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Editorial

Corpo estranho orgânico intra-orbitário: avaliação tomográfica e conduta

Intraorbital organic foreign body: computed tomography and management

Fábio Henrique Cacho Casanova1; Paulo Augusto de Arruda Mello Filho1; Deise Mitsuko Nakanami1; Paulo Gois Manso1

DOI: 10.1590/S0004-27492001000400005

RESUMO

Introdução: A apresentação clínica do corpo estranho intra-orbitário (CEIO) é variada. A conduta e o prognóstico vão depender da composição do corpo estranho, localização e presença ou não de infecção. Objetos metálicos e de vidro são os mais freqüentes e bem tolerados, ao passo que os orgânicos causam maior reação inflamatória, podendo levar a sérias complicações. É freqüentemente difícil identificar e localizar o corpo estranho intra-orbitário apesar dos modernos métodos de exames de imagem. Objetivo: Avaliar a contribuição dos exames de imagem no diagnóstico bem como a conduta adotada em pacientes com corpo estranho intra-orbitário orgânico. Métodos: Foram avaliados 3 pacientes com corpo estranho intra-orbitário de natureza orgânica após trauma penetrante. Resultados: Todos os pacientes foram submetidos à remoção do corpo estranho, apresentando melhora do quadro clínico. A tomografia computadorizada (TC) foi essencial na avaliação, identificação e localização do corpo estranho. Conclusão: A identificação pré-operatória, com auxílio da tomografia computadorizada, do corpo estranho intra-orbitário foi útil para a condução do caso. A remoção do corpo estranho de natureza orgânica deve ser feita com o objetivo de minimizar possíveis complicações.

Descritores: Corpos estranhos no olho; Orbita; Tomografia computadorizada por raio-x; Traumatismos oculares; Prognóstico; Relato de caso

ABSTRACT

Purpose: The clinical presentation of orbital foreign bodies is variable. The management and prognosis depends on the composition, location and if there is or not secondary infection. Metallic objects and glass are the most frequently encountered and well-tolerated, while organic foreign bodies can elicit an inflammatory reaction and leads to serious complications. It is frequently difficult to identify and localize organic intraorbital foreign bodies, despite modern imaging methods. Methods: Three patients with intraorbital organic foreign body after penetrating injury were evaluated. Results: All patients were submitted to removal of the foreign body presenting an improved clinical course. Computed Tomography (CT) was essential for evaluation, identification and localization of the foreign body. Conclusion: Preoperative identification of the foreign body in the orbit with the use of computed tomography was very helpful for patient management. The removal of the organic foreign body must be performed in order to avoid complications.

Keywords: Eye foreign bodies; Orbit; X-ray computed tomography; Eye injuries; Prognosis; Case report

INTRODUÇÃO

A apresentação clínica do corpo estranho intra-orbitário é variada. Freqüentemente há história clara de trauma penetrante com retenção de corpo estranho. Embora alguns corpos estranhos sejam prontamente diagnosticados por observação direta ou por estudos de imagem convencionais, como os de origem metálica, em outros casos o diagnóstico pode ser postergado até o surgimento de complicações clínicas, semanas ou meses mais tarde(1-2). Essas complicações variam desde pequena lesão cutânea à celulite fúngica(3) perda de visão, abscesso intracraniano e morte(1,4-5).

A órbita oferece acesso vulnerável a cavidade craniana razão pela qual um trauma penetrante pode levar a comprometimento meníngeo e do sistema nervoso central. O trauma penetrante crânio-orbitário tem uma taxa de mortalidade muito mais alta que outros tipos de trauma craniano(4).

Em relação à composição do corpo estranho orbitário, os mais freqüentes são os fragmentos metálicos, partículas de vidro e de madeira(1). A conduta e o prognóstico dependem da composição, localização do corpo estranho orbitário e da presença ou não de infecção. O metal e o vidro geralmente são bem tolerados, com exceção do cobre(4).

A natureza de alguns corpos estranhos não radiopacos pode dificultar a sua localização a despeito do auxílio de exames de imagem modernos(5-9). A ultra-sonografia pode ser útil(8), porém com o auxílio da tomografia computadorizada (TC), a probabilidade de identificação do corpo estranho é maior(7-9). A TC tem a vantagem de avaliar partes moles, estruturas ósseas e conteúdo craniano(8). Por vezes, a identificação do corpo estranho pela TC só é possível através da interpretação de efeito de massa secundário e reação tissular causados pela sua presença nesta região(9).

