Flávia Augusta Attié de Castro1; Antonio Augusto Velasco Cruz2; Fernando Chahud1
DOI: 10.1590/S0004-27492004000100027
RESUMO
Em crianças, as inflamações orbitárias idiopáticas são extremamente raras e de difícil diagnóstico. O presente trabalho tem por objetivo descrever um caso de inflamação orbitária idiopática aguda em criança de um ano e um mês de idade, que evoluiu com importante seqüela oculomotora. Além do estudo de caso, discute-se o diagnóstico diferencial entre a celulite orbitária e as inflamações orbitárias idiopáticas e faz-se uma revisão da literatura sobre a ocorrência das inflamações orbitárias idiopáticas na infância.
Descritores: Estrabismo; Doenças orbitárias; Diagnóstico diferencial; Celulite; Inflamação; Órbita; Tomografia computadorizada por raios x; Neoplasias orbitárias; Relato de caso; Criança
ABSTRACT
In children, idiopathic orbital inflammations are extremely rare and difficult to diagnose. The present study describes one case of idiopathic orbital inflammation in a one-year-old child that led to important oculomotor impairment. The differential diagnosis between idiopathic orbital inflammation and orbital cellulitis is discussed and the literature on the idiopathic orbital inflammation in childhood is reviewed.
Keywords: Strabismus; Orbital diseases; Differential diagnosis; Celulitis; Inflammation; Orbit; Tomography x-ray computed; Orbital neoplasms; Case report; Child
INTRODUÇÃO
As inflamações orbitárias idiopáticas agudas (IOIA) são processos inflamatórios orbitários de caráter autoimune(1). Existem vários subtipos de IOIA sendo que a classificação mais usada é a proposta por Rootman(2) que distingue 5 tipos básicos conforme a estrutura orbitária acometida: a) lacrimal, b) miosítica, c) anterior, d) difusa e e) apical. Durante muito tempo esses processos foram coletivamente designados como pseudotumores orbitários. Atualmente, a expressão "pseudotumor" tem caído em desuso em virtude de seu pobre caráter descritivo.
A IOIA é comum em adultos e rara em crianças(3). Os sinais e sintomas comumente encontrados nessa condição são edema e hiperemia palpebrais, proptose, alteração da motilidade, diplopia e dor. Em crianças, pode haver comprometimento sistêmico na forma de febre, cefaléia, vômitos e mal-estar geral(1, 3-4).
O diagnóstico é determinado pela história clínica, exames físico geral e oftalmológico, exames de imagem orbitária, especialmente tomografia computadorizada (TC) de órbita/seios da face com contraste, evolução clínica, hemograma, e, se necessário, estudo anátomo-patológico(1).
Embora todas as patologias indutoras de quadros agudos orbitários como neoplasias, orbitopatia de Graves, doenças granulomatosas, mucocele, vasculites, traumas e corpo estranho façam parte do diagnóstico diferencial da IOIA(1,5), o principal diagnóstico diferencial é a celulite orbitária, processo grave de infecção pós-septal, comum em crianças.
O objetivo do presente trabalho é relatar um caso de IOIA em uma criança que evoluiu com déficit oculomotor e ilustrar as dificuldades diagnósticas da IOIA no tocante à diferenciação na infância, entre essa condição e a celulite orbitária.
RELATO DE CASO
A paciente G.M.T, de um ano e um mês de idade, foi referida ao setor de pediatria da Unidade de Emergência do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto. Sua mãe relatava edema na pálpebra superior esquerda da criança há 3 dias, com piora progressiva, seguida de acometimento da pálpebra inferior. Há dois dias apresentava picos febris diários (38ºC) e há um dia secreção purulenta no olho afetado. Referia também inapetência, queda do estado geral, choro fácil e irritabilidade. Negava trauma, picada de insetos e outras queixas sistêmicas.
Ao exame oftalmológico havia edema e hiperemia palpebrais importantes, pequena quantidade de secreção mucropurulenta nos fórnices e quemose. Córnea, câmara anterior, íris, pupila e cristalino não apresentavam alterações. Havia proptose e diminuição importante da motilidade do olho esquerdo em todas as direções (-3). Como o aspecto clínico era inteiramente compatível com celulite orbitária (Figura 1) exames complementares direcionados para a caracterização de uma infecção bacteriana orbitária (hemograma, cultura da secreção conjuntival, hemocultura) foram solicitados e antibioticoterapia de largo espectro instituída (oxacilina e ceftriaxona). Foi solicitada uma tomografia computadorizada orbitária (TC).
O hemograma revelou leucocitose sem desvio à esquerda (Leucócitos 24.000 bastões 4%, segmentados 59%, linfócitos 37%), plaquetas: 318.000; hipocromia e microcitose. Os neutrófilos mostravam moderadas granulações tóxicas. A hemocultura foi negativa e na cultura da secreção conjuntival houve crescimento de pneumococo.
A TC revelou importante infiltração periescleral à esquerda, deslocando globo ocular para baixo e anteriormente. Não havia sinais de acometimento de seios da face (Figura 2).
Como após uma semana de antibioticoterapia não foi notada qualquer melhora do quadro clínico, optou-se por repetir a TC, que mostrou que o processo infiltrativo em nada tinha regredido com o tratamento instituído (Figura 3).
