Open Access Peer-Reviewed
Editorial

Novos conceitos em retinopatia diabética: dano neurológico versus dano vascular

New concepts on diabetic retinopathy: neural versus vascular damage

Pedro Durães Serrarbassa1; Alana Ferreira Gomes Dias3; Marcio Fragoso Vieira4

DOI: 10.1590/S0004-27492008000300030

RESUMO

A retinopatia diabética é a principal causa de cegueira legal irreversível em adultos na idade produtiva. Estima-se que o número de pessoas com risco de desenvolver perda de visão decorrente do diabetes dobre nos próximos 30 anos. Alguns estudos sugerem que alterações neurodegenerativas ocorram antes do comprometimento vascular. Essas alterações incluem aumento da apoptose neural, reatividade de células gliais, ativação microglial e metabolismo alterado do glutamato, e podem explicar algumas das deficiências funcionais que ocorrem logo após o início do diabetes, como alterações precoces no eletrorretinograma. O presente artigo de revisão visa apresentar evidências atuais que apontem a neurodegeneração como possível evento inicial da retinopatia diabética.

Descritores: Retinopatia diabética; Degeneração neural; Doenças vasculares; Apoptose; Visão

ABSTRACT

Diabetic retinopathy is the leading cause of irreversible legal blindness in working-age adults. The number of people worldwide at risk of developing vision loss from diabetes is predicted to double over the next 30 years. Some elements suggest that neurodegenerative changes occur beyond vascular damage. These changes include increased apoptosis, glial cell reactivity, microglial activation, and altered glutamate metabolism, and could explain some of the functional abnormalities that begin soon after the onset of diabetes, as early changes in electroretinogram. This review article will present some evidences that point out neurodegeneration as a possible initial event in diabetic retinopathy.

Keywords: Diabetic retinopathy; Nerve degeneration; Vascular diseases; Apoptosis; Vision


 

 

INTRODUÇÃO

A retinopatia diabética (RD) é uma complicação comum do diabetes e está presente, em algum nível nas pessoas com mais de 15 anos de evolução da doença(1). É considerada a principal causa de cegueira legal em adultos na idade produtiva(2). Estima-se que o número de pessoas com risco de desenvolver perda de visão decorrente do diabetes dobre nos próximos 30 anos(3).

Um dos sinais clínicos mais precocemente detectáveis na RD é o aumento da permeabilidade vascular, devido à quebra da barreira hemato-retiniana, que causa o edema macular(4). Seguem-se, mais tardiamente, microaneurismas, exsudatos e, finalmente, proliferação vascular(5). Desses achados clínicos, o edema macular é o mais correlacionado com o grau de perda visual(6).

Apesar da maioria das pesquisas estarem centradas nas mudanças vasculares(7), principalmente no fator de crescimento endotelial vascular (VEGF), está se tornando mais evidente que outras mudanças degenerativas ocorram além das células vasculares da retina. Estas mudanças incluem: aumento da apoptose, reatividade das células gliais, ativação microglial e alteração do metabolismo do glutamato. Quando ocorrem juntas, podem ser consideradas como neurodegenerativas e poderiam explicar algumas das deficiências funcionais na visão que ocorrem logo após o início do diabetes(2).

Progressos nessa área requerem uma nova perspectiva sobre a gênese da retinopatia diabética, que incluem os papéis da retina neural, da ação deficiente da insulina e da resposta inflamatória(8). Este artigo de revisão procura demonstrar, através de teorias baseadas na anatomia e fisiologia da retina, que as alterações metabólicas do diabetes levam a um dano neural que precede as alterações vasculares.

Fisiologia da retina

A visão normal depende de uma comunicação intacta entre as células neuronais, gliais, microgliais, vasculares e o epitélio pigmentado da retina. As funções fundamentais da retina são: captar fótons; converter a energia fotoquímica em energia elétrica; integrar os potenciais de ação resultantes e transmiti-los para o lobo occipital do cérebro, onde eles são decifrados e interpretados em imagens reconhecíveis. A retina é separada da circulação sistêmica pelas barreiras hemato-retiniana e hemato-aquosa e recebe seus suprimentos nutricionais das circulações retiniana e coroidal, e talvez do corpo ciliar por difusão através do vítreo(9).

