Vanessa Miroski Gerente1; Gustavo Barreto de Melo2; Caio Vinícius Saito Regatieri2; Lênio Souza Alvarenga3; Elizabeth Nogueira Martins4
DOI: 10.1590/S0004-27492008000200004
RESUMO
OBJETIVO: Avaliar a epidemiologia do trauma ocular por corpo estranho superficial de córnea. MÉTODOS: Os pacientes atendidos no Pronto-Socorro da Universidade Federal de São Paulo entre abril e junho de 2005 que apresentaram corpo estranho superficial de córnea foram entrevistados. Foram avaliados: sexo, idade, profissão, registro legal do emprego, uso, disponibilidade e tipo de equipamentos de proteção utilizados e a fiscalização do seu uso. O conhecimento das complicações deste tipo de acidente também foi avaliado. Os resultados foram analisados com teste do qui quadrado ou teste de Fisher. RESULTADOS: Foram entrevistados 123 pacientes. Apenas 3 eram do sexo feminino e a idade média foi de 36 anos. A maioria destes traumas ocorreu no ambiente de trabalho (86,2%) e 58,4% não possuíam registro legal do emprego. As profissões mais freqüentemente envolvidas foram serralheiro, pedreiro e metalúrgico. Em 79,8% dos locais de trabalho havia equipamentos de proteção e 85,3% dos pacientes eram orientados a usá-los. Em 52,4% dos locais sua utilização era fiscalizada, mas apenas 34,2% usavam no momento do trauma. A utilização foi mais freqüente (p=0,008) e fiscalização mais presente (p=0,0415) entre pacientes com registro legal de emprego. Questionados sobre os riscos, 68,9% dos pacientes tinham consciência das complicações graves deste tipo de acidente. CONCLUSÃO: A maioria dos pacientes tem conhecimento sobre a gravidade do trauma ocular e este tipo de lesão ocorre mesmo em locais com equipamentos de proteção disponíveis, alguns deles até durante o seu uso. Os dados sugerem que enfoque maior da prevenção deve ser na fiscalização e utilização de equipamentos adequados.
Descritores: Corpos estranhos no olho; Acidentes de trabalho; Serviço hospitalar de emergência
ABSTRACT
PURPOSE: To evaluate the epidemiology of superficial corneal foreign body. METHODS: Patients who were seen at the Emergency Service of the Federal University of São Paulo, from April/05 to June/05, were screened and those with superficial corneal foreign body were interviewed. Data regarding gender, age, occupation, employment status, availability and use of protective devices and supervision of their use were collected. Awareness of the possible complications was also assessed. Results were analyzed using chi-square or Fisher exact test. RESULTS: One hundred twenty-three patients were interviewed. Only 3 patients were female. The mean age was 36 years. Most injuries occurred at the workplace (86.2%), and 58.4% of the patients did not have a legal employment registration. The occupational activities most frequently reported were construction related activities (44.3%) and welding/soldering (11.3%). In most workplaces (79.8%) protective devices were available and 85.3% of the patients were instructed to use them. A safety device was being used during the accident in 34.2% of the cases and this was more frequent among patients that had legal employment registry (p=0.008) and among those under supervision (p=0.0415). The majority of the patients (68.9%) were aware of the risk of severe complications. CONCLUSIONS: Most patients with superficial corneal foreign body are aware of its severe complications and injuries usually occur in places where safety devices are available and often during their use. Our findings suggest that prevention should focus on supervision and correct use of safety devices.
Keywords: Eye foreign bodies; Accidents, occupational; Emergency service, hospital
INTRODUÇÃO
O trauma ocular é uma causa importante de comprometimento visual principalmente em indivíduos jovens(1), e grande parte deles está relacionada a acidentes de trabalho(2). No Brasil, dos 390.180 acidentes de trabalho registrados no ano de 2003, 1.997 corresponderam a traumatismos dos olhos ou órbita, correspondendo ao CID S05(3). Estas estatísticas oficiais provavelmente representam uma subestimação dos acidentes, já que são estatísticas do Ministério da Previdência e Assistência Social, que incluem somente trabalhadores empregados sob o regime da Consolidação das Leis do Trabalho e trabalhadores rurais, e os traumas oculares registrados usualmente correspondem àqueles de maior gravidade, como os traumas abertos. As lesões por corpo estranho superficial de córnea dificilmente são registradas e, assim, não são incluídas na estatística oficial.