Foi então realizada biópsia sob anestesia geral da gordura orbitária anterior, que revelou processo inflamatório difuso, em algumas áreas perivascular, predominantemente neutrofílico, com alguns linfócitos, macrófagos, plasmócitos e ocasionais eosinófílos, associado a extensas áreas de necrose e ausência de alterações sugestivas de neoplasia ou processos específicos; pesquisas de fungos, bacilo álcool ácido resistentes e histiócitos foram negativas.
Não havendo confirmação de processo infeccioso ou neoplásico e o laudo sendo compatível com IOIA, foi iniciada corticoterapia via oral. Já nos primeiros dias da corticoterapia foi notada nítida melhora do quadro; o edema, a quemose e a proptose diminuíram e o estado geral da criança melhorou. A corticoterapia foi mantida por um mês, com gradativa redução da dose. A criança apresentou grande melhora, porém, tem, como seqüela, restrição da motilidade ocular no olhar para cima (-3) (Figura 4). Após um ano do processo agudo, nota-se exotropia constante de 20D e hipotropia de 12D do olho esquerdo (segundo o método de Krimsky, com medida realizada com fixação a 6m).
DISCUSSÃO
O presente caso ilustra as dificuldades para se estabelecer o diagnóstico de inflamação orbitária idiopática aguda na infância. Os dados obtidos na história e exame físico podem ser confusos e facilmente conduzir o médico ao diagnóstico errôneo de celulite orbitária.
A paciente G.M.T. apresentava todos os sinais e sintomas de um processo orbitário agudo que evoluiu com sinais e sintomas sistêmicos. Esse quadro é totalmente compatível com celulite orbitária e motivou o início de antibioticoterapia sistêmica. A evolução clínica não favorável após antibioticoterapia de largo espectro e, principalmente, o padrão radiológico tornaram pouco provável o diagnóstico de infecção orbitária.
A TC é de fundamental importância na diferenciação entre celulite orbitária e IOIA. No primeiro caso, geralmente há sinusopatia concomitante e as imagens sugerem infiltração difusa da gordura orbitária, descolamento da periórbita (abscesso subperiósteo) ou sinais de abscesso intra-orbitário. O quadro radiológico da paciente era distinto. Não havia sinusopatia e na órbita detectava-se uma infiltração predominantemente periescleral, achado típico das IOIA anteriores(6-7).
Devido à raridade da IOIA na infância, realizou-se uma biópsia da conjuntiva da gordura orbitária anterior, que mostrou um exuberante e difuso infiltrado inflamatório que tendia a ser perivascular. Curiosamente, não havia, como nas IOIA de adultos, um predomínio linfo-plasmocitário. Embora misto, o tipo celular tendia a ser perivascular e era predominantemente neutrofílico, um padrão histopatológico raro, mas já descrito em IOIA de crianças(2,4). O diagnóstico de IOIA foi plenamente confirmado pela grande melhoria do quadro após instituição da corticoterapia.
O prognóstico das IOIA em longo prazo é muito variável e depende do grau de acometimento inicial, resposta terapêutica, número de recidivas e fibrose residual. A paciente em questão evoluiu com intenso processo cicatricial, levando a importante restrição das rotações oculares (-3), principalmente na elevação, mas também notada na tentativa de abdução e adução do olho acometido (Figura 4). Após um ano do processo agudo, nota-se exotropia constante de 20D e hipotropia de 12D do olho esquerdo (segundo o método de Krimsky, medidas feitas com fixação a 6m).
Em resumo, acreditamos que o presente caso ressalta a necessidade de se ter em mente o diagnóstico de IOIA em todos os casos de orbitopatia aguda sugestivos de celulite orbitária. A ausência de sinusopatia e um quadro radiológico atípico são altamente sugestivos de IOIA, mesmo em crianças.
REFERÊNCIAS
1. Berger JW, Rubin PA, Jakobiec FA. Pediatric orbital pseudotumor: case report and review of literature. Int Ophtalmolol Clin 1996;36:161-77.
2. Rootman J. Inflammatory diseases. In: Rootman J. editor. Diseases of the orbit. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins; 2003. p 455-99.
3. Sirbaugh DPE. A case of orbital pseudotumor masquerading as orbital cellulitis in a patient with proptosis and fever. Pediatr Emerg Care 1997;13: 337-9.
4. Mottow-Lippa L, Jakobiec FA, Smith M. Idiopathic inflammatory orbital pseudotumor in childhood II. Results of diagnostic tests and biopsies. Ophthalmology 1981;88:565-74.
5. Field B, Milner RS, McDonough B, Zerefos D. Orbital pseudo-pseudotumor in a four-year-old. N Engl J Med 1994;330:1094.
6. Jakobiec FA, Bilyk JB, Font RL. Orbit. In: Spencer WH, editor. Ophthalmic pathology. Philadelphia: W. B. Saunders; 1996. p.2830.
7. Weber AL, Jackobiec FA, Sabates NR. Pseudotumor of the orbit. Neuroimaging Clin North Am 1996;6:73-92.
Endereço para correspondência
Antonio Augusto Velasco e Cruz
Hospital das Clínicas - Campus Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço
Av. Bandeirantes, 3900
Ribeirão Preto (SP) CEP 14048-900
E-mail: [email protected]
Recebido para publicação em 27.11.2002
Versão revisada recebida em 10.02.2003
Aprovação em 06.03.2003