Ezon Vinícius Alves Pinto Ferraz1; Cláudia Assis Lima1; Wener Cella1; Carlos Eduardo Leite Arieta1
DOI: 10.1590/S0004-27492002000300002
RESUMO
Objetivo: Devido à perda visual que acarreta, a catarata pode impedir a realização de atividades cotidianas, influindo assim na qualidade de vida dos indivíduos afetados. Este trabalho tem como objetivo avaliar a aplicabilidade de questionário para avaliação da qualidade de vida de indivíduos portadores de catarata e testar a sua responsividade e confiabilidade. Métodos: Foram entrevistados 30 pacientes portadores de catarata com indicação cirúrgica. Utilizou-se questionário específico adaptado, sendo a mesma entrevista realizada duas vezes, com intervalo de uma hora. Resultados: Todas as questões tiveram mais de 80% de resposta sem que o entrevistador precisasse repetir a pergunta. A análise da consistência mostrou que apenas um paciente respondeu de forma discrepante quatro questões. Conclusão: O questionário adaptado pôde ser aplicado em grupo populacional de baixa escolaridade, representando instrumento válido para avaliação da qualidade de vida de pacientes com catarata.
Descritores: Catarata; Catarata; Qualidade de vida; Questionários; Saúde pública; Atividades cotidianas
ABSTRACT
Purpose: Cataract represents a public health problem because patients presenting the disease are unable to adequately perform routine activities, with a negative influence on their quality of life. The purpose of this research is to evaluate the impact of reduced visual acuity on the quality of life of these patients. The authors adjusted a specific questionnaire to the Brazilian social reality and tested its response adequacy and reliability. Methods: 30 cataract patients with surgical indication were interviewed. The questionnaire was applied and the same interview was done twice within a one-hour interval. Results: More than 80% of questions were answered the first time they were asked. Consistence analysis showed that only one patient answered four questions in a different manner during the interviews. Conclusion: The authors concluded that the adjusted questionnaire is applicable to a population with a low level of formal education, being a reliable instrument in the evaluation of quality of life in cataract patients.
Keywords: Cataract; Cataract; Quality of life; Questionnaires; Public health; Activities of daily living
INTRODUÇÃO
A catarata, definida como qualquer opacificação do cristalino que reduza a acuidade visual, acomete 75% dos indivíduos acima dos 70 anos de idade e pode causar cegueira(1). A cegueira por catarata é reconhecida como grave problema de saúde pública nos países em desenvolvimento e, desta forma, programas de prevenção e controle têm sido estabelecidos para diminuir sua ocorrência(2). A disciplina de oftalmologia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas foi pioneira nos projetos de prevenção mediante a implantação do "Projeto Catarata" em 1987, que visa identificar os casos de catarata senil e prover tratamento cirúrgico especialmente a pessoas de baixa renda. No Brasil, estima-se que 600.000 pacientes têm indicação cirúrgica por ano(3).
Na avaliação de terapêutica para doenças dos idosos é necessário comparar custo/beneficio, analisando as suas possíveis vantagens na população. Os instrumentos de qualidade de vida servem para comparar diferentes tratamentos médicos em diferentes doenças sendo, portanto, de especial importância a sua utilização principalmente em países em desenvolvimento, que dispõem de menos recursos para aplicação na área da saúde.
Por levar à diminuição da acuidade visual, a catarata interfere negativamente na qualidade de vida. De todos os sintomas pesquisados por Lee, et al., 1997, apenas a dificuldade respiratória teve maior impacto na deterioração da qualidade de vida do que a diminuição de acuidade visual. É universalmente estabelecida a importância da avaliação da qualidade de vida em procedimentos de saúde pública e, em Oftalmologia, a ênfase maior baseia-se na demonstração da melhora visual em pacientes submetidos à cirurgia de catarata usando-se instrumentos para medir qualidade de vida e função visual. Esses estudos têm se concentrado nos Estados Unidos e países da Europa, pois os instrumentos desenvolvidos foram testados nessas populações(4).