O corpo estranho superficial de córnea é o tipo de trauma ocular mais comum em nosso meio, sendo uma causa de atendimento muito freqüente nos pronto-socorros(4-6). É responsável por 54,6% a 81,8% do total de traumas oculares(5). Consiste em um trauma ocular fechado, em que um corpo estranho fica alojado na superfície ocular, sem causar perfuração. Apesar de geralmente ter boa evolução, com cicatrização em poucos dias após ser retirado, pode resultar em situações de maior gravidade, como a ceratite infecciosa e suas complicações. Além da morbidade ocular, leva ao afastamento do trabalhador e ao conseqüente prejuízo econômico-social.
Apesar de existirem várias publicações sobre trauma ocular que abordam este tipo de lesão(1-8), os aspectos epidemiológicos envolvidos na sua ocorrência não são descritos, o que dificulta a elaboração de medidas efetivas para preveni-lo.
O objetivo deste estudo foi avaliar o perfil do paciente que procurou o Pronto-Socorro com corpo estranho superficial de córnea, sua procedência, profissão, vínculo empregatício, uso de equipamentos de proteção e sua fiscalização no local de trabalho.
MÉTODOS
Foram incluídos no estudo os pacientes com corpo estranho superficial de córnea atendidos no Pronto-Socorro do Hospital São Paulo (EPM/Unifesp) entre 1/abril e 30/junho de 2005.
Os pacientes que aceitaram participar do estudo foram entrevistados após o atendimento, através de um questionário pré-estabelecido.
Foram avaliados: sexo, idade, profissão, registro legal do emprego (carteira assinada), uso de equipamentos de proteção, tipo de proteção utilizada (óculos ou máscara), disponibilidade de material para proteção ocular no ambiente de trabalho e fiscalização do uso deste. Adicionalmente, perguntamos ao paciente qual a pior complicação ocular que poderia acontecer após este tipo de acidente. Os pacientes foram esclarecidos sobre a entrevista e estavam livres para responder ou não às perguntas. As questões não respondidas espontaneamente pelos pacientes não foram incluídas nas análises estatísticas.
A análise estatística foi realizada com o programa SPSS. Foi aplicado o teste qui quadrado e considerados como resultados estatisticamente significantes as análises com p<0,05.
RESULTADOS
Foram avaliados 123 pacientes com corpo estranho superficial de córnea. A idade variou de 17 a 69 anos, com média de 36 ± 10 anos, e apenas 3 pacientes eram do sexo feminino. A maioria destes traumas ocorreu no ambiente de trabalho (106 pacientes ou 86,2%) e, destes, 54% não possuíam registro legal do emprego. (Figura 1).
Dos traumas que resultaram de acidente de trabalho, todos ocorreram em pacientes do sexo masculino e a idade média foi de 35,8 anos. Dentre as atividades profissionais que estes pacientes exerciam, as mais freqüentes foram serralheiro (24,5%), pedreiro (19,8%) e metalúrgico (11,3%). (Tabela 1)
Os pacientes também foram questionados se já haviam sofrido trauma ocular semelhante e 51% deles responderam sim. Quanto ao uso de equipamentos de proteção, foi observado que em 79,8% dos locais de trabalho havia equipamentos de proteção disponíveis e 85,3% dos pacientes eram orientados a usá-los. Em 52,4% dos locais sua utilização era fiscalizada, mas apenas 34,2% usavam no momento do trauma.
Em relação ao registro legal de emprego, observou-se utilização mais freqüente dos equipamentos de proteção (P=0,008) e fiscalização mais presente (P=0,415) naqueles pacientes com registro legal de emprego (carteira assinada). Outras comparações entre os pacientes com e sem registro legal não se mostraram significantes. (Tabela 2)
Dos pacientes que usavam algum tipo de equipamento de proteção, 75,6% usavam óculos, 9,8% usavam máscara e 14,6% usavam ambos.
Quando questionados sobre os riscos deste tipo de trauma ocular, 68,9% afirmaram correr o risco de cegueira, perfuração ocular ou infecção, 20,7% não souberam responder e 10,4% dos pacientes referiram que este tipo de trauma não pode levar a conseqüências graves. (Tabela 3)
DISCUSSÃO
Dentre os pacientes estudados, houve um predomínio do sexo masculino e faixa etária entre 30 e 40 anos, perfil já observado em estudos anteriores(4-6).
Em 86,2% dos casos o trauma resultou de um acidente de trabalho, definido como aquele que se verifica no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença que resulte na redução da capacidade de trabalho ou de ganho ou morte. Como em séries anteriores(5-6), a maioria dos pacientes trabalhava em construção civil e metalurgia, mostrando serem estes os grupos que devem receber maior enfoque em campanhas educativas de prevenção.
