Thelma Larocca Skare1; Thiago Quinaglia Silva3; Paulo Cesar Pastro4
DOI: 10.1590/S0004-27492007000500018
RESUMO
OBJETIVOS: Estudar a prevalência de uveítes na população local de espondiloartropatias e sua relação temporal com achados articulares. MÉTODOS: Foram revisados prontuários de 77 pacientes com espondiloartropatias atendidos no ambulatório de reumatologia do Hospital Universitário Evangélico de Curitiba, para diagnóstico do tipo de espondiloartropatia, sexo, idade, presença e tipo de uveite, tempo decorrido entre as primeiras manifestações oculares e as articulares. RESULTADOS: Uveíte foi encontrada em 12 dos 77 pacientes (15,6%), sendo anterior em 83,3% dos casos. O aparecimento da uveíte foi semelhante em todas as formas de espondiloartropatia (p=0,27) e não sofreu influência do sexo do paciente (p=0,74). O tempo médio de aparecimento dos sintomas oculares em relação ao diagnóstico articular foi de 4,04 meses para artrite reativa e 73 meses para espondilite anquilosante (p=0,009). CONCLUSÕES: A uveíte encontrada em pacientes com espondiloartropatia é, na sua grande maioria, anterior. O aparecimento da uveíte em relação aos sintomas articulares é mais precoce em casos de artrite reativa do que em espondilite anquilosante.
Descritores: Uveíte; Manifestações oculares; Espondiloartropatias; Espondilite anquilosante; Artrite reativa
ABSTRACT
PURPOSE: To study uveitis prevalence in the local population with spondyloarthritis and its temporal relationship with joint complaints. METHODS: We reviewed seventy-seven charts of spondyloarthropathy patients from the rheumatology clinic of the "Hospital Universitário Evangélico de Curitiba" for spondyloarthritis class, patients' sex and age, occurrence of uveitis and its location and relationship between the first episode of uveitis and initial joint complaints. RESULTS: Uveitis was found in 12 of 77 patients (15.6%) which was anterior in 83.3% of the cases, without preference for spondyloarthropathy class (p=0.72) and patients' sex (p=0.74). In patients with reactive arthritis, the mean time between uveitis appearance and joint complaints was 4.04 months and in ankylosing spondylitis 73 months (p=0.009). CONCLUSION: Spondyloarthropathy patients have uveitis that is anterior in most of the cases and that appears earlier in reactive arthritis than in ankylosing spondylitis.
Keywords: Uveitis; Eye manifestations; Spondylarthropathies; Spondylitis, ankylosing; Arthritis, reactive
INTRODUÇÃO
As espondiloartropatias soronegativas (ES) formam um conjunto de doenças reumáticas com características clínicas e laboratoriais comuns. Fazem parte deste grupo: espondilite anquilosante, artrite reativa (ou síndrome de Reiter), artrite psoriática e espondiloartropatias das doenças inflamatórias intestinais (como doença de Crohn e retocolite ulcerativa)(1). Dentre as características comuns a este grupo, estão as manifestações oculares que podem aparecer como uveítes e conjuntivites(1).
Doenças reumáticas como a artrite reumatóide juvenil, síndrome de Behçet e as ES causam tipicamente uveítes anteriores e respondem por cerca da metade dos casos de uveítes não infecciosas(2). No caso das ES, elas costumam ser unilaterais, não-granulomatosas, agudas e recorrentes(3). Todavia, em ES associadas à artrite psoriática, as uveítes podem ser posteriores, mais prolongadas e bilaterais(4).
