Ronaldo Boaventura Barcellos1; Carlos Alberto Rodrigues Alves3; Luiz Eduardo M. Rebouças de Carvalho4; Eric Pinheiro de Andrade5
DOI: 10.1590/S0004-27492001000400002
RESUMO
Objetivo: Desenvolvimento de metodologia para avaliar a torção ocular reflexa. Métodos: Modificações no ceratômetro de Hemholtz. que permitem a avaliação da ceratometria de ambos os olhos na posição primária do olhar e durante as inclinações laterais da cabeça, para a direita e para a esquerda a 30 graus. Foram examinados um total de 16 pacientes e 32 olhos com astigmatismo refracional de 0,50 a 3,50 dioptrias (média de 1,18 ± 0,61). Resultados: Registrou-se intorção reflexa semelhante no olho direito e esquerdo (5,22 ± 3,91 para olho esquerdo e 5,31 ± 4,23 para olho direito). O mesmo ocorreu com os valores de extorção reflexa (7,84 ± 4,79 para olho esquerdo e 7,78 ± 4,09 para olho direito). Conclusão: As modificações no ceratômetro de Helmholtz permitiram a observação e quantificação da torção ocular reflexa em pacientes com astigmatismo, através de metodologia inédita e de fácil reprodutibilidade.
Descritores: Astigmatismo; Reflexo vestibulo-ocular; Movimentos oculares; Torção ocular; Técnicas de diagnóstico oftalmológico; Relato de caso
ABSTRACT
Purpose: To develop a methodology to evaluate ocular torsion reflex. Methods: Modifications of a Helmholtz keratometer were made in order to perform keratometry in the primary position and during head tilt (30 degrees to the right, 30 degrees to the left). A total of 16 patients (32 eyes) were examined. There was a mean astigmatism of 0.50 to 3.50 (mean 1.18 ± 0.61). Results: The mean recorded intortions (right eye 5.31 ± 4.23, left eye 5.22 ± 3.91) were slightly lower than the extortions (right eye 7.84 ± 4.79, left eye 7.78 ± 4.09) with no significant difference between both eyes. Conclusions: The modified Helmholtz keratometer allows new and simple method to quantify ocular counterrolling.
Keywords: Astigmatism; Reflex; vestibulo-ocular; Eye movements; Torsion; Diagnostic ophthalmological techniques; Case report
INTRODUÇÃO
A torção ocular classifica-se em verdadeira e falsa(1). A torção verdadeira é a rotação do olho ao redor do eixo visual. A torção falsa é a observada quando o olho está numa posição terciária (oblíqua). Para melhor compreensão desse fato, imaginemos dois meridianos na face anterior da córnea, um horizontal e outro vertical. Assim sendo, partindo da posição primária do olhar para uma posição terciária, ter-se-á a impressão de que a cruz formada pelos meridianos, rodou (Figura 1), o que na verdade não ocorre. Tal fato não seria observado num sistema de referências esférico no qual o observador se deslocasse acompanhando o movimento do globo.
A torção verdadeira não é um movimento voluntário, mas pode ocorrer fisiologicamente em determinadas circunstâncias. Diversos autores(2-4) observaram que as posições terciárias extremas são acompanhadas de torção verdadeira. A convergência também é acompanhada de rotação. Para cada 10 graus de convergência(5) registraram 1 grau de extorsão.
A primeira referência a torção ocular reflexa foi creditada a Hunter* em 1786(6) quando, diante do espelho, notou movimento rotacional dos olhos durante inclinação lateral da cabeça Em 1866, Javal**(6), observou uma redução de acuidade visual com seus óculos para astigmatismo, quando inclinava a cabeça lateralmente. Durante certo período houve dúvida quanto à existência ou não de uma rotação ocular compensatória, o denominado reflexo óculo-vestibular(1,7-8) questionaram a existência deste reflexo. Atualmente está comprovado que, quando a cabeça é inclinada para um lado, produz-se de imediato um movimento dos olhos no sentido oposto. Se houver inclinação para a direita, os estímulos gerados no sistema vestibular desencadeiam extorção do olho esquerdo pela contração do reto inferior e oblíquo inferior e intorção do olho direito pela contração do reto superior e oblíquo superior. Mecanismo inverso ocorre quando a inclinação se dá para a esquerda(1). A torção máxima é obtida com inclinação da cabeça pelo menos 30 graus(9).
