Marcelo Siqueira de Freitas
DOI: 10.1590/S0004-27492002000200016
RESUMO
O autor descreve uma técnica para dissecar o núcleo cataratoso em duas porções: uma externa, ou camada externa, e outra interna, ou núcleo interno. A camada externa é segmentada com a ponteira do facoemulsificador e o gancho de Sinskey ou um "chopper" e o núcleo interno luxado e emulsificado sempre em primeiro lugar. A emulsificação da camada externa originou dois modelos cirúrgicos, um para cataratas maduras e outro para cataratas moderadamente duras. Nas cataratas maduras, emulsificamos cada divisão da camada externa anterior e depois a porção posterior, deslocada para câmara anterior. Nas cataratas moderadamente duras, é possível separar um conjunto de lamelas formadas por fibras duras, tanto anteriores como posteriores das lamelas superficiais que permanecem protegendo a cápsula posterior. As lamelas duras são emulsificadas no espaço que surge depois da emulsificação do núcleo interno, que denominamos de espaço intranuclear. A nucleodissecção assim como os modelos cirúrgicos referidos mostraram-se de grande utilidade e são usados na nossa rotina cirúrgica.
Descritores: Cristalino; Extração de catarata; Facoemulsificação
ABSTRACT
The author describes a technique for dissection of the nucleus of the cataract into two parts: an external one or external layer, and an internal one or internal nucleus. The anterior portion of the external layer is divided into segmentes like a "pizza" with the phaco tip and a Sinskey hook or a "chopper" and the internal nucleus is dislocated and emulsified. The emulsification of the external layer gives rise to two different surgical models, one for mature and the other for moderately hard cataracts. In the case of mature cataracts we emulsify each segment of the anterior external layer and then the posterior portion, which has already been moved to the anterior chamber. In the case of moderately hard cataracts it is possible to separate a set of layers made of hard anterior and posterior fibers, emulsify them, and leave the superficial layers which continue to protect the posterior capsule. The hard layers are emulsified in the space, which is created by the emulsification of the internal nucleus, which we call the intranuclear space.
Keywords: Crystalline lens; Cataract extraction; Phacoemulsification
INTRODUÇÃO
A proposta de fraturar o núcleo do cristalino cataratoso e a técnica cirúrgica correspondente - "Divide and Conquer Nucleofractis" - foram apresentadas por Gimbel, em 1987(1) e depois publicadas em 1991(2). O princípio fundamental do método é fraturar, segmentar e remover a catarata da maneira mais eficiente possível(3), independentemente da estrutura anatômica.
O uso de uma técnica específica de "chop"(4) nos chamou a atenção sobre detalhes da anatomia cirúrgica do núcleo que, anteriormente não tínhamos percebido quando utilizávamos as técnicas de "dividir para conquistar" e de "stop-and-chop". Eventualmente, quando a fixação do núcleo não era profunda, em vez de quebrá-lo, separávamos um conjunto de lamelas superficiais e pouco densas, de uma estrutura interna, compactada, assemelhando-se ao núcleo (Figura 1).
Em publicações relativamente recentes(5-6), Nagahara mostra o desenho do núcleo duro formado por uma camada externa, menos rígida, e um "núcleo interno", muito duro (Figura 2). Tomando como referência este esquema anatômico e a observação cirúrgica referida consideramos a existência de um plano de clivagem, situado entre a camada externa e o "núcleo interno", e desenvolvemos um método de divisão anatômica do núcleo, que denominamos de nucleodissecção, aplicado à cirurgia de facoemulsificação. O objetivo do trabalho é descrever este método, os modelos cirúrgicos resultantes e as peculiaridades da anatomia cirúrgica do núcleo que foram evidenciadas.
MÉTODOS
Técnica de nucleodissecção
Realizamos a facoemulsificação sob anestesia tópica e sedação vigil. As incisões são corneanas e a capsulorhexis é ampla, com diâmetro em torno de 6 mm. Fazemos a hidrodissecção, rotação do núcleo, aspiração do córtex e epinúcleo, presentes na área limitada pela capsulorhexis, e damos início à nucleodissecção.