As uveítes das ES são eventos imunológicos promovidos por ação das células T do tipo Th-1(5). O elemento inicial que desencadeia o processo é desconhecido embora vários antígenos microbianos e genéticos tenham sido estudados neste contexto. O que está bem estabelecido, é a presença do antígeno de histocompatibilidade classe 1, HLA-B27, o qual está associada ao seu aparecimento tanto em populações em que este antígeno de histocompatibilidade é comum(6), como naqueles em que ele é raro(7). Além disto, diferentes subtipos do HLA-B27 apresentam diferentes graus de associação com ocorrência de uveíte(8). Um estudo finlandês mostrou a presença de HLA-B27 em até 71% dos pacientes com uveíte anterior aguda(6). Em estudos realizados em pacientes da Nova Zelândia, foi encontrado esta prevalência em 26% dos pacientes com uveíte anterior aguda(9). Já no Brasil, um estudo feito em Minas Gerais e englobando 100 pacientes, mostrou uma prevalência de 26% de HL-B27 positivo em casos de uveíte anterior aguda, dos quais 38% tinham ES na forma indiferenciada(10).
Por outro lado, a prevalência de uveíte nas diferentes formas de ES varia de acordo com a amostra estudada, o que tem sido atribuído à carga genética da população e, eventualmente, de agentes microbianos, que podem funcionar como gatilho do processo(6,9).
Nesta pesquisa procurou-se verificar a prevalência de uveítes nas diferentes formas de ES em pacientes da cidade de Curitiba, assim como a sua relação temporal com início da doença articular.
MÉTODOS
O presente estudo foi autorizado pelo comitê de ética em pesquisa da Faculdade Evangélica de Medicina do Paraná protocolado sob número 1.519/2006.
Foram revisados os prontuários de 77 pacientes com ES atendidos no ambulatório de reumatologia do Hospital Universitário Evangélico de Curitiba, no período de janeiro de 2000 a dezembro de 2005. Estes pacientes eram oriundos do Serviço de Atenção Básica à Saúde (75 pacientes) e do Serviço de Oftalmologia do Hospital Universitário Evangélico de Curitiba (2 pacientes).
Todos os pacientes incluídos preenchiam os critérios de classificação para ES propostos pelo European Spondyloarthropathy Study Group (ESSG)(11). Prontuários com dados insuficientes ou preenchidos de maneira incompleta foram excluídos.
Obtiveram-se dados quanto ao tipo de espondiloartropatia diagnosticada, idade de diagnóstico, sexo do paciente, ocorrência de uveíte, localização da uveíte e tempo de ocorrência do primeiro episódio de uveíte em relação ao início dos sintomas articulares.
Os dados foram estudados por tabelas de freqüência e contingência sendo aplicados os testes de Mann-Whitney e Qui-quadrado com auxílio do software Graph Pad Prism 4.0. Nível de significância adotado de 5%.
RESULTADOS
Dos 77 pacientes estudados, 26 eram mulheres e 51 eram homens com idade média de 42,7 ± 12,8 anos. A amostra compunha-se de 1 paciente com espondilite associada à doença inflamatória intestinal; 14 pacientes com espondiloartropatias associadas à artrite psoriática, 17 com artrite reativa e 45 com espondilite anquilosante.
Nestes pacientes foram encontrados 12 casos de uveítes (15,5%), distribuídos da seguinte maneira: 3 em pacientes com artrite reativa (17,6% de todos os pacientes com artrite reativa) e 9 em pacientes com espondilite anquilosante (ou 20% de todos os pacientes com espondilite anquilosante). Nenhum dos casos de espondiloartropatia associada à psoríase ou doença inflamatória intestinal tinha tido uveíte. Não se encontrou diferença estatística significante entre a prevalência de uveítes nas diferentes formas de espondiloartropatias (p=0,27) (Figura 1).
Todos os casos de uveíte eram de uveítes anteriores com exceção de um paciente com panuveíte e de outro com uveíte intermediária. Estes dois últimos eram pacientes com espondilite anquilosante.
Em relação ao tempo de diagnóstico do primeiro episódio de uveíte e os sintomas articulares notou-se que: em 1 caso, a uveíte apareceu antes dos sintomas articulares; em 1 caso foi concomitante e, em outros 8, apareceu num período entre 7 a 180 meses após os sintomas articulares (média de 66,7 meses).
