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Artigo Original

Avaliação oftalmológica em hanseníase multibacilar

Ophthalmological examination in multibacillary leprosy

Marcio Sued da Costa1; Maria Eugenia Noviski Gallo2; José Augusto da Costa Nery2; Eliezer Benchimol1

DOI: 10.1590/S0004-27491999000600009

RESUMO

Objetivo: Determinar a freqüência e o tipo de comprometimento ocular em pacientes portadores de hanseníase no momento do diagnóstico. Metodologia: O estudo foi realizado na Fundação Oswaldo Cruz (Rio de Janeiro) e avalia 77 casos classificados como multibacilares. O exame oftalmológico foi realizado de acordo com o sistema de classificação de discapacidades recomendado pela Organização Mundial de Saúde. Resultados: Referiam queixas especificas 36,3%: dor e ardência ocular, lacrimejamento e dificuldade para enxergar. Em 55,8% dos pacientes foram detectadas alterações oculares no exame oftalmológico. A diminuição da sensibilidade da córnea, que predispõe a ulceração e opacificação, foi a alteração mais freqüente (29,3%). Conclusão: Os achados desta pesquisa demonstram a gravidade e a alta freqüência das lesões oculares nos casos avaliados e alertam para a importância do exame oftalmológico como rotina em portadores de hanseníase multibacilar.

Descritores: Infecções oculares bacterianas; Mycobacterium leprae

ABSTRACT

Purpose: To evaluate the ocurrence of ophthalmologic involvement in multibacillary leprosy patients. Methods: At FIOCRUZ, Rio de Janeiro, 77 multibacillary leprosy patients were evaluated on diagnosis. Results: On ophthalmologic examination 55.8% of the patients presented ocular involvement and the most fre-quent type was a loss of the sensitivity of the cornea. Conclusion: Ophthalmologic examination should be a routine examination in leprosy diagnosis in order to pre-vent ophthalmologic lesions in leprosy patients.

Keywords: Eye infections; Bacterial; Mycobacterium leprae

Avaliação oftalmológica em hanseníase multibacilar

 

Ophthalmological examination in multibacillary leprosy

 

Marcio Sued da Costa(1)
Maria Eugenia Noviski Gallo(2)
José Augusto da Costa Nery(3)
Eliezer Benchimol(4)

 

 


 

 

INTRODUCÃO

A hanseníase, doença infecciosa causada pelo Mycobacterium leprae, afeta a pele, nervos periféricos e olhos, além de outras estruturas. O envolvimento ocular como causa de incapacidade nesta afecção é bem conhecido. Hansen, em 1873, já referia que "não há doença que tão freqüentemente dá origens a lesões oculares como a lepra". O bacilo pode atingir, direta ou indiretamente, quase todas as estruturas do olho sendo o aparelho lacrimal, pálpebras, córnea e úvea os mais acometidos 1. Referências sobre as complicações oculares da doença em nosso meio foram bem documentadas desde a década de 40 2, 3. Publicações atuais, como a constatação de uveíte com identificação do bacilo na câmara anterior do olho, em paciente com hanseníase multibacilar 4 e pesquisas do M. leprae na conjuntiva 5 e na retina 6 fornecem informações importantes para um melhor entendimento do olho e seus anexos na infecção hansênica. O objetivo deste trabalho foi determinar a freqüência e as alterações oculares mais encontradas em portadores de hanseníase classificados como multibacilares 7 no momento do diagnóstico.

 

MATERIAL E MÉTODOS

O estudo foi realizado no Centro de Referência Nacional em Hanseníase do Instituto Oswaldo Cruz e no Centro de Referência em Infecção Oftalmológica do Hospital Evandro Chagas, ambos da Fundação Oswaldo Cruz (Rio de Janeiro). A rotina da Unidade Assistencial aos hansenianos inclui, entre outros, o exame oftalmológico no momento do diagnóstico. Foram selecionados 77 casos, classificados como multibacilares e que não tinham sido submetidos a nenhum tratamento específico prévio. O exame oftalmológico foi realizado no período entre 1991 a 1993 por médico oftalmologista utilizando a padronização do exame clínico sugerido pela OMS 8.

 

RESULTADOS

A idade dos pacientes examinados variou de 9 a 70 anos com média de 36 anos.

A avaliação dos casos em relação a distribuição por sexo, anamnese dirigida aos sintomas oculares e exame oftalmológico, são apresentadas na Tabela 1.

Os sintomas referidos, ardência ou dor ocular, lacrimejamento e dificuldade para enxergar foram encontrados em 36,3% (28/77) dos casos. O exame oftalmológico constatou alterações em 55,8% (43/77) demonstrando que, 15 casos assintomáticos apresentaram comprometimento ocular. Na Tabela 2, são apresentados o tipo e a ocorrência das alterações observadas.