Inúmeras técnicas foram desenvolvidas para a verificação e quantificação da torsão ocular de formas objetivas ou subjetivas.
As técnicas subjetivas são baseadas nas informações do paciente. Kushner e Kraft, descreveram a mudança do eixo do cilindro na armação de prova em pacientes astigmatas durante a inclinação da cabeça(6). Outro método descrito por estes autores baseia-se na projeção de pós-imagem com a forma de cone vertical em um dos olhos, enquanto o outro olho fixa no foco de luz através do cilindro de Maddox colocado em armação de prova.
Consegue-se produzir, portanto, a imagem de uma linha vertical vermelha que fica superposta à pós-imagem do outro olho. É então solicitado ao paciente que rode o cilindro de Maddox para superpor as duas imagens durante a inclinação da cabeça. A diferença obtida nos posicionamentos do cilindro (na PPO e na inclinação lateral) é igual a quantidade de torção reflexa(6).
Os métodos objetivos baseiam-se na observação direta do que ocorre com parâmetros facilmente identificáveis na superfície do olho (córnea, conjuntiva bulbar), íris ou retina, com relação ao referencial externo fixo, durante a inclinação lateral da cabeça. O registro destes parâmetros é feito por fotografias à biomicroscopia (córnea, conjuntiva e íris), retinografias e, mais recentemente, imagens de vídeo(9-10).
Considerando-se a limitação intrínseca aos métodos subjetivos que é a de depender da informação do paciente e a dificuldade técnica dos outros métodos já descritos, o objetivo deste trabalho é descrever e aplicar um novo método, de execução simples e fácil reprodutibilidade para quantificar a torção ocular reflexa de forma objetiva.
MÉTODOS
1. Pacientes
Selecionaram-se 16 pacientes com exame de motilidade ocular normal e idade variando de 10 a 41 anos(média de 28 ± 12,03) sendo 9 homens e 8 mulheres, num total de 32 olhos. Todos eram portadores de astigmatismo nos dois olhos entre 0,25 e 3,50 dioptrias cilíndricas (média de 1,18 ± 0,61) com acuidade visual de 20/20 nos dois olhos. Os pacientes apresentavam boa colaboração para o exame e foram orientados quanto aos procedimentos a serem realizados, assinando termo de concordância devidamente aprovado pela comissão de ética do hospital.
2. Descrição do equipamento
O método utilizado baseia-se nas ceratometrias obtidas na posição primária do olhar e nas inclinações laterais da cabeça para a direita e para a esquerda. Para obter estes valores foram feitas as seguintes adaptações no ceratômetro de Helmholtz (modelo Bausch & Lomb):
A queixeira, que está acoplada ao aparelho, foi substituída por outra fixa na mesa.
Desenvolveu-se uma articulação na base da queixeira que permite a sua inclinação lateral.
À frente da articulação colocou-se um transferidor que permite a observação do grau de inclinação.
A fixação da queixeira foi feita sobre duas hastes metálicas de 40 cm paralelas entre si que permitem deslocamento horizontal da queixeira para que os olhos fiquem sempre posicionados em frente ao ceratômetro.
O anteparo no qual é posicionada a testa é arredondado. Na altura das têmporas fixou-se um longo parafuso de ambos os lados com um pino plástico na extremidade de tal forma a impedir o deslocamento horizontal da cabeça em relação à queixeira.
A articulação possui um ponto de parada a 30 graus de inclinação para a direita e a 30 graus para a esquerda. (vide foto abaixo).
