DOI: 10.1590/S0004-27492003000100022
VÁRIAS
OBITUÁRIO
Armando Gallo
17/09/1910 - 03/03/2002
Harley Bicas
Filho de Carlo Gallo e Adelaide Pannunzio Gallo, viúvo de Cacilda Ferreira Gallo (ex-Presidente da Associação Brasileira de Ortóptica), mas sem descendência direta, Armando Gallo, já afastado de trabalhos de atendimentos clínicos, em merecido recolhimento pelo muito que já havia feito pela Oftalmologia, deixou-nos tão discretamente, em março, que seu passamento se deu despercebido pela maioria de seus amigos, atribulados com a cotidiana correria. O que não justifica que, pelo atraso, os Arquivos Brasileiros de Oftalmologia pudessem deixar de homenageá-lo registrando, principalmente para os mais novos, um esboço desse que foi, em seu tempo de atividades, um dos mais expressivos e atuantes representantes de nossa especialidade.
Graduado em 1934 pela Faculdade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, especializou-se na Clínica de Oftalmologia "Santa Luzia" da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (1935/36) e completou seus conhecimentos na Faculdade de Medicina de Paris. Foi Professor Adjunto da Clínica Oftalmológica da Policlínica de São Paulo, Chefe da Clínica Oftalmológica do Hospital Municipal de São Paulo (1939) e docente do Curso de Especialização Oftalmológica do Centro de Estudos de Oftalmologia da E.P.M., entidade da qual se orgulhava de haver recebido a medalha de ouro Moacyr Álvaro.
Deixando marcas por onde passava, fundou a Associação Médica do Hospital Samaritano e a Sociedade Médica do Hospital Municipal. Ainda no Samaritano foi Presidente da Comissão de Ética e ajudou a criar uma outra Associação, originária desse Hospital, a de Assistência à Criança Defeituosa (A.A.C.D.). Foi também Presidente da Sociedade de Oftalmologia de São Paulo, Chefe da Divisão de Eugenia da Secretaria de Higiene do Município de São Paulo e Redator-chefe da Revista de Oftalmologia de São Paulo que, de certo modo, é a antecessora dos A.B.O.
Em sua coletânea de poesias intitulada "Olhos, olhares e olheiras" dá como sua profissão: "Zelador", mas completa "Zelador do mais valioso dos tesouros: os olhos". E, na capa, prefacia, desafia: "Este despretensioso livro não é choramingueiro ou pedinchão. Não tem valor pecuniário estipulado. Este fica ao critério e sensibilidade do leitor. Nele não há lamúrias, apenas pinceladas e rabiscos de literatice. Sendo de seu agrado e tocando sua sensibilidade, envie um donativo à Fundação Dorina Nowill para Cegos", seguindo-se o endereço e a conta bancária.
Um amigão, generoso e sensível.
OBITUÁRIO
Santos Pedro Tanganelli
29/06/1921 - 23/10/2002
Harley Bicas
E pronto: lá se vai mais um amigo, desta vez o garboso e aprumado Tanganelli, o jovial e sorridente Tanga, mestre da frase bem feita, na forma e no conteúdo. Sincero e objetivo Tanga, sutil e brincalhão, que em uma das muitas reuniões do Centro Brasileiro de Estrabismo a que dava o prestígio de sua presença, começou sua aula mais ou menos assim: "Não me dirijo aos professores que me precederam, todos brilhantes, pois que ensinam das alturas, mas entre eles. Falarei ao oftalmologista da barranca do Rio Grande, que sou como um deles e como tal sei de suas precisões". E a um início desse, temperado com sua postura de "lord" inglês, sua entonação de locutor (e o foi, conduzindo durante bom tempo parte de um programa televisivo na TV Bandeirantes), sua figura toda elegante, quem poderia resistir a não lhe ter simpatia? Era de se invejar.
