Nely Maria de Oliveira Moura1; Ana Regina Cruz Vlainich2; Isaac Neustein3
DOI: 10.1590/S0004-27492004000100018
RESUMO
OBJETIVO: Avaliar a correlação entre os achados da ultra-sonografia ocular no pré-operatório e os achados intra-operatórios na vitrectomia via pars plana. MÉTODOS: Em estudo prospectivo 21 olhos, que tinham indicação prévia de vitrectomia via pars plana, foram submetidos ao exame por um ultra-sonografista experiente e classificados em grupos de acordo com os achados. O valor preditivo positivo foi determinado a partir da correlação entre os achados de exame no pré-operatório e aqueles observados durante a cirurgia. RESULTADOS: A indicação mais freqüente das vitrectomias foi a hemorragia secundária à retinopatia diabética proliferativa (16 olhos). O valor preditivo positivo da ultra-sonografia ocular foi de 80%. A melhor correlação entre os achados dos exames e os cirúrgicos foi para os casos de opacidade vítrea isolada e de descolamento total de retina. O melhor prognóstico visual foi observado no grupo que tinha apenas hemorragia vítrea sem descolamento de hialóide ou de retina. CONCLUSÕES: A ultra-sonografia ocular tem boa acurácia para detectar as alterações provenientes da inter-relação entre retina e vítreo.
Descritores: Ultra-sonografia; Vitrectomia; Corpo vítreo; Corpo vítreo; Retina; Retina; Confiabilidade da tecnologia; Cuidados pré-operatórios; Estudos prospectivos
ABSTRACT
PURPOSE: To evaluate the percentage of agreement between the findings of the ophthalmic ultrasonography in preoperative cases with vitreous opacities and the intraoperative findings in pars plana vitrectomy. METHODS: In a prospective study, 21 eyes with previous indication for pars plana vitrectomy underwent A- and B-scan ophthalmic ultrasonography by an experienced ultrasonographer and were graded into groups according to the findings. The accuracy of preoperative ultrasonography was determined by the agreement between the preoperative findings and those observed during surgery. RESULTS: The most frequent indication for vitrectomy was hemorrhage secondary to proliferative diabetic retinopathy (16 eyes). The overall accuracy of ultrasound examination in determining the retinal status in these cases was 80%. The agreement was more precise for the cases of isolated vitreous opacity and total retinal detachment. The best visual prognosis was observed in the group with only vitreous hemorrhage and no vitreous or retinal detachment. CONCLUSIONS: Ophthalmic ultrasonography has good accuracy in demonstrating structural changes in the vitreous body and retina.
Keywords: Ultrasonography; Vitrectomy; Vitreous body; Vitreous body; Retina; Retina; Technology reliability; Preoperative care; Prospective studies
INTRODUÇÃO
A ultra-sonografia (US) ocular é considerada importante na avaliação pré-operatória de cirurgias vítreo-retinianas(1-3) por ser um exame complementar indolor, não invasivo, de baixo custo e fácil execução, identificando e localizando as alterações do segmento posterior(4-5).
A realização do exame por um ultra-sonografista experiente ajuda o cirurgião de retina e vítreo na escolha prévia da técnica cirúrgica, ou seja, se haverá apenas remoção do corpo vítreo ou também retirada de membranas, uso de explante escleral ou de substitutos do vítreo(3,6). Pode-se, assim, estimar o melhor momento para a intervenção cirúrgica e a sua duração, melhorar o resultado pós-operatório no que se refere à acuidade visual(7), e possibilitar a aferição do custo do procedimento cirúrgico.
A opacidade vítrea mais comum e a principal indicação de vitrectomia via pars plana (VVPP) é a hemorragia vítrea, secundária à retinopatia diabética proliferativa(2), seguida por oclusões vasculares e descolamento de retina (DR) regmatogênico. O processo inflamatório do vítreo, estéril ou infeccioso, também pode ocasionar opacidade severa, com formação de aderências da hialóide posterior à retina e de membranas inflamatórias. As imagens ultra-sonográficas das adesões vitreorretinianas e do DR tracional são semelhantes e sua distinção, muitas vezes, somente poderá ser feita no intra-operatório.