Existem diversos instrumentos para avaliar qualidade de vida cuja validade e confiabilidade já foram demonstrados em populações diferentes(5). A maioria desses instrumentos são aplicáveis apenas àquela cultura para a qual foram desenvolvidos(6). A adaptação de questionários utilizados para pacientes com distúrbios visuais permite não somente a exploração dos impactos específicos da baixa de visão, mas também, comparar diferentes terapêuticas em relação ao risco-benefício(6).
Dos diferentes modelos de avaliação de qualidade de vida propostos na literatura, foram analisados o "Sickness Impact Profile" (SIP), o SF-36, o WHOQOL(7) (World Health Organization Quality of life), o "Activities of daily vision scale" (ADVS) e o "Vision Function Questionnaire" (VFQ). Desses instrumentos apenas o VFQ e o ADVS foram concebidos para avaliação de qualidade de vida em doenças oculares. O ADVS(8) possui 20 atividades relacionadas à visão, identificadas e categorizadas em cinco subescalas, porém atividades relevantes não foram abordadas nesse questionário dentre elas o domínio psicológico e o nível de dependência. O Visual Function (VFQ) é um questionário desenvolvido a partir do "Vision Activities Questionnaire" (VAQ), que avalia tanto qualidade de vida quanto função visual(8).
Considerando-se o efeito limitante que a catarata impõe aos seus portadores no exercício de suas atividades e a relevância da doença na população, um questionário foi adaptado e testado com o objetivo de servir como instrumento de avaliação da qualidade de vida desse grupo populacional.
MÉTODOS
Para o propósito deste estudo selecionou-se uma população de 30 indivíduos portadores de catarata atendidos em dias consecutivos no ambulatório de um Hospital Universitário no período de fevereiro a maio de 2000, com idade entre 45 e 75 anos e acuidade visual menor que 20/60 no melhor olho. Todos os pacientes tinham indicação cirúrgica de extração extra-capsular programada com implante de lente intra-ocular (EECP + LIO). Foram excluídos do estudo indivíduos com diabetes mellitus, cirurgia oftalmológica ou doença ocular prévia.
Utilizou-se o questionário de avaliação de qualidade de vida "Visual Functioning Questionnaire" (VFQ)(9).
O VFQ possui 25 questões (Quadros 1, 2 e 3) agrupados em 13 subdomínios (Quadro 4) com uma ou mais questões em cada subdomínio. Para cada questão há 5 possibilidades de resposta, sendo que para cada resposta obtém-se uma pontuação que varia de 0 a 100 (0, 25, 50, 75 e 100 pontos, de acordo com a resposta). A pontuação final obtida é então dividida pelo número de questões, obtendo-se um escore para cada paciente, cujo valor mínimo é zero e o valor máximo é 100. Quanto maior o escore alcançado, melhor a qualidade de vida e função visual do paciente.
O questionário foi traduzido para o português por duas pessoas distintas, após o qual realizou-se um estudo exploratório(10), com entrevista de 10 pacientes que permitiu obter informações sobre as questões adaptadas a partir do questionário original traduzido. Como exemplo, cita-se o texto da tradução inicial da questão número 14: "Você tem dificuldade para ir ao cinema, jogos ou eventos esportivos?'; após o estudo exploratório, levando-se em conta o estilo de vida, essa questão foi modificada para: "Você tem dificuldade para enxergar as pessoas do outro lado da rua?".
Após a análise das questões obteve-se um questionário adaptado à nossa realidade (Anexo 1, 2 e 3) que foi submetido a teste prévio em 30 sujeitos portadores de catarata. Por meio do teste prévio foi possível calcular a responsividade de cada questão, o tempo médio de resposta e analisar a consistência das respostas. A análise de reproductibilidade foi realizada repetindo-se a entrevista 1h após a entrevista inicial pelo mesmo e por um outro entrevistador.
A acuidade visual pré-operatória corrigida dos indivíduos foi obtida utilizando-se a tabela de Snellen. A entrevista foi realizada por dois médicos residentes de Oftalmologia.
RESULTADOS
Os dados coletados permitem descrever a população de pacientes com catarata segundo a distribuição de idade, sexo, escolaridade e acuidade visual. A idade variou de 54 a 75 anos, com média de 68 anos e desvio padrão de 5,9 anos. Quanto à escolaridade, 68% dos entrevistados declararam possuir 1º grau completo ou incompleto e 60% dos pacientes tinha acuidade visual (AV) £ 20/200 no olho a ser operado.
