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Editorial

Cisto hemático intraconal espontâneo de órbita: relato de caso

Spontaneous intraconal hematic cyst of the orbit: case report

Ramon Coral Ghanem1; Mário Luiz Ribeiro Monteiro2

DOI: 10.1590/S0004-27492002000400017

RESUMO

Objetivo: Descrever a apresentação clínica e os achados diagnósticos aos exames de imagem de um caso incomum de cisto hemático intraconal espontâneo da órbita. Métodos: O paciente foi submetido a exame clínico e oftalmológico completos, tomografia computadorizada, ultra-sonografia orbitária, imagem por ressonância magnética e abordagem cirúrgica da lesão. Resultados: Observou-se proptose intensa com sinais congestivos e baixa visual. A tomografia computadorizada mostrou massa homogênea de limites bem definidos na órbita, comprimindo o globo ocular anteriormente. A ultra-sonografia mostrou lesão com baixa refletividade no seu interior. A imagem por ressonância magnética revelou lesão arredondada que nos cortes enfatizando T1 apresentava sinal isointenso em seu interior associado a halo de hipersinal periférico e possuía hipersinal nos cortes enfatizando T2, achados estes indicativos de lesão com sangue no seu interior. A abordagem cirúrgica confirmou a presença de cisto hemático da órbita que foi drenado com excelente recuperação funcional. Conclusões: Cisto hemático intraconal deve ser incluído no diagnóstico diferencial das lesões bem delimitadas e de evolução aguda ou subaguda da órbita que apresentem hipersinal em T1 e em T2 à imagem por ressonância magnética. O tratamento deve ser feito em caráter de urgência, nos casos em que há proptose intensa ou risco de comprometimento visual.

Descritores: Doenças orbitárias; Cistos; Hemorragia; Tomografia computadorizada por raios-x; Ultra-sonografia

ABSTRACT

Purpose: To describe the clinical presentation and diagnostic findings on imaging examination of an unusual case of spontaneous intraconal orbital hematic cyst. Methods: The patient was submitted to a complete ophthalmic and clinical examination, computerized tomography, orbital ultrasound, magnetic resonance imaging and surgical approach to the lesion. Results: Clinical examination revealed severe proptosis, congestive signs and visual loss. Computerized tomography revealed homogeneous and well-defined mass lesion in the orbit compressing the globe. On ultrasound the lesion had low internal reflectivity. Magnetic resonance imaging showed in T1 weighted images isointense signal surrounded by hyperintense signal in the periphery and hyperintense signal in T2 weighted images, indicating blood inside the lesion. Surgical approach confirmed the presence of a hematic cyst of the orbit that was drained with excellent functional recovery. Conclusions: Intraconal hematic cyst should be included in the differential diagnosis of well-defined lesion with acute or subacute development in the orbit that present hyperintense signal in both T1 an T2 weighted images on magnetic resonance imaging. Treatment should be done on an emergency basis in cases with disfiguring proptosis and risk of visual loss.

Keywords: Orbital diseases; Cysts; Hemorrhage; Tomography, x-ray computed; Ultrasonography

INTRODUÇÃO

Cisto hemático da órbita é uma condição incomum causada pelo acúmulo localizado de sangue ou subprodutos de sua degradação, que geralmente é causada por traumatismos na região orbital(1-2). Mais raramente o cisto hemático pode ser decorrente de hemorragia espontânea ou relacionada a doenças sistêmicas como leucemia, trombocitopenia, hemofilia ou estar relacionado a afecções pré-existentes da órbita tais como: linfangiomas, hemangiomas, varizes orbitárias ou malformações arteriovenosas(1-3). Na maioria dos casos o sangue se acumula no espaço subperiostal mas o cisto hemático pode também ser intraconal(2).

