Open Access Peer-Reviewed
Editorial

Corticoterapia e Uveítes

Corticosteroid therapy and uveitis

Luciana Peixoto Finamor1; Francisco Finamor Jr2; Cristina Muccioli3

DOI: 10.1590/S0004-27492002000400018

RESUMO

Os corticosteróides têm sido utilizados na prática clínica desde 1949, e seus efeitos benéficos na oftalmologia, principalmente nas doenças inflamatórias e autoimunes, é indiscutível. O artigo discute os tipos mais comuns de corticóides usados na oftalmologia, suas indicações, efeitos adversos e vias de administração.

Descritores: Corticosteróides; Corticosteróides; Uveíte; Corticosteróides

ABSTRACT

Corticosteroids have been used in clinical practice since 1949, and their potential beneficial effects in Ophthalmology, including inflammatory and autoimmune diseases, are now a fact. Nowadays, these steroids are used, systemically or locally, to treat a constellation of eye diseases. This article considers the most used corticosteroids in Ophthalmology, their indications, their side effects, and routes of administration.

Keywords: Adrenal cortex hormones; Adrenal cortex hormones; Uveitis; Adrenal cortex hormones

INTRODUÇÃO

Os corticóides são hormônios de natureza esteroídica produzidos na porção cortical das glândulas adrenais e constituem três famílias: os glicocorticóides, os mineralocorticóides e os andrógenos adrenais(1). O principal glicocorticóide é o cortisol (ou hidrocortisona), cuja taxa de secreção no homem é de 10 a 20 mg nas 24 horas. Sua concentração média no plasma é de 14 mg/dl, entretanto, seus níveis variam amplamente durante o período de 24 horas, atingindo valores mais elevados nas primeiras horas da manhã (15 a 25 mg/dl) e diminuindo gradualmente para 2 a 5 mg/dl no final do dia(1-2).

O excesso dos glicocorticóides (exógeno ou endógeno) suprime a resposta imunológica normal, sendo esta propriedade imunossupressora a que melhor caracteriza as suas indicações terapêuticas para o tratamento dos processos inflamatórios, doenças auto-imunes e para a viabilização de transplantes(2-4).

Os corticóides foram introduzidos na prática médica em 1949, para o tratamento da artrite reumatóide. Suas indicações, desde então, se espalham pelas diversas especialidades médicas, incluindo a dermatologia, a endocrinologia, a oncologia e a oftalmologia(3). São agentes que simulam os esteróides hormonais endógenos produzidos no córtex adrenal: o cortisol (glicocorticóide) e a aldosterona (mineralocorticóide). Os glicocorticóides são regulados primariamente pela corticotropina (ACTH), enquanto que os mineralocorticóides pelo sistema renina-angiotensina e possuem propriedades de retenção de sal(4).

O efeito antiinflamatório e imunossupressor dos glicocorticóides ocorre devido às suas seguintes ações(1-4):

1. Interferem na circulação das células imunes, diminuem o número de linfócitos periféricos, principalmente linfócitos T e inibem o acúmulo de neutrófilos no local da inflamação;

2. Promovem apoptose das células linfóides;

3. Inibem a síntese de citoquinas;

4. Modulam direta e indiretamente a função das células B;

5. Inibem a resposta proliferativa dos monócitos ao fator de estimulação de colônias e sua diferenciação em macrófagos, também inibindo as suas funções fagocíticas e citotóxicas;

6. Inibem o movimento de células e fluídos a partir do compartimento intravascular;

7. Inibem a ação da histamina, a síntese das prostaglandinas e a ação dos ativadores do plasminogênio.

Enquanto diversos agentes corticosteróides possuem propriedades de ambos os hormônios, a fluocortisona é mais comumente usada pela sua atividade mineralocorticóide, enquanto que a hidrocortisona, a prednisona e a metilprednisolona são mais utilizadas na clínica por suas propriedades glicocorticóides. A tabela 1 resume a potência relativa e as doses equivalentes dos corticosteróides mais utilizados na prática médica.

 

 

Infelizmente, pacientes em uso de corticóides podem apresentar efeitos colaterais indesejáveis, especialmente quando altas doses da medicação e longo tempo de tratamento são requeridos. (Tabela 2)

 

 

Por apresentarem tantos efeitos paralelos indesejáveis, seu uso deve ser sempre individualizado e planejado, com os pacientes sendo supervisionados periodicamente. Algumas precauções devem ser priorizadas antes de sua administração, dessa forma, evitando ou minimizando seus vários efeitos colaterais(1). Pacientes com hipertensão arterial ou insuficiência cardíaca congestiva devem receber atenção especial e ser tratados com cautela, sendo aconselhável a diminuição da ingesta de sal e o suplemento oral com potássio(5). Pacientes com risco de osteoporose devem ter suas dietas suplementadas com cálcio, especialmente as mulheres na pós-menopausa. Perfuração e hemorragia gastrointestinal são efeitos colaterais graves, devendo seu uso clínico ser visto com bastante restrição em pacientes com doenças graves do aparelho digestivo. Orienta-se sempre a administração junto das refeições para evitar sintomas dispépticos. Em pacientes diabéticos, pode haver a necessidade de reajustes na posologia de insulina ou de agentes hipoglicemiantes orais. O uso prolongado de corticóides pode ainda ocasionar distúrbios de coagulabilidade vascular. Seu uso é contra-indicado em pacientes com infecção fúngica sistêmica, e deve-se evitar o uso de vacinas com vírus vivos durante o tratamento.