Relatamos três casos de trauma penetrante com corpo estranho orbitário identificados com auxílio de tomografia computadorizada, avaliando a conduta e comparando com a literatura.

 

OBJETIVO

Avaliar a contribuição dos exames de imagem no diagnóstico bem como a conduta adotada em pacientes com corpo estranho orgânico intra-orbitário.

 

MÉTODOS

Foram diagnosticados e conduzidos três casos de corpo estranho intra-orbitário atendidos no nosso serviço, no período de setembro de 1995 a março de 1999.

Os pacientes foram avaliados de acordo com as características clínicas, exames de diagnóstico por imagem, tratamento e resultado.

 

RESULTADOS

Caso 1

C.S.R., 25 anos, sexo feminino, raça branca, procedente do Rio de Janeiro procurou o serviço com queixa de dor e baixa acuidade visual no olho esquerdo há um mês. A paciente referia ter sofrido um acidente automobilístico há um mês com entrada de um corpo estranho na órbita esquerda e infecção secundária. Relatava história de suturas em face e uso apenas de analgésicos.

Ao exame apresentava enoftalmo de olho esquerdo, com dor e inflamação. Observou-se também secreção purulenta, espessa e fétida. Negava diplopia. Apresentava acuidade visual de movimentos de mão no olho esquerdo.

O exame de TC de órbita evidenciava imagem hiperatenuante associada a imagem com densidade de partes moles e gases de permeio localizada em cavidade orbitária, deslocando o globo ocular anteriormente, sugestiva de corpo estranho intra-orbitário (Figura 1).

 

 

A paciente foi submetida à retirada de um fragmento de madeira (4 cm x 1 cm) que se encontrava no seio maxilar esquerdo. Posteriormente, a fratura do assoalho e o enoftalmo foram corrigidos com enxerto ósseo e de cartilagem.

No momento, o quadro encontra-se estável, com melhora estética, porém a acuidade visual se manteve em movimentos de mão.

Caso 2

E.N.O., 32 anos, sexo masculino, raça negra, natural e procedente da Paraíba, procurou o serviço com história de trauma contuso em olho direito há um mês e meio após queda de cavalo com perda da consciência. "Acordou" com baixa acuidade visual acompanhada de vermelhidão ocular, olhos "inchados", dor de forte intensidade e dificuldade para abri-los. Referiu também ter feito radiografias de face na época do trauma, sem sinais de fraturas. O paciente negava qualquer antecedente oftalmológico, sistêmico ou familiar relevante.

Durante o exame clínico observou-se proptose axial do olho direito que não se alterava com manobra de Valsalva. Apresentava ainda blefaroptose, hiperemia conjuntival difusa e quemose. Não apresentava alteração de rebordo orbitário à palpação ou qualquer sinal à ausculta.

Apresentava ausência de percepção luminosa no olho direito e visão de 20/20 no olho esquerdo. Pressão intra-ocular de 20 mmHg no olho direito e de 10 mmHg no olho esquerdo. Exoftalmometria de 25 mm no olho direito e de 18 mm no olho esquerdo, pelo aparelho de Hertel. Ausência de sopro ou pulsação ao exame. Apresentava oftalmoplegia ao exame de musculatura extrínseca ocular e midríase em olho direito. Exame de fundo de olho com palidez de papila e escavação de 0,4, sem alterações na periferia da retina. Fundo de olho esquerdo normal.

Solicitada TC de órbita que evidenciava imagem hiperatenuante medindo cerca de 8 cm no maior eixo, localizada próxima a parede medial na cavidade orbitária, junto ao músculo reto medial estendendo-se desde o septo óptico até próximo ao seio cavernoso homolateral, além de discreta proptose axial. Quadro tomográfico sugestivo de corpo estranho intra-orbitário (Figura 2).