A arquitetura celular lamelar da retina possui camadas alternantes de neurônios (camadas nucleares interna e externa e camadas de células ganglionares), interposta com duas camadas plexiformes, onde ocorre a comunicação neuronal a nível de sinapses entre dentritos e entre dentritos e axônios. A retina inclui cinco maiores tipos de células responsáveis pelas funções sensorial, regulatória, nutricional e imunomoduladora. Os neurônios (fotorreceptores, células bipolares, horizontais, amácrinas e ganglionares) desempenham funções sensoriais e definem a percepção de cor, resolução espacial e discriminação de contraste(10).

As células de Müller e astrócitos, dois tipos de células gliais, provêem suporte nutricional e regulatório para os neurônios. As células de Müller cruzam a retina desde o epitélio pigmentado até a membrana limitante interna. Juntamente com os astrócitos, convertem substratos, incluindo lactato e aminoácidos, da circulação para os neurônios, regulam as propriedades da barreira hemato-retiniana(11) além da função sináptica(12). As células de Müller também armazenam glicogênio para conversão em lactato, sintetizam ácido retinóico do retinol, regulam a concentração de íons extracelular para modular a polarização/despolarização da membrana plasmática, participam com os neurônios no ciclo glutamato-glutamina para controlar a neurotransmissão, e protegem os neurônios da excitotoxicidade do glutamato(13). As células gliais formam a interface entre os neurônios e a vascularização e são os reguladores chave da nutrição neuronal e do metabolismo(8).

A camada de células do epitélio pigmentado serve também como um condutor seletivo de substrato como a barreira hemato-retiniana externa e permite a difusão de oxigênio da coróide para a retina externa. Remove o ácido láctico da retina e fagocita o segmento externo dos fotorreceptores, constitui a barreira hemato-retiniana externa, absorve luz, secreta fatores tróficos como o fator derivado do epitélio pigmentar, e, em conjunto com os fotorreceptores, participam do ciclo da vitamina A(14).

As funções imunomoduladoras são desempenhadas pela quarta classe de células, a microglia. Elas são uma população heterogênea de macrófagos residentes que monitoram o ambiente local pela interação com neurônios, glia e endotélio das células e reagem ao estresse causado por infecção, trauma ou descolamento da retina, por liberação de citocinas pró-inflamatórias(15) e removem células apoptóticas ou necróticas através de fagocitose(16). As células gliais tornam-se ativadas e ajudam a resolver a injúria local(17-18).

A quinta classe de células inclui as células vasculares endoteliais e pericitos. Elas dão suporte nutricional e removem produtos indesejáveis enviados para dentro da retina e têm sido o foco de muitas pesquisas em RD. É provável que a sua função dependa de sinais ainda não definidos da retina neural. Vasos sanguíneos são as únicas estruturas visíveis ao exame clínico, pois eles carreiam eritrócitos contendo um pigmento visível (hemoglobina)(19). Apesar de sua aparência proeminente pelo exame clínico, a vascularização constitui menos de 5% da massa retiniana, logo a retina é um tecido predominantemente neural vascularizado(19).

Fisiopatologia do dano neural na retinopatia diabética

Para entender como a fisiologia retiniana pode predispor ao dano causado pelo diabetes, salientam-se três pontos principais: primeiro, os axônios da retina não possuem bainha de mielina, uma vez que a mielina é opaca e bloqueia a transmissão luminosa. Nervos não-melinizados necessitam de mais energia para manterem seus potenciais de membranas(20); segundo, a quantidade dos vasos sanguíneos que poderiam absorver luz é relativamente baixa, logo, os vasos da retina interna são relativamente hipóxicos (pO2 ~ 25 mm)(21); e terceiro, a retina interna possui menos mitocôndrias que as camadas mais externas(22). Apesar da sua escassa vascularização, a retina é um dos tecidos de maior demanda metabólica. Para obter a energia suficiente para o seu bom funcionamento em um meio tão inóspito, a retina interna utiliza-se basicamente da glicólise, um meio menos eficiente de gerar ATP do que a fosforilação oxidativa. Esta combinação de alta demanda metabólica e mínimo suprimento vascular pode limitar a habilidade da retina interna de se adaptar frente ao estresse metabólico do diabetes(8).

Alterações funcionais na retinopatia diabética

Enquanto a maioria dos estudos tem dado ênfase às mudanças na vascularização da retina na RD, surgem evidências de que a função retiniana é alterada logo após o início do diabetes. Mudanças funcionais podem ser identificadas antes do desenvolvimento da patologia vascular, sugerindo que elas são decorrentes de um efeito direto do diabetes na retina neural ao invés de serem secundárias a quebra da barreira hemato-retiniana(23).