O presente estudo pretende avaliar a correlação entre os achados ultra-sonográficos no exame pré-operatório, realizado nas opacidades do vítreo que não permitiam visualizar o fundo do olho, e os achados intra-operatórios na VVPP.
MÉTODOS
Foram avaliados no Serviço de Oftalmologia do Hospital do Servidor Público do Estado de São Paulo (HSPE), prospectivamente, 21 olhos no período de agosto de 2000 a setembro de 2001.
O estudo foi previamente submetido e aprovado pelo Comitê de Ética Médica do HSPE.
A seleção dos pacientes foi baseada na indicação prévia de VVPP como método terapêutico e/ou propedêutico. Foram excluídos os que permitiam boa avaliação oftalmoscópica do fundo do olho, ou tinham cirurgia do vítreo prévia, com utilização de substitutos do vítreo (gás, óleo de silicone), que impossibilitariam ou dificultariam a análise dos achados da US.
Dezessete pacientes foram selecionados, 8 do sexo masculino e 9 do sexo feminino. Quatro casos foram bilaterais. A média de idade foi de 64,56 anos (51-79 anos).
A indicação para a US ocular no pré-operatório foi a opacidade do vítreo (hemorragia ou processo inflamatório), que dificultava o exame de oftalmoscopia binocular indireta.
Foram submetidos a exame de ultra-sonografia com aparelho Allergan Humphrey A/B-Scan System 835, com transdutor de 10 MHz, pelo mesmo examinador, de acordo com a técnica convencional(4,8), sendo o transdutor posicionado trans-palpebralmente e o paciente, em posição supina, fazendo-se as análises quantitativas (avaliação da reflexibilidade) e topográficas (relações anatômicas). A distinção entre as alterações encontradas nos exames foi baseada em critérios previamente descritos(4-5,7) considerando-se, principalmente, os achados na avaliação dinâmica, com a determinação da mobilidade e presença ou não de aderências dos ecos à parede ocular.
O intervalo entre o US e a cirurgia variou de 1 dia (1 olho), 8 dias (17 olhos), 10 dias (3 olhos) Os achados foram classificados em cinco grupos(7,9), sendo estes:
I. Hemorragia ou inflamação vítrea, sem aderência da hialóide posterior à retina.
II. Hemorragia ou inflamação do vítreo, com aderência vitreorretiniana, sem descolamento tracional de retina.
III. Descolamento tracional de retina focal, ou em tenda, em apenas um quadrante.
IV. Descolamento tracional de retina multifocal, em até três quadrantes.
V. Descolamento total de retina.
Além das US, os pacientes foram submetidos à avaliação pré-operatória com exame oftalmológico completo, incluindo medida da acuidade visual com melhor correção, pela tabela de Snellen; biomicroscopia; tonometria de aplanação e oftalmoscopia binocular indireta (dificultada pela opacidade do vítreo) e feita avaliação pré-anestésica, clínica e laboratorial.
A VVPP foi realizada em todos os pacientes com vitreófago D.O.R.C. Type 6000-LC, por dois cirurgiões experientes, que tinham conhecimento prévio dos resultados dos exames ultra-sonográficos.
Utilizou-se técnica cirúrgica convencional de VVPP, com anestesia retro-bulbar. Foi realizada troca fluido-gasosa com implante de óleo de silicone, nos descolamentos extensos de retina. Em um caso de endoftalmite, foi feita injeção de antibiótico intravítreo. Ao final de cada cirurgia, foi realizada injeção subconjuntival de dexametasona e gentamicina.
O primeiro autor estava presente nos exames e nas cirurgias, para assegurar a fidedignidade dos dados, não interferindo, entretanto, nas condutas terapêutica e/ou propedêutica indicadas. Os dados foram arquivados nos prontuários e posteriormente avaliados, correlacionando-se os achados intra-operatórios e os previamente verificados pelas US oculares.