 

 

DISCUSSÃO

As variações nas qualidades dos registros dos programas de controle, os diferentes métodos de avaliação e padronização dificultam estimativas sobre o envolvimento ocular na hanseníase. Além destas divergências operacionais a incidência do comprometimento ocular é influenciado por múltiplos fatores, especialmente a forma clínica e o tempo de evolução da doença. A literatura refere que aproximadamente 1/3 do total de pacientes de hanseníase do mundo, estimado em 12 milhões de casos, apresentem algum tipo de incapacidade, incluindo alterações sensoriais de extremidades 9.

Autores que estudam os fatores de risco para o desenvolvimento das manifestações de agudização da doença, denominadas episódios reacionais 10, 11, referem que os pacientes classificados como multibacilares apresentam maior risco em apresentar reações, conseqüentemente maior probabilidade de desenvolver incapacidade, incluindo as lesões oculares. Oréfice e cols 12 referem a presença do M.leprae na conjuntiva, esclera, córnea, íris, corpo ciliar, corpo vítreo e retina em paciente multibacilar. Portanto, além dos mecanismos imunológicos temos os ocasionados pela presença do bacilo na etiopatogenia do comprometimento do olho e anexos.

Em nosso estudo, todos os casos estudados foram classificados como multibacilares com predomínio do sexo masculino (73,5%). De acordo com as informações oficiais 13 embora a distribuição no país entre as formas paucibacilares e multibacilares seja equivalente, há um maior percentual de casos do sexo masculino entre os multibacilares.

Na anamnese direcionada, menos da metade dos casos (36,3%) referiam sintomas oculares. No entanto, ao exame oftalmológico foram detectadas alterações oculares em 55,8% dos pacientes. De acordo com a literatura 14 são encontradas em pacientes hansenianos as seguintes alterações oculares: atrofia parcial da íris, ceratite, diminuição da força do músculo orbicular, lagoftalmo, madarose, nódulo iriano, neurite supra-orbitária, diminuição da sensibilidade da córnea e xeroftalmia. Assim, demonstra-se a importância de realizar exame oftalmológico em todos os pacientes portadores de hanseníase da forma multibacilar, inclusive nos casos assintomáticos.

A freqüência das alterações oculares detectadas no presente estudo são semelhantes aos referidos em estudos em Hospital Colônia 15 e em ambulatório 16.

Estudo multicêntrico 17 realizado em vários países endêmicos, inclusive o Brasil, utilizando protocolo e formulários padronizados, encontrou percentuais que variam de 5 a 51% de pacientes com lesões que potencialmente podem levar à cegueira. Lubbers et al. em 1994 18, avaliando pacientes de áreas de alta endemicidade, no momento do diagnóstico, referem a presença de lesões oculares em 37,3% dos casos.

Entre as alterações oculares dos casos estudados, a mais freqüente (29,3%) foi a diminuição da sensibilidade corneana que predispõe à ulceração e opacificação. A úlcera da córnea é referida como uma das principais causas da cegueira em Hanseníase 19. Nos casos multibacilares a alteração da sensibilidade da córnea só ocorre após longo tempo de evolução da doença sem tratamento, e é considerada na avaliação do grau de incapacidade do hanseniano 13.

O grau de incapacidade é um dos indicadores utilizados na avaliação da qualidade dos programas de controle em hanseníase 20 sendo o tempo de evolução da infecção pré-diagnóstico relacionado com o agravamento das incapacidades 21. Considerando os resultados encontrados nesta pesquisa podemos concluir que nossos pacientes foram diagnosticados tardiamente e já com alterações oculares graves, com risco potencial de cegueira. Importante ressaltar que, o diagnóstico tardio de uma doença contagiosa e incapacitante é prejudicial não só para o portador da doença, pela presença de alterações sensoriais ou motoras, como para a coletividade exposta ao contágio.

Acreditamos que estes resultados possam sensibilizar e alertar os oftalmologistas para a hanseníase ocular e suas conseqüências lembrando que a detecção e o tratamento precoce previnem e impedem as incapacidades, incluindo a perda visual.

 

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem o apoio técnico da Srª. Jocielma Zua.

 

 


SUMMARY

Purpose: To evaluate the ocurrence of ophthalmologic involvement in multibacillary leprosy patients. Methods: At FIOCRUZ, Rio de Janeiro, 77 multibacillary leprosy patients were evaluated on diagnosis. Results: On ophthalmologic examination 55.8% of the patients presented ocular involvement and the most fre-quent type was a loss of the sensitivity of the cornea. Conclusion: Ophthalmologic examination should be a routine examination in leprosy diagnosis in order to pre-vent ophthalmologic lesions in leprosy patients.

Keywords: Eye infections; Bacterial; Mycobacterium leprae.


 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Woods WJ. Manifestações Oftalmológicas. In: Talhari S, Garrido Neves R. Hanseníase. 3 ed. Manaus: Ed. Gráfica Tropical, 1997; Capítulo 5.         