O tempo de resposta do questionário variou de 4 min e 50s a 9 min e 10s, com média de 7 min e 40s.
Quanto à responsividade, 10 das 25 questões tiveram 100% de respostas sem dúvidas quando da formulação da pergunta pelo entrevistador; todas as 25 questões tiveram acima de 80% de respostas sem que o entrevistador fosse obrigado a repetir ou explicar melhor a pergunta.
A análise da reproductibilidade intra e inter-observador teve os seguintes resultados: uma discrepância: 5 pacientes; duas discrepâncias: 7 pacientes; três discrepâncias: 2 pacientes; quatro discrepâncias: 1 paciente.
DISCUSSÃO
Na escolha de um questionário de avaliação de qualidade de vida, deve-se considerar: 1 - A extensão do questionário, já que questionários muito extensos podem diminuir a colaboração do paciente e torná-lo inviável para aplicação na rotina diária dos serviços de saúde. 2 - Abrangência de vários dos diferentes subdomínios e a função visual, tais como: saúde mental, dependência, aspectos psicológicos, visão para perto e longe, visão de cores, etc. 3 - A utilização de instrumentos que tenham figuras e dependam da interpretação e visualização pelos pacientes por não serem adequados a populações de baixa escolaridade e visão deficiente. Tais questionários requerem especial treinamento do aplicador para minimizar a variabilidade intra e inter-observador. 4 - Possibilidade de mensuração, tornando desta forma possível a quantificação dos resultados e a possível comparação entre os indivíduos e entre os procedimentos terapêuticos ou diagnósticos.
Em trabalho realizado na China(11) utilizando o Visual Function/quality of life Questionnaire para avaliar qualidade de vida e função visual em pacientes operados de catarata encontrou-se uma responsividade de 85% no pré-operatório e de 90% nos pacientes pseudofácicos. Quando levamos em conta que a baixa escolaridade das duas populações, acreditamos ser o questionário simples o suficiente para ser entendido pelo paciente.
Pokharel e cols(2) em trabalho utilizando questionário semelhante no Nepal, contendo também 25 questões sobre qualidade de vida e função visual, verificou um tempo de resposta que variou de 10 a 20 minutos. Esse tempo superior ao encontrado em nosso trabalho pode ser explicado pelo índice de analfabetismo maior que 70% no Nepal(2) e pelo fato de a entrevista em nosso caso ter sido realizada por 2 médicos.
As poucas discrepâncias encontradas ao se testar a variação inter e intra-observador, capacita os dois entrevistadores para aplicação do teste em trabalhos futuros.
Na estruturação de um questionário de avaliação de qualidade de vida, as variáveis são agrupadas sob a denominação de dimensão ou domínio, que, por sua vez se subdividem em subdimensões ou subdomínios (referidas como as facetas da qualidade de vida)(8); sendo que alguns passos devem ser obrigatoriamente considerados. A primeira questão a ser abordada é se o questionário aplicar-se-á ao objetivo para o qual é proposto. Isto está assegurado pelas medidas psicométricas do instrumento(12). A decisão de traduzir um questionário já validado fortalece o instrumento final, uma vez realizadas as fases de estudo exploratório e teste prévio, descritos a seguir:
1) Tradução e adequação das questões
As questões não podem ser traduzidas literalmente, uma vez que a maioria dos idiomas não permite traduções puramente técnicas. As questões devem ser adaptadas, considerando-se as diferenças culturais e os vocábulos populares. Devem ser claras, sucintas e objetivas(13).
2) Estudo Exploratório
Considerando-se que fatores humanos compõem o objeto da presente pesquisa, torna-se imprescindível a realização de um estudo exploratório na etapa de planejamento de qualquer estudo descritivo que envolva questionário, com a preocupação de identificar outras variáveis relevantes, vocábulos populares e percepções que possam não ter sido percebidas nas fases anteriores da pesquisa(10). Tratando-se de um questionário adaptado a partir de um original em inglês, o estudo exploratório teve também a finalidade de adequar os termos e as perguntas à realidade sociocultural dos sujeitos.