Foi observado que a maioria dos locais de trabalho possuía óculos e máscaras de proteção disponíveis e que os trabalhadores eram orientados a utilizá-los. A maior parte dos pacientes (68,9%) tinha conhecimento de que o trauma poderia levar a conseqüências mais graves, como a cegueira. Apesar da disponibilidade de equipamentos e dos trabalhadores saberem da necessidade de sua utilização, apenas 34,2% dos pacientes referiram estar usando proteção no momento do trauma. Apesar das limitações do desenho do estudo, onde não podemos comprovar a veracidade das informações fornecidas pelo paciente, estes dados sugerem que as campanhas educativas não devem se limitar apenas a divulgar a necessidade do uso de proteção e os riscos do acidente.
Equipamentos de proteção adequados deveriam evitar a maioria dos traumas oculares diretos. Os acidentes que ocorreram mesmo com o uso de proteção podem estar associados a equipamentos de proteção inadequados para determinada função ou a uso incorreto. Não podemos descartar uma informação errada do paciente durante a entrevista pelo receio de que a informação pudesse comprometer o seu emprego.
Dentre os acidentes de trabalho, 39% dos pacientes tinham carteira assinada e a maior proporção destes referiu o uso de equipamentos de proteção, em relação àqueles que não tinham carteira assinada (P=0,008). O relato da presença da fiscalização no local de trabalho também foi significantemente mais freqüente entre os trabalhadores que referiram possuir carteira assinada (P=0,0415).
Apesar de não podermos confirmar com os nossos dados, a fiscalização no local de trabalho parece ser um fator importante para a utilização do equipamento de proteção. Outro fator que poderia contribuir para o seu uso é a conscientização do paciente sobre as possíveis conseqüências deste tipo de trauma. Porém, foi observado que dentre os pacientes que não usavam equipamentos de proteção no momento do trauma, a maioria (73,13%) referiu que este poderia levar a complicações graves. Portanto, o conhecimento sobre os possíveis riscos do trauma por corpo estranho de córnea não necessariamente levou o paciente a utilizar os equipamentos de proteção.
CONCLUSÕES
A disponibilidade de equipamentos de proteção adequados e a fiscalização do seu uso aparentam ser fatores relevantes na prevenção do trauma ocular com corpo estranho superficial. A educação do trabalhador e o treinamento sobre normas de segurança do trabalho são aspectos também importantes, já que a prevenção deve ser abordada sob diferentes enfoques e com medidas que possam atingir a maior parte dos indivíduos. Seria interessante que as empresas dessem maior ênfase a todos estes aspectos, já que o trauma ocular, mesmo na ausência de complicações, leva à incapacidade temporária para o trabalho e o custo da assistência médica e dos dias de afastamento é usualmente mais alto que o custo da prevenção.
REFERÊNCIAS
1. Desai P, McEwen C J, Baines P, Minassian DC. Incidence of cases of ocular trauma admitted to hospital and incidence of blinding outcome. Br J Ophthalmol. 1996;80(7):592-96. Comment in: Br J Ophthalmol. 1996;80(7):585.
2. Slade MP. Ocular trauma. Aust N Z J Surg. 1999;69(8):582-3.
3. Brasil. Ministério da Previdência Social. Anuário estatístico de acidentes do trabalho 2002. Quantidade de acidentes do trabalho registrados, por motivo, segundo os 200 códigos da Classificação Internacional de Doenças - CID 10 mais incidentes no Brasil - 2003 [texto na Internet]. Brasília: DATAPREV; 2003. [citado 2007 Abr 21]. Disponível em: http://www.mpas.gov.br/pg_secundarias/previdencia_social_13_04-A4-1.asp
4. Araújo AA, Almeida DV, Araújo VM, Goes MR. Urgência oftalmológica: corpo estranho ocular ainda como principal causa. Arq Bras Oftalmol. 2002; 65(2):223-7.
5. Leal FA, Silva e Filho AP, Neiva DM, Learth JC, Silveira DB. Trauma ocular ocupacional por corpo estranho superficial. Arq Bras Oftalmol. 2003;66(1):57-60.
6. Spada FR, Rodrigues EB, Gruman Jr A, Cunha ET. Corpo estranho de córnea: relação com a atividade profissional. Rev Bras Oftalmol. 2000: 59(1):36-9.
7. Macsai MS. The management of corneal trauma: advances in the past twenty-five years. Cornea. 2000;19(5):617-24.
8. Yu TS, Liu H, Hui K. A case-control study of eye injuries in the workplace in Hong-Kong. Ophthalmology. 2004;111(1):70-4.
Endereço para correspondência:
Vanessa Miroski Gerente
Rua Botucatu, 820
São Paulo (SP) CEP 04023-062
E-mail: [email protected]
Recebido para publicação em 24.06.2006
Última versão recebida em 21.11.2007
Aprovação em 26.11.2007
Trabalho realizado no Departamento de Oftalmologia da Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP - Setor de Emergências e Trauma Ocular.