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Renovação editorial

Honorários médicos, Sistema Único de Saúde e ensino da oftalmologia para o século XXI

Rubens Belfort Jr.1

DOI: 10.1590/S0004-27491999000600003

EDITORIAL

Honorários médicos, Sistema Único de Saúde e ensino da oftalmologia para o século XXI

 

Rubens Belfort Jr.

 

 

A Oftalmologia é uma das especialidades médicas onde nas últimas décadas ocorreu a maior revolução em técnicas diagnósticas e terapêuticas e está também entre as áreas onde mais aumentou a demanda expontânea e referida. Tal desenvolvimento veio felizmente propiciar o emprego de técnicas eficientes em preservar e restaurar a visão de um número muito maior de pessoas, avanço extremamente importante uma vez que nesses últimos 20 anos acentuou-se o envelhecimento populacional, diminuindo a importância de algumas áreas da Medicina e aumentando outras, como a Oftalmologia.

A maior longevidade, a explosão da comunicação visual e a necessidade de independência e participação sócio econômica, associada ao fato que, infelizmente o olho após os 40 anos de idade, para continuar a propiciar boa visão para longe e para perto, necessita sempre de auxílio, explicam a enorme importância médica e social da Oftalmologia e o aumento ainda maior no próximo século, em todo o mundo.

A população brasileira também está envelhecendo e o contingente populacional cada vez maior acima dos 50 anos é crescente, trazendo necessidade de maior participação oftalmológica nos programas de saúde.

Esta explosão da demanda veio alcançar a oftalmologia brasileira já defasada, com um número enorme de pacientes com catarata, glaucoma, retinopatia diabética e outras doenças em situação visual extremamente crítica e aguardando em filas cada vez mais longas, sem atendimento.

As causas principais de baixa visual na nossa população não são doenças degenerativas, metabólicas, tumorais, genéticas ou desconhecidas como as de países desenvolvidos. São as tipicamente encontradas em países subdesenvolvidos e, vergonhosas: falta de óculos e de cirurgia de catarata. Seguidas de outras doenças, também de diagnóstico possível e tratamento favorável desde que instituída a medicina contemporânea: o glaucoma e a retinopatia diabética. Este é o grande desafio da saúde visual para os oftalmologistas e governos: resolver o que sobrou do passado, a necessidade do presente e planejar a resolução também daquelas que irão agravar-se muito nos próximos anos.

Precisamos do número adequado de oftalmologistas para atender as necessidades primárias, secundárias e terciárias da população.

Também no Brasil o sistema de residência deveria ter no mínimo 3 anos para possibilitar ao profissional não somente o aprendizado mas o manejo adequado das técnicas atuais de diagnóstico e tratamento e também o seu preparo para manter-se atualizado durante a vida. A residência não é apenas para informar. Com a revolução na tecnologia da informação, o sistema de ensino, cada vez mais tem de se preocupar em formar e desenvolver a capacidade cognitiva profissional.

A residência deve ser o treinamento em serviço que ensina a adquirir a informação, a fazer (examinar, tratar e operar), sob supervisão de quem sabe e faz. Pouco adianta o residente participar de programa de professores bem titulados que pouco ou nada transmitem e limitam-se às aulas, limitam-se a informar.

Os locais de treinamento de residência não devem mais apenas ser sua sala de aula por 2 anos mas sua base, o ambiente profissional, educacional onde recebe os fundamentos iniciais e periodicamente volta para as reciclagens necessárias, sendo o ambiente onde pratica-se oftalmologia moderna, ética e séria.

O ensino da Oftalmologia precisa ser destinado não apenas aos residentes mas também aos médicos oftalmologistas, reciclando-os principalmente nos procedimentos cirúrgicos. Enorme engodo querer acreditar que congressos e cursos teóricos ou de wet labs alcançam este objetivo.

Evidentemente que medir a capacitação de médicos e conferir-lhes mesmo o título de especialista, baseado em prova apenas teórica e exame superficial de um paciente (perguntando a propedêutica básica sem exigir nada do moderno) é ruim para a sociedade, para a Oftalmologia e para o paciente. Dois anos de aprendizado em instituições freqüentemente deficientes apesar de "credenciadas" é tudo o que se supõe ser necessário para o médico oftalmologista ter condições de exercer a sua profissão. Muitos residentes terminam titulados mas despreparados a ir além da oftalmologia primária. Iniciam desta maneira, já mal formados, e desatualizados apesar de especialistas. Especialista que muitas vezes não sabe operar.