 

 

Em virtude de sua localização, e com a suspeita de lesão em seio cavernoso, optamos por remover o corpo estranho durante estudo angiográfico de carótidas. A fase arterial não evidenciava lesão da artéria carótida interna ou do sifão carotídeo. Um pequeno balão inflável foi posicionado na artéria carótida interna para segurança do procedimento. A conjuntiva do olho acometido foi dissecada e o corpo estranho foi pinçado (Figura 3) e removido por via anterior junto ao músculo reto medial. A artéria carótida interna foi examinada novamente e mostrava fluxo normal, com paredes íntegras.

 

 

No quinto mês de pós-operatório o paciente apresentava ptose e exotropia do olho direito tendo sido encaminhado para os setores de Plástica Ocular e Estrabismo.

Caso 3

J.P.F., 11 anos, sexo masculino, branco, procurou o serviço com história de trauma em olho esquerdo há dois anos. Referia corpo estranho intra-orbitário de madeira.

Ao exame, apresentava proptose e baixa acuidade visual em olho esquerdo (conta dedos a 5 metros). Acuidade visual do olho direito era 20/20. Apresentava ainda hiperemia em conjuntiva superior, cicatriz em pálpebra e hipotropia em olho esquerdo. Exoftalmometria de 12 mm em olho direito e de 17 mm em olho esquerdo. Rebordo orbitário sem alteração à palpação, reflexos pupilares normais, tonometria de 14 mmHg e córnea transparente em ambos os olhos.

Foi solicitada TC de órbita que demonstrou presença de lesão hiperdensa em região superior da órbita, com hiperostose óssea e reação tissular circunjacente, causando proptose não axial e desviando o globo ocular para baixo e para fora.

O corpo estranho foi removido por via transpalpebral. No ato operatório foram encontrados três fragmentos de madeira medindo cerca de 32x15 mm, 19x10 mm e 15x7 mm.

Apesar da retirada dos fragmentos, não houve melhora de acuidade visual. O paciente ainda apresenta desvio do globo ocular, evidenciado clinicamente e ao exame de tomografia no pós-operatório (Figura 4). Será realizado novo procedimento cirúrgico para correção da hiperostose e reposicionamento do globo ocular.

 

 

DISCUSSÃO

A maioria dos ferimentos oculares com penetração de corpo estranho apresenta lesão superficial mínima, que geralmente não é valorizada pelo médico no momento do trauma. O tecido orbitário tende a ocluir o trajeto, dificultando a identificação de uma porta de entrada. Suspeitar é fundamental para definir o diagnóstico(1-2).

A possibilidade de corpo estranho deve ser considerada após história de trauma com presença de sinais inflamatórios persistentes, limitação de motilidade ocular, dificuldade de cicatrização ou deterioração do quadro clínico(5-7).

No caso de suspeita devemos sempre pedir exames diagnósticos de imagem. A radiografia simples é geralmente o primeiro exame a ser solicitado, devido ao seu baixo custo e fácil acesso. Pode ser útil na identificação e localização de corpos estranhos intra-orbitários, atingindo taxas de detecção de 69 a 90% dos casos de origem metálica, 71 a 77% nos casos de vidro, porém de pouca utilidade para identificação de material orgânico, como madeira (0 a 15%)(10-11).

O ultra-som é mais eficiente em localizar corpos estranhos intra-oculares que intra-orbitários, com resolução limitada a objetos maiores que dois milímetros, além de ser operador-dependente, e não permitir avaliar as regiões posteriores da órbita(2,6).

Atualmente a TC tem sido relatada como o melhor método para a detecção de um corpo estranho orbitário metálico(11). Enquanto a radiografia e o ultra-som falharam em detectar, em muitos casos, a presença de corpos estranhos, a TC e a Ressonância Nuclear Magnética (RNM) os detectaram e localizaram relativamente bem. A TC foi melhor em delinear forma e caracterizar a composição do material(11). Alguns autores sugerem a realização de novos estudos relacionados à comparação entre RNM e TC por apresentarem ainda relatos conflitantes e incompletos(6).

A TC tem a vantagem de definir claramente estruturas de partes moles da órbita, além de fornecer informações úteis quanto ao comprometimento de seios paranasais e cavidade craniana durante o exame. Apresenta algumas limitações, quando a intenção é observar a vascularização da órbita e do encéfalo. Além disso, alguns corpos estranhos têm densidades similares àquelas do tecido orbitário, podendo não ser distinguidos, principalmente os de origem orgânica(8,12).

