Daniel Felipe Alves Cecchetti1; Sheila Andrade de Paula Cecchetti2; Ana Carolina Tremeschini Nardy; Samuel Correa Carvalho; Maria de Lourdes Veronese Rodrigues3; Eduardo Melani Rocha4
DOI: 10.1590/S0004-27492008000500005
RESUMO
OBJETIVOS: Avaliar aspectos epidemiológicos dos traumas oculares num pronto-socorro de referência. MÉTODOS: O estudo teve dois grupos distintos de indivíduos: no primeiro (A) composto por vítimas de trauma ocular, em que 1.483 pacientes atendidos consecutivamente ao longo de 2003 tiveram os dados epidemiológicos analisados, e o segundo (B), em que 133 pacientes tiveram aspectos clínicos e fatores de risco e de proteção analisados consecutivamente por meio de questionário padrão, de 17 de maio a 28 de junho de 2004. RESULTADOS: No levantamento A, a maioria dos pacientes era do sexo masculino (1.314 ou 89%). Os traumas por corpos estranhos (CE) da superfície ocular foram os mais comuns, respondendo por 863 (58%) casos. O levantamento B mostrou que a proteção ocular foi usada em apenas 17% (22) dos pacientes. Os acidentes geralmente ocorreram no local de trabalho 70% (93), e o domicílio foi o segundo local de maior freqüência (22%). Ainda no levantamento B, 34% dos entrevistados tinham acidentes oculares prévios. CONCLUSÕES: O perfil dos pacientes vítimas de trauma ocular no presente estudo observou a maior ocorrência entre homens e de acidentes por corpos estranhos. O uso de proteção ocular ainda é incipiente e, por outro lado, a recorrência de trauma é considerável. Uma estratégia contínua junto à população, de forma preventiva e educativa com especial atenção ao ambiente de trabalho e doméstico, é necessária para reduzir a ocorrência de trauma ocular.
Descritores: Emergências; Corpos estranhos no olho; Traumatismos oculares; Serviços médicos de emergência; Serviço hospitalar de emergência; Acidentes de trabalho; Oftalmopatias
ABSTRACT
PURPOSE: To evaluate epidemiological aspects of eye injuries in a reference emergency center. METHODS: The study had two surveys: in the first (A) victims of ocular trauma where 1,483 patients admitted along 2003 had their epidemiological data analyzed and the second (B), where 133 patients had clinical aspects and risk and protective factors analyzed by a standard questionnaire between May and June 2004. RESULTS: In survey A, most patients were males (1,314 or 89%). Ocular surface foreign body was the most frequent occurrence with 863 (58%) cases. In survey B it was shown that ocular protection was used only by 17% (22) patients. The accidents occurred more frequently at the workplace 70% (93), followed by the home (22%). In survey B, 34% of the patients had previous accidents. CONCLUSIONS: The profile of patients victims of ocular trauma shows that there is a higher frequency of males and accidents involving cornea foreign body. The use of protective glasses is incipient and recurrence of this lesion is considerable. A preventive and educational strategy among the population with special focus on workplaces and homes is necessary to reduce ocular trauma occurrence.
Keywords: Emergencies; Eye foreign bodies; Eye injuries; Emergency medical services; Emergency service, hospital; Accidents, occupational; Eye diseases
INTRODUÇÃO
O trauma ocular tem impacto na saúde, bem-estar do paciente e na organização socioeconômica do sistema de saúde e da sociedade. Ainda que de gravidade variável, e prevenível com equipamento adequado para cada atividade, a Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que, a cada ano, cerca de 55 milhões de traumatismos oculares são responsáveis pela perda de dias de trabalho(1-2).
Dois estudos epidemiológicos foram realizados na Unidade de Emergência do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (UE do HCFMRP-USP), na década passada, avaliando a prevalência de trauma ocular(3-4). Tais estudos evidenciaram uma alta prevalência de trauma ocular relacionado ao trabalho na população de adultos jovens, principalmente em homens. Foi observado ainda variabilidade de tempo entre o trauma e o atendimento médico, dependendo do tipo de acidente. O conhecimento da epidemiologia e da tendência dos traumas oculares ao longo dos anos permite propor e rever estratégias de prevenção.