O problema da cirurgia da catarata é um grande exemplo. Que adianta termos 8.000 médicos exercendo a Oftalmologia e 5.000 especialistas se apenas cerca de 1500 operam catarata de maneira sistemática ? Em retina, transplante de córnea e outras sub-áreas a situação não é diferente. As residências de Oftalmologia continuam alicerçadas na década de 70.

A facoemulsificação com LIO dobrável se impõe no mundo todo como procedimento padrão e claro, os residentes deveriam ser treinados para realização de facoemulsificação. A técnica extra-capsular deve continuar a ser ensinada, mas para os cada vez mais raros casos onde a facoemulsificação é contra indicada.

O paciente pobre não pode e não deve receber uma medicina inferior e este tipo de segregação odiosa deve ser denunciada e repudiada. Cabe à sociedade sob a liderança dos oftalmologistas lutar para os recursos necessários serem destinados através dos sistemas de saúde públicos e privados.

Outras áreas da medicina tem conseguido atualizar os seus honorários junto ao governo, convênios e seguros. Os oftalmologistas tem de fazer o mesmo e reivindicar os recursos necessários para poder assistir a população, ensinar e formar adequadamente os profissionais de amanhã.

O financiamento é fundamental.

As tabelas de honorários médicos do SUS e de muitos convênios e seguros de saúde freqüentemente não contemplam os procedimentos melhores para os pacientes obrigando-os a submeterem-se a tratamentos ultrapassados que eticamente deveriam ser desaconselhados e evitados em função das suas desvantagens.

Cabe aos oftalmologistas e suas associações com apoio das universidades e indústrias reivindicar e lutar com energia para que as maravilhas dos avanços médicos sejam trazidas à população geral e a todos os oftalmologistas, e não se limitem aos mais ricos, médicos e pacientes.

Sem dúvida um grande grupo de oftalmologistas do país ganha pouco e menos que o razoável, mas também entre nós há uma perversa distribuição de renda. Como sempre o problema é de educação. Dos 8.000 oftalmologistas e 5.000 especialistas menos de 2.000 são cirurgiões e a razão principal é que não foram educados adequadamente. Infelizmente muitos médicos dedicam-se cada vez mais apenas as áreas de maior lucratividade; alguns com apetite predador insaciável, deturpando a prática da medicina, a imagem do médico, deformando as novas gerações e vagabundeando pelo serviço público, usando-o em seu único e próprio proveito. Muitos médicos tem a lucrologia como sua verdadeira, triste e doentia especialidade, inserida na morbidade corporativista.

Em relação especificamente aos hospitais universitários e à tabela do SUS é imprescindível a sua modernização no sentido de contemplar, ao lado de procedimentos clássicos como a facectomia extra-ocular também a facoemulsificação, preservação de tecidos para transplante de córnea, novos recursos diagnósticos, cirurgias de retina e mácula, etc. Sem isto não é possível ensinar.

À Universidade e à nós oftalmologistas e educadores cabe a liderança. Às sociedades de classe, à indústria e aos governos a participação na discussão para que os interesses maiores da sociedade sejam contemplados.

À indústria cabe também a responsabilidade de introduzir e continuar a manter no país sistemas que além de economicamente viáveis e lucrativos, tragam também a maior quantidade de benefícios com o menor custo para a população.

A adoção de modelos mercadológicos, criticados atualmente pelo desperdício, mesmo em países de primeiro mundo, com uso abusivo e dispendioso de substâncias e produtos descartáveis sem necessidade, deve ser denunciada e repudiada. Os aparelhos de facoemulsificação e vitrectomia devem cada vez mais utilizar produtos recicláveis, reesterelizáveis e que possibilitem utilização em custo menor e benefício maior.

Trata-se da próxima etapa de luta a ser encarada por nós, oftalmologistas e educadores. A modernização e atualização econômica das tabelas do SUS e convênios para que possamos continuar prestando assistência médica à população e preparar os médicos a também enfrentar os desafios do futuro além de resgatar o passado e o presente ensinando o que é necessário ensinar.

A reivindicação pelo pagamento dos insumos e equipamentos imprescindíveis à prestação ética da medicina à população precisa ser priorizada junto aos convênios e governos, não somente para assistir melhor à população mas para aumentar o número de verdadeiros oftalmologistas e preparar as novas gerações.

 

 

Professor Titular de Oftalmologia.
Escola Paulista de Medicina - Universidade Federal de São Paulo.


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