3. Metodologia
Após a refração e o exame fundoscópico os pacientes foram posicionados na queixeira na posição primária do olhar. Os pinos laterais foram fixados nas têmporas e a queixeira foi deslocada horizontalmente para que o olho a ser examinado estivesse exatamente em frente ao ceratômetro. Foi realizada a ceratometria deste olho, inicialmente sem inclinação da cabeça e a seguir com inclinações laterais direita e esquerda de 30 graus. Cuidou-se em manter a centralização do olho através do deslocamento horizontal da queixeira e do movimento vertical do próprio ceratômetro. Este mesmo procedimento foi repetido no olho contralateral. Os dois olhos permaneceram abertos durante o exame. As leituras das torções oculares, foram feitas 20 segundos após a inclinação da cabeça.
Utilizou-se para análise estatística o teste t de Student para amostras pareadas com nível de significância de 5% (a=0,05). A escolha deste teste se deveu ao fato de se tratar de uma amostra pequena e ao fato de haver uma correlação entre as medidas de extorção e intorção no mesmo olho e entre os dois olhos para um mesmo indivíduo.
RESULTADOS
O quadro 1 apresenta as medidas de extorção e intorção para o olho direito. A média de extorção foi de 7,78 ± 4,09, intorção de 5,31 ± 4,24 graus. A análise estatística revelou um p=0,178 com um a de 0,05 (5%). Conclui-se portanto que não houve diferença estatisticamente significante entre as medidas de extorção e intorção. Em parte, estes resultados se devem à grande variação dos resultados com um desvio padrão alto.
O gráfico 1 mostra a comparação entre a média de extorção e intorção do olho direito.
O quadro 2 apresenta as medidas de extorção e intorção para o olho esquerdo. A média de extorção foi de 7,84 ± 4,79, intorção de 5,22 ± 3,91 graus. A análise estatística revelou um p= 0,068 com um a de 0,05 (5%). Não há portanto uma diferença estatisticamente significativa entre extorção e intorção para o olho esquerdo, resultado que também pode ser explicado devido aos grandes desvios padrões.
O gráfico 2 mostra a comparação entre a quantidade de extorção e intorção do olho esquerdo.
Uma análise comparativa entre os dois olhos não revelou diferenças significativas quanto à intorção (p=0,967) e à extorção (p=0,941).
DISCUSSÃO
Jampel descreve a torção ocular reflexa como produto de artefatos de medida(8,11). Um desses artefatos seria a não utilização de aparelhagem esférica para o registro dos movimentos oculares, o que induziria a observação da falsa torção. Outro artefato seria ocasionado por controle inadequado da posição do olho durante a inclinação da cabeça permitindo que este assuma posição oblíqua que é acompanhada fisiologicamente de torção. Desta forma não se estaria registrando torção reflexa e sim torção secundária ao posicionamento inadequado dos olhos(8,11).
Observou-se que a torção reflexa não ocorre linearmente(10). Há, de início, uma rotação compensatória grande mas que vai cedendo através de pequenos movimentos torcionais sacádicos no sentido da inclinação, reduzindo a magnitude da torção reflexa resultante. Esta torção seria nula segundo alguns trabalhos(8,11). Argumenta-se, no entanto que este resultado poderia decorrer do fato do aparato de observação se deslocar com o olho, não havendo a percepção visual da rotação, o que reduziria o estímulo indutor do reflexo(6).
Para evitar o inconveniente da torção induzida pela ducção ocular, a queixeira do equipamento empregado nesta pesquisa permite deslocamento horizontal de 30 cm o que possibilita que o olho observado esteja sempre em frente à zona óptica do ceratômetro sem que este precise ser rodado. Desta forma o paciente estará sempre olhando em frente e não terá de procurar o ceratômetro, movimentando os olhos.
Do ponto de vista da execução do exame convém destacar que a precisão da inclinação lateral da cabeça é fundamental. Para tanto a queixeira permite a fixação automática da inclinação lateral de 30 graus para a direita e para a esquerda. O correto posicionamento da cabeça em relação à queixeira é reforçado com o emprego dos pinos ajustáveis que impedem o deslocamento lateral da cabeça.