A dose de corticóide varia individualmente. Uma dose baixa ou de manutenção varia de 0,1 a 0,25 mg/kg/dia de prednisona; uma dose moderada, com efeito antiinflamatório, seria de 0,5 mg/kg/dia de prednisona e uma dose alta, potencialmente imunossupressora, varia de 1 a 3 mg/kg/dia de prednisona(4). Esses efeitos, antiinflamatórios ou imunossupressores, sofrem variação, também, de acordo com o tempo de uso, sendo que uma dose baixa usada por tempo prolongado é capaz de causar imunossupressão do paciente.

Um tempo curto de tratamento ou o uso de doses relativamente baixas da medicação raramente resultam em qualquer um dos efeitos colaterais listados na tabela 2. Contudo, quando a dose utilizada do corticóide aumenta ou prolonga-se a sua aplicação, os riscos de efeitos indesejáveis aumentam consideravelmente. Em tratamentos prolongados, a administração da medicação em dias alternados é válida, sendo também importante a aplicação da dose no período da manhã, mimetizando o ritmo circadiano do corticóide endógeno.

Ao final de um tratamento superior a dois meses, deve-se propor uma gradual descontinuação da medicação, para, dessa maneira, promover uma recuperação normal do eixo hipófise-adrenal(4). Na maioria dos pacientes, a secreção endógena de corticosteróides é equivalente a 5 mg de prednisona. De maneira geral, orienta-se que a dose seja decrescida ao equivalente de 2,5 a 5 mg de prednisona a cada 7 dias, até que se atinja a dose de 5 mg/dia de prednisona. Dependendo do tempo de duração do tratamento e de sintomas desenvolvidos pelo paciente, a descontinuação terapêutica pode ser ainda mais lenta(4,6).

 

CORTICÓIDES NA OFTALMOLOGIA E VIAS DE ADMINISTRAÇÃO

Os corticosteróides são freqüentemente utilizados na oftalmologia, principalmente nas doenças de caráter inflamatório e nas doenças imunológicas. A opção pela via de administração vai depender do tipo de doença e da intensidade da inflamação.

Vias de Administração

Corticóide Tópico

Na dependência do tipo de inflamação, pode ser utilizado isoladamente ou em associação com o tratamento sistêmico.

Indicações e considerações:

· Tratamento de reação inflamatória de segmento anterior nas uveítes anteriores ou posteriores;

· Formas disponíveis: dexametasona, betametasona e prednisolona; os corticóides mais fracos, como a fluormetolona têm valor limitado;

· A solução penetra a córnea melhor que a suspensão ou pomada;

· A freqüência de instilação é variável - de 1 gota a cada 5 minutos até 1 gota ao dia.

· O tratamento inicial deve ser mais agressivo, na tentativa de se evitar complicações; quanto mais crônica for a evolução da doença mais difícil é mantê-la sob controle;

· Após o início da melhora do quadro, um esquema de regressão lento deve ser iniciado.

· A pressão intra-ocular deve ser cuidadosamente monitorada.

Corticóide Periocular

Pode ser utilizado por via subconjuntival (preparações de ação rápida e curta ação) ou subtenoniana (preparações de depósito, longa duração). Essa via permite concentrações intra-oculares maiores da medicação, minimizando seus efeitos sistêmicos. Deve-se ter atenção especial em relação a glaucoma corticogênico, principalmente nas preparações de depósito, de longa duração.

A principal preparação disponível para uso subconjuntival é a dexametasona e para uso subtenoniano o acetato de metilprednisolona e a triancinolona.

Indicações:

· Uveíte anterior aguda severa, com fibrina na câmara anterior ou hipópio, especialmente em pacientes com quadros reumáticos como Espondilite Anquilosante e demais HLA-B27 positivo;

· Adjunto à terapêutica tópica ou sistêmica, em casos de uveítes anteriores crônicas resistentes;

· Pós-operatórios de cirurgia de catarata;

· Uveítes intermediárias e vasculites retinianas;

· Reação inflamatória vítrea associada com a síndrome de recuperação imunológica em pacientes com AIDS.

· Pacientes com alguma contra-indicação para uso de corticóide sistêmico ou má adesão ao tratamento.