Cisto hemático intraconal de órbita em um paciente adulto, sem doenças sistêmicas e sem antecedentes de afecções orbitárias ou trauma é um evento bastante raro e pode simular várias afecções da órbita, levando a confusão diagnóstica. O objetivo deste trabalho é o de documentar o caso de um paciente com esta condição e discutir os principais sinais clínicos e achados de imagem que permitem o diagnóstico diferencial com outras afecções orbitárias.

 

RELATO DE CASO

Paciente de 43 anos, sexo masculino, branco, procurou atendimento no Pronto Socorro do Hospital de Clínicas de São Paulo referindo que há cerca de 3 meses sentia a protrusão do olho direito (OD) quando realizava atividades que exigiam esforço e que há 3 semanas acordara com dor, hiperemia e proptose do OD e também diplopia vertical em quase todas as posições do olhar. Negava quaisquer antecedentes sistêmicos, traumáticos ou doenças orbitárias prévias. Os antecedentes pessoais e familiares nada revelaram.

Ao exame apresentava acuidade visual de 0,4 no OD e 1,0 no OE, sem melhora com correção. Os reflexos pupilares estavam preservados e havia restrição da movimentação ocular à abdução (-2 reto medial), adução (-3 reto lateral) e elevação (-4 reto superior) e proptose acentuada no OD. A exoftalmometria (Hertel) revelou 30 mm no OD e 18 mm no OE (Figura 1). Observava-se hiperemia e engurgitamento venoso conjuntival e episcleral e ceratite puntata no OD. A pressão intra-ocular era de 13 mmHg no OD e 14 mmHg no OE. O fundo de olho mostrava edema de papila acentuado, engurgitamento venoso e dobras de coróide em toda região nasal, principalmente superior, chegando até área macular. O exame do olho esquerdo era normal.

 

 

Avaliação clínica e laboratorial detalhada, incluindo hemograma, glicemia de jejum, eletroforese de proteínas, velocidade de hemossedimentação, fator antinuclear e Raios-X de tórax não mostrou alterações. A Tomografia Computadorizada (TC) de crânio e órbitas evidenciou lesão bem delimitada, de conteúdo homogêneo, sem realce com contraste venoso, de cerca de 2,7 cm situado na região intraconal da órbita direita (Figura 2). A ultra-sonografia mostrou uma massa homogênea cística, com interior de baixa refletividade, sugerindo um conteúdo líquido no interior da lesão. Foram feitas as hipóteses diagnósticas de cisto hemático, abscesso orbital, infecção parasitária (cisto hidático), além de um tumor orbitário com componente cístico em seu interior.

 

 

À imagem por ressonância magnética revelou lesão bem delimitada com sinal que nos cortes evidenciando T1 (TR 366 e TE 14) apresentava hiposinal no interior circundado por hipersinal periférico (Figura 3). Nos cortes evidenciando T2 (TR 5150 e TE 85,2) a lesão apresentava-se quase que totalmente hiperintensa, apenas com pequeno halo periférico de hiposinal (Figura 4). Tais achados eram compatíveis com uma lesão contendo sangue recente na periferia e produtos de degradação do sangue (metahemoglobina) indicativos da presença também de sangramento subagudo dentro da lesão.

 

 

 

O paciente foi submetido a uma orbitotomia anterior e medial com abordagem da lesão por via trans-conjuntival. Após a abertura da conjuntiva no setor nasal e desinserção do músculo reto medial encontrou-se uma lesão encapsudada de coloração vinhosa dentro do cone muscular. Foi inicialmente realizada uma punção da lesão seguida de sua abertura com drenagem de grande quantidade de sangue venoso coagulado, obtendo-se redução imediata da proptose. A recuperação pós-operatória foi excelente, sem sangramentos havendo melhora progressiva dos sinais congestivos orbitários, bem como das alterações oftalmoscópicas.