RESULTADOS
A doença que mais freqüentemente determinou a indicação de vitrectomia, foi a hemorragia vítrea, conseqüente à retinopatia diabética proliferativa (16 casos), seguida por doença venosa oclusiva da retina, associada à hipertensão arterial sistêmica (2); descolamento de retina regmatogênico (1); uveíte posterior (1) e endoftalmite infecciosa (1).
A acuidade visual (AV) inicial variou de 20/40 a percepção luminosa (20/2500), movimentos de mão (20/1600) e conta dedos (20/800). Em 13 olhos (62%) verificou-se AV igual a 20/1600. Considerou-se como AV final a visão que não se modificasse por um período de 1 mês, após a cirurgia (Tabela1), sendo que 47% (10 casos) dos olhos, melhoraram. No grupo I houve melhora em 75% dos casos e no grupo II houve melhora da AV em apenas 33,34% dos casos (Tabela 2). Foram consideradas causas de piora, no grupo I: glaucoma neovascular (1 caso); no grupo II, ressangramento (2 casos), descolamento de retina regmatogênico por iatrogenia (1 caso) e phthisis bulbi (1 caso); no grupo III, ressangramento (2 casos), no grupo IV, ressangramento (1 caso); e no grupo V, persistência do descolamento de retina, com 3 olhos evoluindo para phthisis bulbi.
Através da correlação entre os achados intra-operatórios e os previamente encontrados nas US oculares foi determinado o valor preditivo positivo (VPP), que mede a probabilidade de existir um achado na cirurgia, quando presente no exame, de 80%, e sensibilidade (S) de 94% (Tabela 3). Para os grupos I e II, que apresentavam apenas descolamento do vítreo posterior (DVP) sem DR, a S foi de 100% e o VPP, de 71,4%. A S para o DR nos grupos III, IV e V foi de 87,5% e o VPP, de 70%.
No pós-operatório, foram modificadas as posições de casos, entre os grupos, inicialmente estabelecidas pelos exames (Tabela 3). Um caso do grupo II passou para o grupo I, ou seja, não foram observadas aderências vitreorretinianas no intra-operatório; 2 casos do grupo III passaram para o grupo II, porque havia apenas adesão sem DR; 1 caso do grupo III passou para o grupo IV, porque mais de um quadrante estavam comprometidos; e 1 caso do grupo IV, em que não foi observado DR, mas apenas aderências, passou para o grupo II.
DISCUSSÃO
As opacidades do corpo vítreo são indicação freqüente de vitrectomia(10), quando não se resolvem espontaneamente. A VVPP é geralmente indicada nos casos de opacidades severas e prolongadas; na presença de tração retiniana envolvendo a área macular; na presença de DR já estabelecido, ou para fins diagnósticos, como nos casos de uveítes posteriores e endoftalmites(3).
Em nosso estudo, a maioria das opacidades foram provenientes de hemorragia secundária à retinopatia diabética proliferativa (16 de 21 olhos). O processo fisiopatológico da retinopatia diabética inclui a proliferação de neovasos retinianos e de tecido fibroglial que, freqüentemente, aparece adjacente ao neovaso e torna-se aderente ao vítreo. Os neovasos podem sangrar espontaneamente pela fragilidade vascular ou pela contração do vítreo, que pode também tracionar e descolar a retina. O DR regmatogênico pode decorrer de um DVP em que o vítreo se encontrava fortemente aderido a uma área de degeneração da retina. A hemorragia pode se originar, ainda, da fragilidade da parede vascular e da formação de neovasos, por alterações isquêmicas, como oclusões venosas da retina. Nas opacidades do vítreo pelas uveítes posteriores, as lesões exsudativas de coróide e retina, liberam células inflamatórias para a cavidade vítrea e formando membranas que podem exercer tração sobre a retina.
A US ocular permite demonstrar: 1) a extensão e a localização das opacidades vítreas; 2) se a opacidade está situada no corpo vítreo ou no espaço sub-hialoideo; 3) a presença e a extensão do DVP e de vitreosquise; 4) a existência de aderências vitreorretinianas e de membranas e 5) a morfologia da tração por elas exercidas (focal, multifocal ou extensa). Permite, ainda, 6) identificar a presença de DR e 7) se há envolvimento macular, o que pode alterar significativamente o prognóstico visual(10).