O objetivo do presente estudo foi avaliar o perfil epidemiológico dos traumas oculares atendidos na UE do HCFMRP-USP, a única unidade de emergência de oftalmologia do Sistema Único de Saúde (SUS) da Divisão Regional de Saúde - 13 (DRS 13) que abrange uma região de 1 milhão de habitantes.
MÉTODOS
Foram realizados dois estudos (Estudo A e B) transversais, descritivos, na procura de dados epidemiológicos dos atendimentos do Serviço de Oftalmologia da UE do HCFMRP-USP onde, todas as ocorrências são registradas pelos médicos plantonistas, em um caderno próprio, específico para levantamentos estatísticos.
No Estudo A foram coletados, retrospectivamente, dados (sexo, idade e tipo de trauma) de todos os atendimentos consecutivos realizados entre fevereiro de 2003 a janeiro de 2004. Os dados a respeito do tipo de lesão causada pelo trauma foram recuperados e agrupados da seguinte forma: químico, ionizante (ceratite actinica), mecânico (corpo estranho, contuso, laceração de pálpebra, perfurante, presença de corpo estranho). O trauma combinado se refere a traumas mecânicos onde a lesão envolveu mais de uma estrutura.
A partir dessas informações, foi criado um questionário padrão que foi aplicado em atendimentos num período de seis semanas (17 de maio a 28 de junho de 2004) pelos médicos plantonistas, com informações mais detalhadas das circunstâncias do trauma (Estudo B).
Nesse segundo levantamento os dados coletados foram: idade (para fins de análise, foi distribuído nos seguintes grupos etários: menor de 21 anos, 21 a 35 anos, 35 a 50 anos e maiores de 50 anos); sexo; número do registro da ocorrência no hospital; profissão atual (agricultor, eletricista, motorista, motociclista, serralheiro, comerciário, ou no caso de outra, especificar); se estava usando óculos de proteção; se estava usando cinto de segurança (em caso de acidente de automóvel); se foi acidente profissional; tipo de trauma (corpo estranho na superfície ocular, trauma contuso, ceratite actínica, acidente químico, laceração palpebral, trauma penetrante e traumas combinados); se houve tratamento prévio (em caso afirmativo, indicar se foi em farmácia, com clínico geral, oftalmologista ou outras possibilidades); local do acidente (trabalho, domicílio e via pública ou outra); ocorrência de acidentes anteriores ao atual. Para a coleta, acidentes que não envolviam veículos automotores, a questão sobre o cinto de segurança não foi considerada. O uso de equipamento de proteção ocular foi questionado em todas as outras situações, inclusive acidentes domésticos.
O objetivo do Estudo A foi conhecer melhor a freqüência e distribuição de casos de trauma ocular e do Estudo B avaliar aspectos clínicos e fatores de risco e proteção dos pacientes atendidos.
A estatística descritiva foi aplicada para apresentação dos dados em números absolutos e porcentagem do total do grupo.
RESULTADOS
Estudo A
Foram atendidos 2.989 pacientes entre fevereiro de 2003 e janeiro de 2004 no setor de oftalmologia da UE do HCFMRP-USP. Desses, 1.483 (50%) foram vítimas de trauma ocular.
A maioria dos traumas oculares ocorreu no sexo masculino (1.314; 89%). Corpo estranho na superfície ocular foi o principal tipo de trauma (863; 59%), seguidos por trauma contuso (317; 19%), ceratite actínica (139; 10%), acidente químico (102; 7%), laceração palpebral (24; 2%), trauma penetrante (18; 1%) e traumas combinados (20; 2%).