As substâncias viscoelásticas (SVE) são usadas em todas as etapas cirúrgicas, como proposto por Arshinoff(7): o viscoelástico dispersivo, para proteger o endotélio, e o coesivo, para criar espaço. Os equipamentos de facoemulsificação utilizados são Legacy ¾ 20000 (Alcon) com os parâmetros fixados em 60% de poder de faco, 400 mmHg de limite de vácuo e 34 cc/min de aspiração e AMO-Prestigie (Allergan) com os parâmetros de 70% de poder de faco, 300mmHg de limite de vácuo e 28 cc/min de aspiração. A extremidade exposta da ponteira do facoemulsificador deve medir, inicialmente, entre 1,5 a 2 mm. Durante o ato cirúrgico, os parâmetros do equipamento podem ser modificados e o comprimento da extremidade da ponteira encurtado, dependendo da necessidade do cirurgião.
A nucleodissecção
1) A câmara anterior é preenchida com substância viscoelástica, 2/3 dispersiva e 1/3 coesiva. A ponteira - pedal no estágio 1 - e o instrumento auxiliar - o gancho de Sinskey ou o "chopper" - são colocados no seu interior, respectivamente, através da incisão principal e de uma das paracenteses - fazemos duas.
2) Depois de aspirado o córtex e o epinúcleo, estabilizamos o núcleo com o instrumento auxiliar e penetramos a ponteira na camada externa, próximo ao centro. Alternando o pedal entre os estágios 3 e 2, vamos introduzindo a ponteira levemente inclinada até conseguirmos boa oclusão e fixação do núcleo (Figura 3). É a mesma manobra de fixação do núcleo proposta por Nagahara(5-6, 8). Neste caso, limitada à camada externa.
3) Em seguida, fazemos a avulsão de parte da camada externa, usualmente, expondo o equador do "núcleo interno" (Figura 4), com movimentos contrários da ponteira e do instrumento auxiliar.
4) Continuamos dissecando a camada externa com a mesma manobra, modificada pela horizontalização da ponteira e o posicionamento verticalizado do bisel, que funciona com um instrumento cortante. Se for preciso, para determinar onde reiniciar o processo afastamos, com o instrumento auxiliar, o pedaço desinserido da camada externa, para que possamos visualizar o "núcleo interno" e a camada externa sobrejacente, e em seguida prosseguimos, segmentando por todos 360º (Figuras 5a-5b). A manobra é repetida quantas vezes se fizer necessária, até completar toda a dissecção. No final, a camada externa mostra-se fatiada como se faz com uma "pizza" e o "núcleo interno" aparente.
5) Luxamos o "núcleo interno" - que pode ser emulsificado na superfície do núcleo ou "in sito" - com o gancho de Sinskey, às vezes ajudado pela ponteira do faco (Figuras 6a e 6b).
6) A emulsificação foi, inicialmente, feita de modo intuitivo e em seguida de acordo com os modelos de facoemulsificação originados da prática da nucleodissecção.
RESULTADOS
A camada externa deve ser consistente para que haja oclusão da ponteira e fixação do núcleo à sua extremidade, e o número de divisões necessárias à dissecção é variável. Nas cataratas duras, as "fatias" devem ser menores e mais numerosas, para que a dissecção ocorra com mais facilidade. As rachaduras anteriores podem estender-se posteriormente de modo incompleto, nas cataratas moderadamente duras (Figura 7). Nas cataratas maduras, as rachaduras, usualmente, ficam limitadas à camada externa anterior (Figura 8).
As primeiras nucleodissecções foram realizadas em cataratas negras, que apresentam uma camada externa muito dura, tanto na porção anterior como na porção posterior (Figura 8). Depois de emulsificar o "núcleo interno", observamos o aparecimento de um espaço no interior do núcleo, que denominamos de espaço intranuclear (Figura 8). Os segmentos da camada externa anterior foram emulsificados isoladamente (Figura 9) e, em seguida, a porção posterior foi deslocada para câmara anterior e aí emulsificada (Figuras 10a e 10b).
Nas cataratas com núcleos moderadamente duros (Figura 11), foi possível destacar conjuntos de lamelas, correspondentes às divisões da camada externa, formados por suas fibras mais rígidas, das lamelas superficiais e brandas. A face interna de cada divisão foi fixada com a ponteira do faco e em seguida deslocada para o centro do espaço intranuclear. Usando o gancho de Sinskey, descascávamos as lamelas superficiais e brandas, do conjunto de lamelas rígidas, que pode ser emulsificado no espaço intranuclear. Esta manobra estende as rachaduras posteriores até o centro, permitindo soltar as lamelas posteriores.