Os valores de extorção não apresentaram diferenças significativas entre o olho direito e o olho esquerdo (7,84 ± 4,79 para OE e 7,78 ± 4,09 para OD) o mesmo ocorreu com a intorção (5,22 ± 3,91 para OE e 5,31 ± 4,23 para OD). Os valores médios obtidos são semelhantes aos registrados por Kushner e Kraft(6), que observaram extorção e intorção média de 7 graus sem diferenças significativas entre os dois olhos. Apesar do resultado, em média, ser semelhante aos aferidos por outros autores, o desvio padrão foi alto o que dificulta as análises comparativas. Esta variabilidade poderia estar relacionada ao tamanho da amostra e àqueles pacientes que possuem astigmatismo pequeno o que reduziria a sensibilidade das medidas. Cabe ressaltar que o paciente 6 apresentou astigmatismo refracional mas não corneano o que justifica a ausência de torção no exame. Neste sentido talvez seja preferível o estudo das torções oculares com o emprego do ceratômetro naqueles casos que apresentem graus médios ou altos de astigmatismo corneano regular.
CONCLUSÃO
O ceratômetro de Helmholtz permite a observação e a quantificação de torções oculares em indivíduos astigmatas através de metodologia inédita com modificações simples do equipamento.
REFERÊNCIAS
1. Hewitt RS. Torsional eye movements. Arch. Ophthalmol 1951;34:253-60.
2. Quereau JVD. Some aspects of torsion. Arch Ophthalmol 1954;51:783-4.
3. Quereau JVD. Rolling of the eye around its visual axis during normal ocular movements. Arch Ophthalmol 1955;53:807-10.
4. Ferman L, Collewijn H, Van Den Berg V. A direct test of listing's law - II. Human ocular torsion measured under dynamic conditions. Vision Res 1987; 27:939-51.
5. Allen MJ, Carter JH. The torsion component of near reflex. Am J Optom 1967;44:343-9.
6. Kushner BJ, Kraft S. Ocular torsional movements in normal humans. Am J Ophthalmol 1983;95:752-62.
7. Levine MH. Evolution of the Bielschovsky headtilt test. Arch Ophthalmol 1969;82:433.
8. Jampel RS. Ocular torsion and the function of vertical extraocular muscles. Am J Ophtalmol 1975;79:292-304.
9. Prieto-Diaz J, Souza Dias C. Fisiologia dos movimentos oculares. In: Prieto-Diaz J, Souza Dias C. Estrabismo 3 ed. Barcelona: Roca; 1996. P. 134-8
10. Curthoys IS, Moore ST, McCoy SG, Halmagyi GM, Markham CH, et al. VTM. a new method of measuring ocular torsion using image processing techniques. Ann N Y Acad Sci 1992;656:826-8.
11. Jampel RS. Ocular torsion and the primary retinal meridians. Am J Ophthalmol 1981;91:14-24.
Hospital Nossa Senhora da Penha - de 1997 a 1998.
1 Aluno da pós-graduação do departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia da da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, assistente voluntário do departamento de Oftalmologia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.
2 Professor associado, chefe do departamento de Neuro-oftalmologia do Departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
3 Médico com mestrado pela Universidade Federal de São Paulo (Escola Paulista de Medicina), Assistente do Departamento de Oftalmologia da Santa Casa de São Paulo.
4 Médico Assistente Voluntário na Faculdade de Medicina da Universidade de Santo Amaro.
Endereço para correspondência: R. Joaquim Antunes, 135/701 - São Paulo (SP) CEP 05415-010. E-mail: [email protected]
* Hunter (1786) apud Kushner BJ, Kraft S. Ocular torsional movements in normal humans. Am J Ophthalmol 1983;95:752-62.
** Javal (1866) apud Kushner BJ, Kraft S. Ocular torsional movements in normal humans. Am J Ophthalmol 1983;95:752-62.