Estudo B
O questionário foi aplicado a 133 pacientes, vítimas de trauma ocular no período de 17 de maio a 28 de junho de 2004. Foi constatado que 120 pacientes (90%) eram do sexo masculino. A faixa etária entre 21 e 35 anos foi a mais acometida com 57 casos (43%). O ambiente de trabalho foi onde mais freqüentemente ocorreram os acidentes, com 93 casos (70%), seguido pelo domicílio com 29 casos (22%). Apenas 2 casos (2%) de acidente automobilístico foram registrados. As lesões mais comuns foram: corpo estranho da superfície ocular em 79 pacientes (59%) e trauma contuso em 25 (19%).
A profissão mais acometida foi a de operários do setor industrial com 11 casos (8%), seguidos de serralheiros autônomos (10 casos; 7%), agricultores (9 casos; 7%), desempregados (7 casos; 5%), motoristas (5 casos; 4%), eletricistas com (4 casos; 3%) e outras atividades não especificadas (87 casos; 65%).
Apenas 22 pacientes faziam uso de óculos de proteção, representando 17% do total de casos e 24% dos acidentes em ambiente de trabalho; nenhum dos casos ocorrido em ambiente doméstico ou outros estavam usando óculos de proteção. Dos 133 pacientes, 45 (34%) haviam sofrido acidentes anteriores.
DISCUSSÃO
O presente estudo confirma dados epidemiológicos existentes na literatura, como a predominância no sexo masculino e da terceira década de vida nos traumas oculares(5-6).
Aspectos regionais, bem como socioeconômicos e hábitos culturais podem influenciar fatores de risco e acesso a serviços de referência. Tais aspectos podem justificar a variabilidade em torno das várias características dos acidentes. Entre elas, tipos de acidentes mais freqüentes, local de ocorrência, modificações ao longo do tempo (por exemplo, relacionadas ao maior controle de infrações de trânsito)(7-9).
Os dados se confirmam por outros estudos em diferentes regiões, mas que indicam o local de trabalho seguido do ambiente doméstico como locais mais freqüêntes de acidentes e a elevada freqüência de acidentes com corpo estranho de córnea(8-9).
Uma avaliação da tendência de parâmetros epidemiológicos entre 1990 e 2004 foi feita confrontando com dois estudos anteriores(3-4). O primeiro, de 1990, fez um levantamento, entre fevereiro e abril de 1990, coletando dados da demanda de procura espontânea do plantão do serviço de urgência(3). O segundo fez um levantamento retrospectivo específico de traumas oculares ao longo de 146 dias, e o perfil epidemiológico e diagnóstico de 179 casos contabilizados foi descrito(4).
Comparando com dois estudos anteriores neste mesmo serviço, em 1990 e 1993, houve aumento da proporção de corpos estranhos (30,7% em 1990, 44% em 1993 e 59% no Estudo A atual).
A predominância do sexo masculino se manteve, com um crescimento da proporção de homens no decorrer dos anos (70,1% em 1992, 78,5% em 1993 e 89% no Estudo A atual).
Assim, observou-se que ao longo da década aumentou a proporção de corpo estranho na superfície ocular e de acidentes oculares no sexo masculino(3-4). Isso pode estar relacionado à regulamentação da segurança no trânsito nesse período e conseqüente diminuição de acidentes automobilísticos, apesar de não poder ser provado, pois não foram especificamente pesquisados nos estudos anteriores. Outro fator que pode ter influenciado a demanda de casos foi a implantação do sistema de regulação de vagas e hierarquização do atendimento por complexidade, atribuindo entre os estudos anteriores e o atual, a essa unidade, prioridade nos atendimentos de nível terciário. Comparações mais detalhadas não puderam ser feitas, pois os estudos anteriores foram baseados em dados de arquivo.
O aspecto profissional do risco envolvido em acidentes oculares não ficou bem claro, pela dificuldade de definir essa atividade profissional em mais de 65% dos pacientes. Além, da provável falha na construção do instrumento de coleta de dados, que indicava algumas poucas profissões e deixava espaço vago para uma ampla variabilidade. Por outro lado, razões socioeconômicas podem, na atualidade, tornar difícil que pessoas se identifiquem com uma determinada categoria profissional.
