antonio Augusto Velasco e Cruz1
DOI: 10.1590/S0004-27492005000100028
CARTAS AO EDITOR
Ribeirão Preto, 10 de dezembro de 2004
Triste órbita, ó quão dessemelhante...
O título parafraseia um famoso poema de Gregório de Mattos (poeta baiano do século XVII), musicado na década de setenta por Caetano Veloso. O tom do poema é amargo, adequado ao tema dessa comunicação.
É impressionante, a conduta que alguns colegas oftalmologistas tomam em relação Bs patologias orbitárias. Esse assunto já foi tema de um editorial que escrevi para a Revista Brasileira de Oftalmologia e não pretendo ser repetitivo, mas não posso deixar de registrar a minha inconformidade quando vejo oftalmologistas encaminhando, sem nenhum critério, doenças orbitárias a neurocirurgiões.
Recentemente, recebi em minha clínica particular uma senhora, do interior do Brasil, de condição social humilde que, movida pelo calvário que estava vivendo a sua filha, fez um esforço extraordinário para vir a Ribeirão Preto e pagar uma consulta particular. Resumidamente, a história é a seguinte. Sua filha de 14 anos, apresentou durante cerca de 10 meses, dor e proptose moderada no olho esquerdo. Como o quadro estava piorando, procurou um oftalmologista que depois de inúmeras consultas e várias ultrassonografias, solicitou um exame de ressonância magnética de órbitas e a encaminhou a um neurocirurgião.
O especialista em patologia do sistema nervoso central, pediu para a realização da cirurgia uma soma incompatível com a realidade socio-econômica da família . Devido a impossibilidade da cirurgia na rede privada, o colega a encaminhou ao Sistema Único de Saúde de sua cidade. Após meses de espera, a paciente finalmente conseguiu acesso a um serviço de neurocirurgia público em outra localidade (700 a 800 km de distância) onde finalmente foi operada. Para grande surpresa de todos (da mne, da paciente e provavelmente do cirurgião) após uma operação de 10 horas o tumor não foi inteiramente retirado e o resultado do exame anátomo-patológico foi dado como inconclusivo, porque o cirurgião se esqueceu de fixar o material obtido da órbita. Após a paciente foi encaminhada a um oftalmologista para corrigir a ptose e o estrabismo induzidos pelo tratamento.
Semanas após a cirurgia, a paciente procurou o nosso serviço. Ao exame mostrava: AV: OD = 1,0, OE = 0,5, proptose desfigurante B esquerda, hipotropia e exotropia do OE. Nesse olho, a tomografia computadorizada de órbitas revela sinais inequívocos de retirada cirúrgica do teto da órbita e uma massa que preenchia todo o conteúdo orbitário e portanto estava adjacente ao lobo frontal esquerdo. Biópsia transconjuntival revelou um rabdomiossarcoma do tipo alveolar que é o subtipo de pior prognóstico.
Quase um ano depois da neurocirurgia, a paciente já está no terceiro ciclo de quimioterapia, vai fazer radioterapia e o seu prognóstico é sombrio, pois o seu tumor que era estritamente orbitário foi transformado em para-meníngeo pelo equivocado encaminhamento do caso.
Até quando oftalmologistas brasileiros vão continuar encaminhado patologias orbitárias a neurocirurgiões? O caso relatado nessa carta não é único. Tenho conversado com outros oftalmologistas que operam órbitas e todos têm experiências semelhantes.
Acho que o Conselho Brasileiro de Oftalmologia além de ser um órgão de defesa de classe, tem responsabilidades na formação continuada dos oftalmologistas brasileiros. A órbita é um tema abandonado pelo Conselho pois a cada congresso nacional de oftalmologia escolhe temas ligados unicamente ao bulbo ocular.
Dessa maneira, enquanto a oftalmologia brasileira caminha cada vez mais para ser tornar uma forma sofisticada de optometria, os doentes com problemas orbitários sofrem por falta de educação médica da classe.
Antonio Augusto Velasco e Cruz
Prof. Associado, Chefe do Setor de Órbita, Pálpebras e Vias Lacrimais do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - USP