 

DISCUSSÃO

Sangue na órbita pode se apresentar de formas diferentes, dependendo da quantidade, localização e duração. Vários são os termos utilizados para designar as coleções de sangue ou subprodutos na órbita o que pode levar a alguma confusão sobre a nomenclatura utilizada. O termo mais utilizado é cisto hemático, na maioria das vezes se referindo ao acúmulo de sangue ou seus subprodutos em uma cápsula fibrosa sem revestimento epitelial(2). Termos menos descritivos também são utilizados como hematoma que, no entanto, geralmente se refere a uma tumoração ou edema contendo sangue(1). Cisto sanguíneo também tem sido amplamente utilizado, mas nestes casos a maioria dos autores se refere à presença de sangue que se situa dentro de uma lesão orbitária cística ou vascular como cisto dermóide, linfangioma ou hemangioma cavernoso(4-5). Hematocele é um termo ainda menos preciso que se refere a qualquer acúmulo de sangue na órbita e a nosso ver deve ser evitado(1). Acreditamos que a melhor denominação é mesmo cisto hemático que pode ser agudo ou crônico dependendo do tempo de evolução. Pode se situar no espaço subperiostal ou no interior da órbita podendo ser intra ou extraconal. Quando o acúmulo de sangue é agudo e logo a seguir de um traumatismo orbital, a denominação hematoma orbital ou hematoma subperiostal da órbita nos parece mais apropriada. Por outro lado, quando decorrente do trauma, mas se apresentando com características de cronicidade, o termo cisto hemático traduz melhor o tipo de lesão.

Quanto à localização, nos casos pós-traumáticos, a lesão é geralmente subperiosteal, preferencialmente superior e temporal, causando uma depressão do globo ocular. Em outros casos depende do local do sangramento. O hematoma que se situa dentro da órbita, por outro lado tende a se localizar no espaço intraconal como evidenciado em nosso paciente.

Tentativas de identificar a incidência dessa lesão são dificultadas pela falta de padronização terminológica e pela infreqüência com que ocorrem. Na série de 764 casos de massas orbitárias da Mayo Clinic, os cistos hemáticos ocorreram em 6 pacientes, enquanto que na série do Wills Eye Hospital ocorreu em 2 das 645 biópsias orbitárias(6). Tais lesões podem acometer pacientes de qualquer idade ou sexo, sendo que a ocorrência pós-traumática é a mais freqüente, nesse caso com predominância do sexo masculino.

Os pacientes freqüentemente se apresentam com um quadro agudo ou subagudo de proptose unilateral. Entretanto, alguns casos podem apresentar crescimento progressivo, tanto por hemorragias recidivantes, como pela maior absorção líquida devido ao gradiente osmótico criado pelos produtos de degradação do sangue(7-8). Assim, não há um padrão clínico típico para todos os casos, sendo a história clínica e os exames complementares fundamentais no estabelecimento do diagnóstico.

Dentro do diagnóstico diferencial devemos incluir outras lesões císticas da órbita tais como: cisto dermóide, teratoma, mucocele, encefalocele e cisto hidatiforme da órbita, além de outros tumores orbitários como o linfangioma, o hemangioma cavernoso, o neurilemoma, o neurofibroma etc. Os exames de imagem são extremamente úteis para o diagnóstico diferencial. Nos casos de cisto hemático a tomografia computadorizada mostra uma lesão bem definida e homogênea da órbita. Tal achado é muito importante embora seja relativamente inespecífico podendo ocorrer em outras lesões tumorais acima mencionadas(9). A IRM por outro lado, representa o exame que melhor define o cisto hemático uma vez que permite a identificação e caracterização de diferentes etapas de hemorragias. Quando ocorre sangramento recente a hemoglobina (na forma de desoxihemoglobina) é bem visibilizada como uma imagem hipointensa em T2. Já na fase subaguda, ocorre a transformação de hemoglobina em metahemoglobina que se mostra hiperintensa em T1 e também hiperintensa em T2. Por fim, na fase crônica, a hemossiderina derivada da hemoglobina se mostra hipointensa em T1.