Corticóide Sistêmico

É a via de escolha para a maioria dos pacientes com uveíte endógena bilateral grave, após a exclusão de doenças infecciosas. Em geral se utiliza a prednisona de 1 a 1,5 mg/kg/dia, em dose única pela manhã. Após melhora do quadro inflamatório deve-se iniciar redução lenta da dosagem inicialmente estabelecida. Alguns pacientes necessitam do tratamento por um curto prazo, enquanto outros requerem uma dose de manutenção por longos períodos. Doenças como a síndrome de Vogt-Koyanagi-Harada, oftalmia simpática, sarcoidose, síndrome de Behçet, vasculites idiopáticas e outras uveítes autoimunes, representam indicações freqüentes para a corticoterapia sistêmica crônica. Esses pacientes devem ser cuidadosamente monitorados em relação aos efeitos adversos da medicação em longo prazo.

A toxoplasmose e as retinites virais herpéticas têm indicação mais limitada em relação à corticoterapia sistêmica, sendo seu uso indicado apenas quando associado ao tratamento específico da doença e na presença de reação inflamatória importante.

A pulsoterapia pode ser utilizada em alguns casos de uveíte autoimune, especialmente em pacientes com doença ocular grave bilateral e com risco de perda visual rápida. Em geral o tratamento é feito com metilprednisolona 500 mg-1g/dia, durante três dias.

Corticóide Intra-ocular

Atualmente, o uso de corticóide intra-ocular, principalmente a suspensão de triancinolona, tornou-se motivo de interesse em nosso meio(7). Essa via de administração, ainda é feita de maneira experimental, e requer muito cuidado em suas indicações, com doses variando de 2-4 mg/0,1 ml. A aplicação intravítrea de cortisona cristalina parece não ser tóxica para as estruturas intra-oculares, reduz a inflamação no pós-operatório e parece ser uma arma adicional no tratamento da retinopatia proliferativa(8) e das inflamações intra-oculares. Os implantes de corticóide de média-longa duração, biodegradáveis, na forma de fluorcinolona ou dexametasona ainda estão em estudo e parecem ser eficazes em algumas doenças(9).

Vide tabela 3 com as principais uveítes em nosso meio e a via de administração de corticóide recomendada.

 

CONCLUSÃO

Os corticóides constituem terapêutica de escolha em diversas formas de inflamação ocular, porém a sua utilização não é isenta de riscos. Os pacientes em uso de corticoterapia devem ser cuidadosamente acompanhados e monitorados, devido à alta freqüência de efeitos colaterais sérios. Apesar disso, os benefícios alcançados durante a maioria dos tratamentos são muitos e estimulam sua utilização de forma cuidadosa.

 

 


 

 

REFERÊNCIAS

1. Zoorob RJ, Cender D. A different look at corticosteroids. Am Fam Physician 1998;59:213-7.         

2. McEvoy GK, Litvak K, Welsh OH, editors. AHFS Drug information. Bethesda, Md: American Society of Health-Systems Pharmacists, 1996.         

3. Recommendations for the prevention of glucocorticoid-induced osteoporosis. American College of Rheumatology. Task force on Osteoporosis. Guidelines. . Arthritis Rheum 1996;39: 1791-1801.         

4. Kountz DS, Clark CL. Safely withdrawing patients from chronic glucocorticoid therapy. . Am Fam Physician 1997;55:521-5,529-30.         

5. Committee on Safety of Medicines. Using long-term systemic corticosteroids safely. London: Medicines Control Agency. Current Problems in Pharmacovigilance 1997;23:4-5. Available from URL: http://www.mca.gov.uk/ourwork/monitorsafequalmed/currentproblemas/cpvol23sec7.htm         

6. Gregerman RI. Metabolic and endocrine problems. In: Barker LR, Burton JR, Zieve PD, editors. Principles of ambulatory medicine. Baltimore: Williams & Wilkins, 1991. p.986-9.         

7. Antcliff RJ, Spalton DJ, Stanford MR, Graham EM, Fftche TJ, Marshall J. Intravitreal triamcinolone for uveitic cystoid macular edema: an optical coherence tomography study. Ophthalmology 2001;108:765-72.         

8. Jonas JB, Hayler JK, Panda-Jonas S. Intravitreal injectin of crystalline cortisone as adjunctive treatment of proliferative vitreoretinopathy. Br J Ophthalmol 2000;84:1064-7.         

9. Cheng CK, Berger AS, Pearson PA, Asthon P, Jaffe GJ. Intravitreal sustained-release dexamethasone device in the treatment of experimental uveitis. Invest Ophthalmol Vis Sci 1995;36:442-53.         

 

 

1 Pós graduanda nível Doutorado do Setor de Uveítes e AIDS - Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
2 Mestre em Endocrinologia, Pós-graduando nível doutorado do setor de Endocrinologia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e Médico colaborador do setor de Órbita do Departamento de Oftalmologia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
3 Professora afiliada do Departamento de Oftalmologia, Chefe do Setor de Uveítes e AIDS da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e Presidente da Sociedade Brasileira de Uveítes.

Endereço para correspondência: Rua Botucatu, 822 - São Paulo (SP) CEP 04023-062.
E-mail: [email protected]
Recebido para publicação em 02.01.2002
Aceito para publicação em 13.05.2002


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