Ao se estudar a relação temporal entre uveítes de aparecimento posterior ao diagnóstico da espondiloartropatia encontrou-se que, no caso da espondilite anquilosante este aparecimento foi entre 12 e 180 meses (média de 73 ± 61,9 meses) e no caso de artrite reativa entre 0 e 7 meses (média de 4,04 ± 2,3 meses) com p=0,009 (Figura 2).
A distribuição de uveíte de acordo com o sexo do paciente foi de 8 casos nos homens (15,7%) e 3 nas mulheres (11,5%) com p=0,74.
DISCUSSÃO
A análise dos presentes resultados mostra uma prevalência de uveíte em 15,6% em todos os casos de espondiloartropatias sendo em sua grande maioria (83,3%) uveíte anterior.
Na tabela 1 encontram-se alguns dados da literatura que se referem à chance de uveítes em pacientes com diagnóstico já estabelecido de espondiloartropatias.
Os dados obtidos no presente estudo mostram uma prevalência de 20% nos casos de espondilite anquilosante e de 17,6% para artrite reativa, que é menor do que a observada acima (de até 30% para espondilite anquilosante e de até 37% para a artrite reativa). Tal fato talvez possa ser explicado em termos da forte ligação deste envolvimento ocular com o HLA-B27, que varia conforme o perfil étnico da população analisada. A prevalência de uveíte anterior em pacientes brasileiros com espondilite anquilosante demonstrou uma taxa bastante parecida com a obtida no presente estudo, em torno de 14,3%(12).
As uveítes das ES aparecem mais em indivíduos do sexo masculino, porque os estrógenos parecem desempenhar um papel protetor, papel este definido por indução da sintetase constitutiva do óxido nítrico, diminuição na expressão de moléculas de adesão (seletina E) e modulação nos genes que promovem o aparecimento de citocinas pró-inflamatórias como interleucina (IL)-1, IL-6 e fator de necrose tumoral (TNF)-alfa(13). Tal fato não pode ser constatado em nossa população, onde a diferença de prevalência não foi significativa entre os sexos. Talvez isso tenha ocorrido pela pequena amostra populacional analisada.
Inflamação articular e ocular não aparecem sempre de maneira sincrônica e a uveíte pode anteceder, aparecer simultaneamente ou depois das manifestações reumáticas. Pode, inclusive, ser a única manifestação da doença num indivíduo que não tem e nunca terá doença articular(14). O mais comum, de acordo com a literatura, é que ela apareça de 7 a 10 anos após o início das manifestações músculo-esqueléticas(1) . Este dado está de acordo com o observado em nossos pacientes de espondilite anquilosante. Todavia, os pacientes com artrite reativa demonstraram que esta manifestação pode ser muito mais precoce.
CONCLUSÕES
1) A prevalência de uveíte na população de ES local é menor do que a verificada na literatura mundial.
2) A uveíte da artrite reativa aparece de maneira mais precoce que a uveíte da EA.
3) Embora exista um número maior de pacientes masculinos com espondiloartropatia, o sexo não influi na prevalência de uveíte em nosso meio.
REFERÊNCIAS
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14. Pato E, Bañares A, Jover JA, Fernández-Gutiérrez B, Gogoy F, Morado C, et al. Undiagnosed spondyloarthropathy in patients presenting with anterior uveitis. J Rheumatol. 2000;27(9):2198-202.
Endereço para correspondência:
Thelma L. Skare
Rua João Alencar Guimarães, 796
Curitiba (PR) - CEP 80310-420
E-mail: [email protected]
Recebido para publicação em 04.10.2006
Versão recebida em 22.03.2007
Aprovação em 12.06.2007
Nota Editorial: Depois de concluída a análise do artigo sob sigilo editorial e com a anuência das Dras. Áisa Haidar Lani e Luciana Peixoto Finamor sobre a divulgação de seus nomes como revisoras, agradecemos suas participações neste processo.
Trabalho realizado no Hospital Universitário Evangélico de Curitiba (PR) - Brasil.