Delicado e percuciente Tanga. Encontro-o no avião em viagem a Punta del Este e depois de abraços e saudações, o afago e a correção "Comprei seu livro e o estou lendo, com gosto. No Prefácio..." (ele lia prefácios!) e lá vinha uma observação irrecorrível, fruto de seu excelente conhecimento de nosso vernáculo. Um purista. Recentemente ganhara um prêmio por seu texto "A Palavra Bom Senso". Escrevia com a clareza de seu raciocínio límpido, em prosa e verso, com a graça do poeta que sempre foi. Na "Carta a meu pai", alegadamente endereçada a ele próprio, a medida de sua emotividade latina com raízes mediterrâneas; e em "Estatutos do Medíocre", um pequeno livro, expõe a verve do intelectual brilhante, exorcizando a mesmice e aquilo que nunca foi: o banal.
Em Oftalmologia, legou-nos uma preciosidade originalíssima, o método para medição de desvios combinados horizontais e verticais, por meio de um único prisma, dando-lhe a inclinação correta pelo uso de vidros de Maddox. Isso inicialmente, pois sua criatividade simplificadora logo o conduzia a apresentar (precisamente na aludida reunião de Punta del Este, 1992) como seus instrumentos técnicos (que poderiam ser preparados até nas barrancas de qualquer rio), a improvisação de ranhuras paralelas numa lâmina plástica transparente (como a de uma caixinha de fita "cassete") e um filtro vermelho (de celofane). Era de se invejar!
Nascido no dia de São Pedro em São Paulo e aí criado, formou-se pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo em 1948, mas antes de Rubem Cunha, com o qual compunha um par de pares (com as esposas) inseparável. Com a doença do amigo, também se afastou perceptivelmente de reuniões e congressos, privando-nos de sua alegria. É possível que não nos quisesse mostrar sua dor, certamente reavivando a da perda de seu filho Alberto, em trágico acidente (1973) de cuja lembrança e saudade se esvaia o sorriso e a fortaleza de seu ânimo. Só não quis ir antes com ele se encontrar, por seus outros queridos filhos Marcelo e Carmem Dulce e pela Dulce amada, por quem pretendia abdicar de sua clínica e cidade, mudando-se à dela, São Manuel, de onde a tirara. E só para lhe ofertar, na velhice, o aconchego de suas irmãs e famílias que haviam lá ficado. Tudo já planejado, não deu tempo. Mas era de se invejar.
Adeus Tanganelli, querido amigo
Carlos R. Souza-Dias
Morreu o Tanganelli, esse tão querido amigo de todos nós. É difícil aceitar que não mais gozaremos da alegria da sua companhia.
Poucas pessoas conheci com tanto amor à vida. O Tanga gostava de tudo o que fazia, tudo fazia com amor e entusiasmo. Mas não era egocêntrico; possuía a rara qualidade de apreciar e elogiar carinhosamente as qualidades dos colegas.
As agruras da vida desmancharam o famoso "par de vasos". Quem freqüentou as reuniões do CBE há alguns anos, teve a grata satisfação de gozar da companhia da dupla Tanganelli Ruben Cunha, sempre juntos e sempre enfeitando as nossas jornadas. O Rubão, por motivo de saúde, já não o acompanhava há alguns anos.
O Tanganelli possuía aguçada capacidade de percepção dos detalhes da estrabismologia, mas era modesto, não publicava. Deixou como contribuição à especialidade esse método tão inteligente e útil para a determinação do valor e do eixo do prisma a ser prescrito para pacientes com diplopia, hoje adotado universalmente. Mas, como sempre, não o publicou; publicou-o o Dr. Arthur Jampolsky, um dos seus grandes amigos. Sinto um prazer imenso agora, quando vejo que divulguei o seu método, com grande destaque, no livro de estrabismo que publiquei, junto com Julio Prieto-Díaz, nos Estados Unidos e no Brasil, e que pude dar-lhe essa alegria enquanto ainda vivia.
Adeus Tanga, descanse em paz, na companhia do seu dileto filho, por quem tanto chorou, sabendo que a sua lembrança estará sempre presente na memória dos que tiveram o privilégio de ser seus amigos.