Embora alterações microvasculares sejam inegavelmente integrantes da retinopatia, a retina é um tecido neural vascularizado, e não uma rede de vasos sanguíneos. Estudos histopatológicos demonstraram a perda de neurônios na RD há mais de 40 anos(24-25). Desde então, vários relatos usando eletrorretinografia (ERG), adaptação ao escuro, sensibilidade ao contraste e teste de visão de cores têm demonstrado que a função neurorretiniana é comprometida antes do início das lesões vasculares(26-30). Outro estudo mostrou que a perda dos potenciais oscilatórios no ERG prediz o início da retinopatia proliferativa (RP) melhor que lesões vasculares vistas nas fotografias da retina ou áreas de não-perfusão capilar observadas na angiografia fluoresceínica (AGF)(31). Estudo recente, usando teste de campo visual modificado (perimetria de ondas curtas e de dupla freqüência), revelou defeitos de campo nos pacientes diabéticos com pouca ou nenhuma retinopatia vascular(32). Autores citam ainda que e o campo visual prediz a gravidade da retinopatia diabética de forma mas fidedigna que a acuidade visual (AV)(33). Esses achados sugerem que testes funcionais seriam indicadores mais sensíveis da integridade retiniana que fotografias da retina ou tomografia de coerência óptica (OCT).

Inflamação na retinopatia diabética

A inflamação é um componente de muitas doenças, incluindo degenerações retinianas primárias, resistência a insulina e diabetes(34). A inflamação crônica é caracterizada por aumento da permeabilidade vascular, edema, infiltração celular, liberação de citocinas, destruição tissular, neovascularização e tentativa de reparo. A RD exibe a maioria destas alterações. A microglia está intimamente associada com neurônios que exprimem moléculas que regulam negativamente a ativação microglial através de seus respectivos receptores. Logo, uma alteração dessa regulação durante o estresse poderia ativar a microglia para produzir citocinas inflamatórias(35). A microglia ativada produz substâncias que induzem a adesão de moléculas, as quais podem promover o acúmulo de neutrófilos no endotélio induzindo o extravasamento de macrófagos(36).

Os processos fisiológicos de reparo que auxiliam as células retinianas a sobreviverem ao estresse incluem a liberação aumentada de diversos fatores de crescimento e citocinas, incluindo o fator de crescimento endotelial vascular (VEGF), IGF-1, interleucina-1 e fator de necrose tumoral (TNF). Estas proteínas, que têm sido implicadas no desenvolvimento da RD, também provêem funções neurotróficas para apoiar a sobrevivência das células da retina(37-39). O aumento da liberação de citocinas pode servir a uma função adaptativa para manter a função neuronal mas, ao mesmo tempo, torna-se mal adaptativa, com dano vascular progressivo, finalmente resultando em edema macular e neovascularização. Deste modo, este ciclo vicioso perpetua tanto o dano vascular como o neural e culmina nas características clínicas da RD(8).

Apoptose na retinopatia diabética

Mesmo antes do surgimento do conceito de apoptose, estudos já demonstravam corpos picnóticos em cortes histológicos da retina de pessoas com diabetes(24-25). Diversos ensaios sugerem que o diabetes causa uma perda crônica de neurônios da retina interna pelo aumento da freqüência de apoptose(40-42). A evidência histológica de apoptose é também embasada por um pequeno número de estudos bioquímicos, os quais demonstram que a expressão de Bax (BCL-2 associate X protein) proteína pró-apoptotica que está associada às doenças degenerativas em geral e caspases (enzimas envolvidas na apoptose) estão aumentadas em retinas de ratos diabéticos(43-44). Portanto, o aumento na apoptose dentro da retina interna é um componente da RD.