As diferentes características anatômicas da camada externa resultaram em dois diferentes modelos cirúrgicos, que têm como etapas comuns: a dissecção inicial, através da divisão desta camada, e a emulsificação do "núcleo interno".
Modelo 1 - (Cataratas com núcleos duros) - Usando a ponteira do facoemulsificador, rajadas de ultra-som e o vácuo, apreendemos os segmentos da camada externa levando-os ao centro do espaço intranuclear e emulsificando-os, de preferência até o equador. Feito isto, resta-nos a porção posterior da camada externa, usualmente chamada de "prato posterior", que é deslocada para a câmara anterior e emulsificada, sem ser dividida (Figura 12).
Modelo 2 - (Cataratas com núcleos moderadamente duros) - Usando a ponteira, algumas rajadas de ultra-som e o vácuo, separamos o conjunto de lamelas duras (formadas tanto por fibras anteriores como posteriores), das lamelas superficiais e brandas e o emulsificamos no espaço intranuclear (Figura 11). Durante a emulsificação das últimas lamelas, pode ocorrer perda do suporte capsular, com migração do tecido remanescente, para a câmara anterior, onde deve ser emulsificado e ou aspirado. Na faconucleodissecção, este evento é minimizado devido ao reforço dado à arquitetura capsular pelas lamelas superficiais da camada externa que são incorporadas ao epinúcleo.
Ocasionalmente, fraturávamos o núcleo com a manobra inicial de nucleodissecção. Nestes casos, as cirurgias foram efetuadas usando uma técnica de nucleofratura centrífuga(4), modificada por elementos da nucleodissecção.
COMENTÁRIOS
A técnica de nucleodissecção estabeleceu o conceito de divisão anatômica do núcleo e possibilitou o desenvolvimento de dois diferentes modelos de facoemulsificação com aplicação imediata, principalmente na cirurgia da catarata madura que tem na fratura do núcleo sua maior dificuldade(5-6, 9). A quantidade de energia de ultra-som usada é baixa, pois não há necessidade de esculpir o núcleo e há um grande aumento do campo cirúrgico, em razão da adição do espaço intranuclear (aumento absoluto) e das reduzidas dimensões dos fragmentos (aumento relativo), facilitando sobremaneira as manobras cirúrgicas.
A emulsificação ocorre mais distante do endotélio corneano e, certamente, com menor trauma causado pelos fragmentos do núcleo e pela energia de cavitação. A cápsula posterior também fica mais protegida em função do revestimento proporcionado pela camada formada pelo epinúcleo e lamelas superficiais da camada externa, ou pelo "prato" formado por sua porção posterior.
As manobras mecânicas causam pouca tensão zônulo-capsular, pois são realizadas na superfície do núcleo e restritas, na quase totalidade, à área limitada pela capsulorhexis. Apenas nas cataratas com núcleos duros há uma maior elaboração das manobras, contudo, continuam de fácil execução: o deslocamento do prato posterior para a câmara anterior é auxiliado pela injeção de SVE coesiva entre ele e a cápsula posterior, que é empurrada para trás, enquanto que a camada externa posterior é deslocada na direção contrária, para a câmara anterior. Usando o gancho de Sinskey e a ponteira do faco, posicionamos o "prato" posterior o mais adequadamente possível, procurando evitar o trauma mecânico do endotélio corneano durante sua emulsificação. Nas cataratas moderadamente maduras é possível fazer a emulsificação de quase todos os fragmentos no interior do espaço intranuclear, exceto quando há perda do suporte capsular do final a facoemulsificação.
A fixação do núcleo à ponteira não é tão estável na nucleodissecção, como na técnica de faco "chop", em razão do seu posicionamento superficial. Esta relativa instabilidade pode ser compensada aumentando-se a exposição da extremidade da ponteira e introduzindo-a numa maior extensão horizontal na camada externa.
A desvantagem da nucleodissecção em relação à fratura é o tempo cirúrgico um pouco maior; como complicação específica observamos que a perda do vácuo durante a dissecção pode resultar, com maior freqüência, em apreensão e lesão da borda pupilar.