Esta características são distintas dos achados à IRM obtidos nas outras lesões císticas acima mencionadas, com as quais o cisto hemático faz diagnóstico diferencial. Isto ocorre uma vez que o cisto hemático usualmente apresenta hemorragias em diferentes fases, uma vez que é comum o resangramento dentro da lesão. Hemorragias agudas demonstram sinal intermediário em T1 e muito diminuído em T2, como pode ser observado na periferia da lesão em nosso paciente (Figuras 3 e 4). Hemorragias na fase subaguda mostram hipersinal periférico tanto em T1 como em T2 devido ao acúmulo periférico de metahemoglobina (Figuras 3 e 4). Na fase crônica, todo o hematoma mostra sinal de alta intensidade(9-10). Nosso paciente apresentava, portanto, hematoma com características agudas (na periferia) e subagudas (na sua maior parte). Tais achados são muito distintos de outras lesões tumorais acima mencionadas, incluindo o cisto hidático da órbita, que geralmente mostram sinal baixo em T1 e alto em T2 e com as quais o cisto hemático faz diagnóstico diferencial(9,11).

O tratamento conservador geralmente não é eficaz sendo necessária a drenagem cirúrgica da lesão. Em alguns casos, especialmente quando o cisto hemático se situa no espaço subperiostal pode ser feita a punção e aspiração do sangue. No entanto esta pode não ser eficaz nas lesões já com certa organização e o tratamento de escolha é mesmo a drenagem cirúrgica com exposição adequada da lesão. A via de acesso depende do local da localização do cisto hemático e se possível deve ser removida a pseudocápsula da lesão. Ao exame histopatológico se observa uma pseudocápsula fibrosa ao redor de uma reação granulomatosa a produtos de degradação do sangue, incluindo colesterol, hemossiderina e macrófagos. Não há revestimento epitelial do cisto hemático e o prognóstico visual geralmente é bom sendo muito incomum a recorrência da lesão(1).

 

 


 

 

REFERÊNCIAS

1. Milne HL, Leone CR, Kincaid MC, Brennan MW. Chronic hematic cyst of the orbit. Ophthalmology 1987;94:271-7.         

2. Goldberg SH, Sassani JW, Parnes RE. Traumatic intraconal hematic cyst of the orbit. Arch Ophthalmol 1992;110:378-80.         

3. Brooks AM, Finkelstein E. Spontaneous orbital hemorrhage. Br J Ophthalmol 1984;68:838-40.         

4. Mortada A. Origin of orbital blood cysts. Br J Ophthalmol 1969;53:398-402.         

5. Sevel D, Rosales A. Orbital blood cyst. Br J Ophthalmol 1978;62:571-4.         

6. Henderson JW. Orbital tumors. Philadelphia: WB. Saunders; 1973.         

7. Shapiro A, Tso MO, Putterman AM, Goldberg MF. Clinicopathologic study of hematic cysts of the orbit. Am J Ophthalmol 1986;102:237-41.         

8. Pearson PA, Rakes SM, Bullock JD. Clinicopathologic study of hematic cysts of the orbit. Am J Ophthalmol 1986;102:804-5.         

9. Kersten RC, Kersten JL, Bloom HR, Kulwin DR. Chronic hematic cyst of the orbit. Role of magnetic resonance imaging in diagnosis. Ophthalmology 1988; 95:1549-53.         

10. Loeffler M, Hornablass A. Hematic cyst of the orbit. Arch Ophthalmol 1990; 108:886-7.         

11. Lener SF, Gomez Morales AG, Croxato JO. Hydatid cyst of the orbit. Arch Ophthalmol 1991;109:285.         

 

 

1 Médico Residente da Disciplina de Oftalmologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
2 Professor Livre Docente, Serviços de Neuro-oftalmologia e de Doenças da Órbita da Universidade de São Paulo (USP).

Endereço para correspondência: Av. Angélica 1757 conj. 61 - São Paulo (SP) CEP 1227-200.
E-mail: [email protected].
Recebido para publicação em 18.12.2001
Aceito para publicação em 18.03.2002


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