2. Barros JM. Aspectos Clínicos do comprometimento ocular na lepra. São Paulo: Melhoramentos, 1939.         

3. Barros JM. As complicações oculares da lepra. Rev Bras Leprol 1945;l4:103-5.         

4. Campos WR, Oréfice F, Sucena MA, Rodrigues CAF. Bilateral irido-cyclitis caused by Mycobacterium leprae diagnosed through paracentesis. Indian J Leprosy 1998;70:27-31.         

5. Campos WR. Encontro do Mycobacterium leprae na conjuntiva de pacientes hansenianos pela técnica de raspado da conjuntiva tarsal superior. Arq Bras Oftal 1995;53(3):23-9.         

6. Oréfice F, Miranda D, Boratto LM. Presence of M. leprae in the conjunctiva vitreous body and retina of a patient having lepromatous leprosy. ¾ Indian J Leprosy 1998;70:97-102.         

7. Fundação Nacional de Saúde. Guia de controle da hanseníase. Brasília: Ministério da Saúde, 1994.         

8. WHO ¾ Who Expert Committee on leprosy. Sixth Report. Geneve, 1998 (Tech Rep Ser, 768).         

9. Vieth H, Salotti SRA, Passerotti S. Guia de prevenção ocular em hanseníase. São Paulo: Instituto Lauro de Souza Lima, 1996.         

10. Becx-Bleuminck M, Berhe D. Ocurrence of reations,their diagnosis and management in leprosy patients treated with multidrug therapy; experience in the Leprosy Control Program of the All Africa Leprosy and Rehabilitation Training Center (ALERT) in Etiópia. Int J Lepr 1992;60:173-84.         

11. Nery JAC, Vieira LMM, Matos HJ, Gallo MEN, Sarno EN. Reactional States in multibacillary Hansen disease patients during multidrug therapy. Rev Inst Med Trop S Paulo 1998;40:363-70.         

12. Oréfice F, Miranda D, Boratto LM. Bacilos de Hansen na conjuntiva, corpo vítreo e retina em um olho enucleado de paciente portador de forma virchowiana. Arq Bras Oftal 1990;53(1):21-7.         

13. Fundação Nacional de Saúde. Hanseníase no Brasil; progressos e dificuldades em relação a eliminação. Brasília: Ministério da Saúde, 1998.         

14. Brand ME, TF ffytche. Eye complications of leprosy. In Leprosy Hastings Robert C. Churchill Livingstone. Hong Kong 1995.         

15. Moreno RD, Woods WJ. Prevalência das alterações oculares em pacientes portadores de hanseníase em um Hospital Colônia no Acre. Arq Bras Oftalmol 1999;62:254-7.         

16. Oliveira Neto HL, Silva JLM, Manso PG, Botehe IM, Sartori MBF. Envolvimento ocular na Hanseníase: estudos em pacientes de ambulatório. Arq Bras Oftalmol 1996;59:162-70.         

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18. Lubbers WJ, Schipper A, Hogeweg M, De Soldenhoff R. Eye disease in newly diagnosed leprosy patients in Eastern Nepal. Lepr Rev 1994;65:231-8.         

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20. Glatt R, Alvim MFS. Situação da Hanseníase no Brasil e Diretrizes do Plano Nacional de Eliminação. In: 2° Curso Internacional de Leprologia; San José, Costa Rica. 1995 (Mimeo).         

21. Pimentel MIF. Neurites na Hanseníase: Significados de Parâmetros Clínicos e Epidemiológicos na Indução e Agravamento das Incapacidades Físicas em Pacientes Multibacilares, 1999. .         

 

 

Trabalho realizado na Fundação Oswaldo Cruz (RJ).

(1) Oftalmologista do Centro de Referência em Infecção Oftalmológica do Hospital Evandro Chagas. FIOCRUZ (RJ).
(2) Doutor em Doenças Infecciosas e Parasitárias. Centro de Referência Nacional em Hanseníase. FIOCRUZ (RJ).
(3) Mestre em Dermatologia. Centro de Referência Nacional em Hanseníase. FIOCRUZ (RJ).
(4) Pesquisador Titular e Chefe do Centro de Referência em Infecção Oftalmológica do Hospital Evandro Chagas. FIOCRUZ (RJ).
(1,4) Centro de Referência em Infecção Oftalmológica do Hospital Evandro Chagas / FIOCRUZ (RJ).
(2,3) Centro de Referência Nacional em Hanseníase / FIOCRUZ (RJ).

Os autores declaram não possuir interesse financeiro no referido estudo.

Endereço para correspondência: Drª Maria Eugenia Noviski Gallo - Fundação Oswaldo Cruz - Lab. de Hanseníase - Av. Brasil, 4365. Manguinhos - Rio de Janeiro. CEP 21045-900. Telefax: (021) 270-9997.


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