A técnica de nucleodissecção também possibilita facoemulsificar a catarata segundo o princípio de dividir para conquistar(2), assim como as diversas técnicas de fratura(2,7-9).
As técnicas de fratura ou esculpem o núcleo, facilitando sua quebra(2) ou recorrem a manobras mecânicas, eventualmente, de relativa complexidade(4,9-10), ou ambos(11). Promovem a divisão do núcleo em toda sua extensão anteroposterior, resultando fragmentos muito grandes, que eventualmente ocupam toda a câmara anterior, sendo emulsificados muito próximo do endotélio corneano. As extremidades dos fragmentos são afiadas e formadas pela porção mais dura do núcleo ("núcleo interno"), provocando ocasionalmente lesões capsulares(4-5). Durante a emulsificação, o campo cirúrgico é restrito e a cápsula posterior não tem qualquer proteção ou apenas a do epinúcleo(12). Apenas as técnicas que utilizam a escultura do núcleo são capazes de criar espaços e ampliar o campo cirúrgico.
Como vimos, a nucleodissecção divide o núcleo sem recorrer ao uso de ultra-som ou de manobras mecânicas complexas; os fragmentos de núcleo são de dimensões reduzidas e não apresentam extremidades pontiagudas e duras; aumenta o campo cirúrgico anteroposteriormente de modo significativo sem esculpir o núcleo; possibilita a emulsificação dos fragmentos mais distante do endotélio, tendo a cápsula posterior protegida. Portanto, acreditamos que a técnica de nucleodissecção será, à medida que seus conceitos forem absorvidos, incorporada ao arsenal cirúrgico do oftalmologista, assim como já o fizemos.
REFERÊNCIAS
1. Gimbel HV Divide and conquer. In: European Introcular Lens. European Society of Cataract and Refractive Surgery. Council, Jerusalem, 1987.
2. Gimbel HV. Divide and conquer nucleofractis phacoemulsification: development and variation. . J Cataract Refract Surg 1991;17:281-91.
3. Gimbel HV, Brown D. Advanced phacoemulsification technique. In: Gills JP. editor Cataract surgery- The state of the art. Thorofare, N.J.: C.B. Slack; 1998. p.101-24.
4. Freitas M. "Chop" Universal. In: VI Congresso Internacional da Sociedade Brasileira de Catarata Lente Intraocular e da Sociedade Brasileira Cirurgia Refrativa, Rio de Janeiro, Brasil, 2000 .
5. Nagahara KB. Phaco Shop development and recent advances. In: Masket S, Crandall AS, editors. Atlas of cataracr surgery. London: Martin Dunitz, 1999. p.31-7.
6. Nagahara KB. Personal phacoemulsification technique. In: Buratto L. editor. Phacoemulsification principles and techniques. Thorofare, N.J.: C.B. Slack; 1998. p.355-9.
7. Arshinoff S. A nova ciência & aplicações clínicas dos viscoelásticos. Ocular Surg news-edição internacional. Janeiro/fevereiro, 1999.
8. Cionni RJ. Challenging phacoemulsification procedures. In: Masket S, Crandall AS editors. Atlas of cataract surgery. London: Martin Dunitz; 1999 p.241-53.
9. Nagahara KB. Advanced phaco shop technique boost safety, cuts ultrasound time for hard nuclei. Ocular Surg News 1995;2:12-3.
10. Arshinoff SE. Phaco slice and separate. J Cataract Refract Surg 1999;25:474-8.
11. Koch PS, Katzen LE. Stop and chop phacoemulsification. J Cataract Refract Surg 1994;20:566-70.
12. Fine IH. The chip and flip phacoemulsification technique. . J Cataract Refract Surg 1991;17:366-71.
Mestre em Oftalmologia, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto ¾ Universidade de São Paulo.
Diretor do Instituto de Olhos Freitas
Endereço para correspondência: Rua Jequié, 4 - Rio Vermelho - Salvador (BA) CEP 41940-580.
E-mail: [email protected]
Nota Editorial: Pela análise deste trabalho e por sua anuência sobre a divulgação desta nota, agradecemos ao Dr. Leonardo Akaishi.
Recebido para publicação em 13.03.2001
Aceito para publicação em 01.10.2001