A insulina estimula funções anabólicas e previne a quebra de tecidos em músculos esqueléticos. Logo, a perda da ação da insulina em pacientes diabéticos causa perda muscular. Novas evidências sugerem que o receptor de insulina também é responsável por funções tróficas no cérebro(45). Na retina, a insulina estimula receptores específicos(46). Estudos demonstram que estes receptores estão diminuídos em ratos diabéticos, e a deleção desses receptores leva à degeneração dos neurônios da retina interna e fotorreceptores(47). Logo, conclui-se que o decréscimo do estímulo anabólico pela insulina pode contribuir para a morte das células da retina(8). Os neurônios retinianos(48) e células vasculares(49) dependem da atividade do receptor de insulina para sobreviverem, e ambos os tipos de células morrem por apoptose em humanos e animais modelo de diabéticos. Pode-se predizer que, a longo prazo, os distúrbios na ação da insulina no tecido retiniano podem acelerar a morte celular e prejudicar atividades anabólicas insulino-dependentes como a síntese protéica(50).

Dados do "Diabetes Control And Complications Trial" (DCCT)(51), assim como estudo recente(52), demonstraram que a administração de insulina reduz o risco de retinopatia e que a quantidade de apoptose é menor com o uso intensivo da insulina.

Excitotoxicidade do glutamato na neurodegeneração retiniana

Um mecanismo plausível de dano celular neural é a deficiência na conversão de glutamato para glutamina pelas células de Müller, uma vez que o glutamato é uma potente neurotoxina(7). Dados sugerem que o diabetes compromete o metabolismo do glutamato alterando pelo menos duas enzimas diferentes. Essas mudanças podem ser precedidas por uma redução na atividade dos transportadores de glutamato nas células de Müller, o que poderia levar à concentração de glutamato no fluido extracelular(53). Esses dois mecanismos provavelmente agem conjuntamente, reduzindo a eficiência da eliminação de glutamato pelas células gliais na retina. Baseado nessas informações, pode-se supor que a causa da apoptose neuronal na retina durante o diabetes possa ser a excitotoxicidade crônica do glutamato(2).

Função visual e neurodegeneração

A diminuição da visão em pacientes com diabetes é mais freqüentemente associada ao edema macular. Os mecanismos celulares específicos através do qual o edema macular reduz a acuidade visual ainda não estão totalmente definidos. De uma maneira geral, os cistos maculares dispersam a luz dentro da retina impedindo a focalização nos fotorreceptores diminuindo a qualidade da imagem. Do ponto de vista celular, a função visual pode diminuir se o acúmulo de fluido dentro da retina: alterar as concentrações iônicas extracelulares necessárias para ativar os potenciais elétricos; comprimir os neurônios da retina; comprometer a conversão de glutamato em glutamina entre as células gliais e os neurônios necessários para a neurotransmissão; aumentar a suscetibilidade dos neurônios a aminoácidos citotóxicos, anticorpos ou células inflamatórias que alcançam a retina através do extravasamento dos vasos. O extravasamento vascular poderia também prejudicar a função neuronal e a visão na ausência de edema macular clinicamente detectável. Capilares ocluídos próximo à fóvea também podem causar dano isquêmico aos neurônios da retina(8).

O dano direto do diabetes às células gliais ou ao metabolismo neuronal poderia ter um impacto na neurotransmissão(29,54), podendo levar à apoptose dos neurônios da retina e defeitos de campo visual. Os axônios da retina são perdidos antes da visualização de lesões vasculares(55-56). Relatos recentes também demonstram que a resposta local prejudicada no ERG multifocal prediz o desenvolvimento subseqüente das lesões vasculares(57). Futuros trabalhos são necessários para se determinar como as alterações das interações de células neuronais, microgliais e vasculares reduzem a qualidade da visão(8).

 

CONCLUSÃO

A retinopatia diabética é diagnosticada clinicamente com o início dos sinais oftalmoscópios de lesões vasculares, mas os estudos citados sugerem que os defeitos funcionais podem preceder essas lesões. Indivíduos que não desenvolveram sinais clínicos de retinopatia representam a maior oportunidade terapêutica para preservar a visão, pois eles constituem a grande maioria dos pacientes(58). Portanto, o desenvolvimento de técnicas sensíveis capazes de medir a função retiniana e o advento de novos estudos do dano neuronal seriam de grande utilidade no diagnóstico precoce e tratamento da retinopatia diabética.

 

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Endereço para Correspondência:
Pedro Durães Serracarbassa
Avenida Brigadeiro Faria Lima, 1.903 Cj. 43
São Paulo (SP) CEP 01452-001
E-mail: [email protected]

Recebido para publicação em 22.05.2007
Última versão recebida em 02.12.2007
Aprovação em 07.12.2007

 

 

Trabalho realizado no Setor de Retina e Vítreo do Departamento de Oftalmologia do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo (SP).


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