Nos modos A e B, a hemorragia ou a inflamação, aparecem como pontos dispersos na cavidade ou sob a membrana hialóide e geralmente não causam dúvidas diagnósticas, como constatado no grupo I (Tabela 3). A membrana hialóide não impregnada por sangue ou inflamação mostra-se como eco com alta mobilidade e baixa reflexibilidade, ou seja, baixa amplitude em relação à linha de base; se aderida, tem sua mobilidade diminuída, e ainda, quando impregnada, tem alta reflexibilidade. A acurácia da US ocular para hialóide é muito boa, alcançando até 95% para casos de DVP isolado segundo a literatura(10-11). Neste estudo, encontrou-se VPP de 84% para a percepção de DVP parciais, ao US.
O DR tracional é visto como uma elevação da retina de configuração angular e imóvel, evidenciando-se, na maioria das vezes, a adesão da membrana que provoca a tração. O DR total aparece como eco membranáceo inserido na papila e estendendo-se até a ora serrata, pouco móvel ou imóvel e com alta reflexibilidade. Também nos casos de DR total, a concordância entre os achados dos exames de US ocular e os cirúrgicos é alta, incluindo a localização das áreas de aderência vitreorretiniana sem DR tracional, chegando a 93% na literatura(10) e, neste estudo, a 100%.
No entanto, em algumas situações, a distinção entre os ecos membranáceos torna-se difícil, mesmo para um ultra-sonografista experiente. Membranas vítreas muito densas, impregnadas por inflamação ou sangue e proliferações fibróticas podem simular DR. Nestes casos a concordância entre o exame e a cirurgia diminui, sendo de 77,9% (10), como pode ser observado avaliando-se os grupos III e IV.
Dois casos do grupo III e um caso do grupo IV não tiveram o DR comprovado pela cirurgia. Os achados dos exames correspondiam a áreas de fibrose com adesão, sem DR tracional.
Analisando-se todos os casos, pode-se considerar que a US ocular tem boa acurácia para detectar alterações morfológicas na cavidade vítrea, com valores de 78 a 85% (2) e (12), respectivamente. No presente estudo, o VPP da US ocular no pré-operatório, foi de 80%.
Outros fatores, além da dificuldade de distinguir as imagens, podem contribuir para este índice. Entre eles, a modificação da relação vitreorretiniana causada pela injeção de fluido durante a vitrectomia(10), e o período de tempo decorrido entre o exame e a cirurgia, já que a retinopatia diabética proliferativa é uma doença progressiva e pode-se alterar em poucos dias. O DR tende a ser superestimado, pois, o ultra-sonografista, por cautela, prefere sugerir um diagnóstico, mas não excluí-lo. Para o cirurgião esta informação é importante, pois ele fica advertido das alterações que podem ser encontradas durante a cirurgia e assim, planejar adequadamente o procedimento a ser realizado.
Na literatura, o prognóstico visual tende a ser melhor nos casos em que não há DR(7,11-12). Em concordância, no presente estudo, a melhor acuidade visual final foi do grupo I (75%) e a pior, ao contrário do descrito na literatura, foi a do grupo II, no qual não havia DR, mostrando a gravidade e a imprevisibilidade dos olhos candidatos à vitrectomia.
CONCLUSÕES
Conclui-se que a US ocular tem boa acurácia para detectar as alterações morfológicas da cavidade vítrea, fornecendo ao cirurgião de retina e vítreo, condições para o planejamento da VVPP.
REFERÊNCIAS
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Endereço para correspondência
Nely Maria de Oliveira Moura
Travessa Turiano Meira, 748/02
Santarém (PA) CEP 680005-430
E-mail: Nely - [email protected]
Isaac Neustein - [email protected]
Recebido para publicação em 13.11.2002
Versão revisada recebida em 08.05.2003
Aprovação em 27.06.2003
Trabalho realizado no Departamento de Oftalmologia do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo HSPE.
Nota Editorial: Pela análise deste trabalho e por sua anuência na divulgação desta nota, agradecemos à Dra. Norma Allemann.