Tanto na Índia rural como nos Estados Unidos, a taxa de acidentes oculares é estimada entre 4 a 12 por 1.000 habitantes com predomínio em homens e mais freqüentemente relacionada ao trabalho, e considerando as grandes diferenças entre esses dois paises e os dados levantados aqui é possível admitir que o Brasil tenha taxas semelhantes(9-10). Na última década se observou um discreto declínio nas taxas de trauma ocular em todas as faixas etárias nos Estados Unidos, (exceto em indivíduos acima de 60 anos). Talvez atribuída a um aumento de atividades sedentárias nesses grupos (televisão, videogame, internet). Porém, a faixa etária de 20 a 39 anos mantém-se como a mais prevalente, assim como temos observado em nosso serviço. Além disso, desde a década de 70, leis relacionadas à segurança e saúde do trabalhador podem estar contribuindo para essa diminuição(10).
Em estudo recente, realizado em Dallas, entre dezembro de 2001 e abril de 2002, observou-se que lá, também a maioria dos traumas oculares ocorriam no sexo masculino (83%) e na idade economicamente ativa. Porém, diferentemente de nosso levantamento, em que 70% dos acidentes eram decorrentes de atividades no trabalho, na cidade norte-americana as agressões físicas eram a causa mais comum de trauma ocular (31%), seguidas então de acidentes de trabalho (27%). Essa diferença pode indicar uma fonte crescente de preocupação em saúde pública no nosso meio, talvez ainda subnotificada, mas também um maior controle dos eventos relacionados à saúde ocular do trabalhador, naquele país(11).
O estudo possui limitações que devem ser consideradas, entre elas, a coleta de dados a partir de centro de referência em oftalmologia que acaba por não receber pacientes com lesões mínimas tratadas em outras unidades de saúde e até por não-oftalmologistas. Por outro lado, pacientes com múltiplas lesões, que evoluíram para óbito, ou só tardiamente receberam cuidados oculares, também não entraram nesses registros. Nesses casos podem estar subestimados acidentes graves relacionados a automóveis e outras causas. Além disso, estudos retrospectivos como o Estudo A, podem conter falhas e vícios de registro de informação, que muitas vezes não podem ser detectados quando se buscam dados sem a preocupação ou possibilidade de fazer a averiguação da qualidade dos mesmos. Isso pode ser minimizado quando se usa banco de dados de dupla entrada ou se comparam informações de dois bancos de dados independentes, como já realizado anteriormente em estudo de trauma ocular(12).
A menor proporção de ocorrências de trauma no Estudo B (investigados por questionário estruturado) comparada à entrada de pacientes no Estudo A (levantados retrospectivamente) pode ser justificada pela falta de aderência de alguns pacientes e até mesmo de médicos plantonistas ao protocolo de Estudo B, que envolvia preenchimento do questionário estruturado. Observação similar foi feita em Pronto-Socorro de Olhos em Brasília, onde se observou, em uma revisão de prontuários no período de um mês, que 457 de 1.777 (16%) dos prontuários de atendimento não estavam preenchidos e 83, ou seja 3%, não constava endereço do paciente(13).
CONCLUSÃO
Considerando a taxa de recorrência de acidentes em 34% dos pacientes, a ausência de proteção em 83% e o perfil predominante (indivíduo masculino, jovem e acidentado durante o trabalho), podemos sugerir que investimentos em prevenção devam conter medidas educativas e de fiscalização para esse grupo populacional.
REFERÊNCIAS
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Endereço para correspondência:
Eduardo M. Rocha
Departamento de Oftalmologia
Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço
FMRP/USP
Av. Bandeirantes, 3.900
Ribeirão Preto (SP) CEP 14049-900
E-mail: [email protected]
Recebido para publicação em 18.07.2006
Última versão recebida em 18.04.2008
Aprovação em 28.05.2008
Trabalho realizado no Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - USP - Ribeirão Preto (SP) - Brasil.