3) Teste prévio
O teste prévio é um procedimento metodológico importante para assegurar a confiança e a validade dos dados obtidos nas etapas anteriores de planejamento da pesquisa, desta forma assegurando o aperfeiçoamento do questionário. Utiliza-se para este fim, população com características semelhantes às da população-alvo do estudo. O teste prévio não deve ser descartado ou confundido com pesquisa exploratória(13).
CONCLUSÕES
1) O questionário adaptado a partir do VFQ pôde ser usado na avaliação de qualidade de vida de indivíduos portadores de catarata, tendo apresentado uma responsividade em torno de 80%, mesmo quando testado em população de baixa escolaridade.
2) O tempo médio da entrevista de 7min e 40s não constituiu obstáculo para sua aplicação, não tendo ocorrido desgaste do entrevistador e dos entrevistados.
3) A aplicação do questionário por meio de entrevista possibilitou incluir no estudo indivíduos de baixa escolaridade.
REFERÊNCIAS
1. Münestan E, Wachtmeister L. The impact of cataract surgery on low vision patients: a population based study. Acta Ophthalmol Scand 1997;75:569-76.
2. Pokharel GP, Selvaraj S, Ellwein LB. Visual functioning and quality of life outcomes among cataract operated and unoperated blind populations in Nepal. . Br J Ophthalmol 1998;82:606-10.
3. Leite ACE, Kara-Jose N, Carvalho Filho DM, Alves MR. Optimization of a university cataract-patient care service in Campinas, Brazil. Ophthalmic Epidemiol 1999;6:113-23.
4. Fletcher AE, Ellwein LB, Selvaraj S, Vijaykumar V, Rahmathullah R, Thulasiraj RD. Measurements of vision function and quality of life in patients with cataracts in Southern India: report of instrument development. Arch Ophthalmol 1997;115:767-74.
5. Scott IU, Schein OD, West S, Bandeen-Roche K, Enger C, Folstein MF. Functional status and quality of life measurement among ophthalmic patients. Arch Ophthalmol 1994;112:329-35.
6. Kuyken W, Orley J, Hudelson P, Sartorius N. Quality of life assessment across cultures. Int J Ment Health 1994;23:5-27.
7. World Health Organization Quality of life. Group. Development of the WHOQOL: Rationale and Current Status. Int J Ment Health 1994;23:24-56.
8. Mangione CM, Phillpis RS, Seddon JM, Lawrence MG, Cook EF, Dailey R, et al. Development of the activities of daily vision Scale. A measure of visual functional status. Medical Care 1992;30:1111-25.
9. Mangione CM, Lee PP, Gutierrez PR, Spritzer K, Berry S, Hays RD. Development of the 25-item National Eye Institute Visual Function Questionnaire. Arch Ophthalmol 2001 Jul;119:1050-8
10. Piovesan A, Temporini ER. Pesquisa exploratória: procedimento metodológico para estudos de fatores humanos no campo da saúde pública. Rev Saúde Pública 1995;29:318-25.
11. Zhao J, Sui R, Jia L, Fletcher AE, Ellwein LB. Visual acuity and quality of life outcomes inpatients with cataract in Shunyi County, China. Am J Ophthalmol 1998;126:515-23.
12. Fitzpatrick R, Fletcher A, Gore S, Jones D, Spiegelhalter D, Cox D. et al. Quality of life measures in health care: Aplications and issues in assessment. BMJ 1992;305:1074-7.
13. Temporini ER. Prevenção da AIDS: percepção e conduta sexual de estudantes universitários no Estado de São Paulo. . São Paulo: Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo.
1 Pós-Graduando do Departamento de Oftalmologia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas.
2 Oftalmologista do Departamento de Oftalmologia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas.
3 Residente de Oftalmologia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas.
4 Chefe do Setor de Catarata do Departamento de Oftalmologia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas.
Endereço para correspondência: Rua Hermantino Coelho, 77 bloco 1 apto 71 - Campinas (SP) CEP 13087-500. E-mail: [email protected]
Recebido para publicação em 24.01.2001
Aceito para publicação em 16.01.2002
Nota Editorial: Pela análise deste trabalho e por sua anuência na divulgação desta nota, agradecemos ao Dr. Hamilton Moreira.