A madeira seca pode apresentar densidade à TC semelhante ao ar, dificultando sua identificação(9,13-14). Nestes casos, alguns autores sugerem a realização de RNM, devendo ser evitada quando há suspeita de corpo estranho metálico, pois pode levar a mobilização dos mesmos devido ao campo magnético(9). Specht et al. relatam um caso de um menino com história de trauma envolvendo corpo estranho orgânico, porém a exploração cirúrgica e o exame de TC foram negativos. Neste caso, a TC apresentou um achado compatível com o ar sugerindo enfisema orbitário. O paciente apresentou piora do quadro clínico e evidenciou-se, através do exame de RNM, a presença de corpo estranho orgânico orbitário, necessitando de nova abordagem cirúrgica para retirada do mesmo. O paciente evoluiu com panoftalmite e foi submetido a enucleação(9). Roberts et al. também relatam um caso onde a TC sugere a presença de enfisema orbitário após trauma com galhos de árvore. Devido ao quadro clínico sugestivo de retenção de corpo estranho, os autores optaram por exploração cirúrgica tendo sido confirmada a presença de dois fragmentos de madeira. Neste caso, não foi necessária a realização de RNM(13). A TC também pode ser útil na confirmação da presença de ar. Bhavsar et al. reportaram um caso onde a ultra-sonografia sugeria a presença de corpo estranho, porém a TC confirmou a hipótese de enfisema orbitário. Um sinal útil para diferenciação foi o desaparecimento da lesão suspeita com o tempo devido à absorção do ar pelo organismo(14).

Apesar dessas limitações, a TC parece ser o teste isolado mais eficaz para avaliação orbitária após trauma penetrante(8) e se mostrou bastante eficiente na identificação de corpos estranhos de madeira nos três casos apresentados.

Se um corpo estranho orgânico é visto ao exame clínico, deve ser retirado. Se localizado por TC, RNM ou US, exploração e remoção deveriam ser tentadas. Se nenhum corpo estranho orgânico é visto ao exame ou à TC, porém a suspeita clínica é alta, a decisão de exploração cirúrgica deve ser orientada pelo quadro clínico do paciente(3). Deterioração inexplicada da visão, dor severa, edema progressivo e hiperemia ocular próxima ao local suspeito de lesão sugerem a existência de corpo estranho e favorecem indicação de exploração cirúrgica. Como esses corpos estranhos raramente são estéreis, a infecção é comum e é necessária antibioticoterapia sistêmica.

A combinação de suspeição clínica, conhecimento básico de exames diagnósticos, habilidade e experiência do cirurgião diminuem o risco cirúrgico de iatrogenia, se comparado ao risco inerente de retenção de corpo estranho orgânico intra-orbitário.

 

 


 

 

REFERÊNCIAS

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6. Cartwright MJ, Kurumety UR, Frueh BR. Intraorbital wood foreign body. Ophthal Plast Reconstr Surg 1995;11:44-8.         

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10. Bray LC, Griffiths PG. The value of plain radiography in suspected intraocular foreign body. Eye 1991;5(Pt6):751-4.         

11. Wilson WB, Dreisbach JN, Lattin DE, Stears JC. Magnetic resonance imaging of nonmetallic orbital foreign bodies. Am J Ophthalmol 1988;105: 612-7.         

12. Mandelcorn MS, Brown M. Computed axial tomography localization of intra-orbital foreign body. Canad J Ophthalmol 1978;13:213-5.         

13. Roberts CF, Leehey 3d PJ. Intraorbital wood foreign mimicking air at CT. . Radiology 1992;185:507-8.         

14. Bhavsar AR, Fong DS, Kerman B, Yoshizumi MC. Intraorbital air simulating an intraocular foreign body. Am J Ophthalmol 1997;123:835-7.         

 

 

Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina.

1 Médico Residente do Departamento de Oftalmologia da Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina (UNIFESP - EPM).
2 Colaboradora do Setor de Órbita do Departamento de Oftalmologia da Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina.
3 Chefe do Setor de Órbita do Departamento de Oftalmologia da Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina.

Endereço para correspondência: Fábio Casanova - Rua Botucatu, 822 - Vila Clementino - São Paulo (SP) CEP 04023-062. Fone: (11) 5085-2000. Fax: (11) 5573-4002. E-mail: [email protected]


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