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Editorial

Divagações no dia do Fim do Milênio

Harley E. A. Bicas

DOI: 10.1590/S0004-27492000000600001

EDITORIAL

Divagações no dia do Fim do Milênio

 

Harley E. A. Bicas

 

Na contagem que se faz para a medida do tempo chegamos ao fim de um ano especial, o do fim de um século, com o que se encerra o milênio. Nessa transição, um se sente parte tanto do século XX quanto do XXI, tanto do segundo quanto do terceiro milênio, um privilégio curioso que remete o pensamento aos extremos dos respectivos períodos, nos anos de 1001 e de 3000. Mas, então, assim integrados, o que haveria em comum entre um aldeão da Idade Média, cuja história de certo modo visualizamos ("visualizar, v.t.d.: Formar ou conceber uma imagem visual mental") e um ser humano de daqui a mil anos? Ou, ainda mais distantes, entre nosso ancestral das cavernas e o habitante de um futuro remoto que nem sequer podemos imaginar? Ou, retornando ao presente e aqui mesmo onde estamos, mas que dá quase na mesma, entre um desprovido dos benefícios da civilização e cultura e um requintado usuário deles?

A Vida. Com suas dificuldades e gozos, com suas exigências e promessas. Com suas emoções e sentimentos, suas virtudes e vícios, suas crenças e paixões. Com seus pensamentos e seu impulso imanente, que é o da criação. Essa condição que nos irmana a todos, instruídos e ignorantes, pobres e ricos, homens e mulheres, crianças e velhos, de diferentes eras e plagas. Que unifica a diversidade de pessoas e costumes. A vida, o nascimento e a morte.

A Medicina cuida, por sua essência, desse estofo. E, por tal condição, seus praticantes, ainda que profissionais (e, portanto, precisando subsistir à custa de seus trabalhos) são, sobretudo, sacerdotes. Pode parecer anacrônica a insistência num termo já desgastado, pelas vicissitudes do exercício dessa ciência-arte. Mas cuidar da vida e da morte, das dores e de seus alívios, do sofrimento e da alegria por vê-lo afastado, agindo nessa interface delicada entre a lágrima e o sorriso será, sempre, tarefa em que cabe a intermediação humana, no que ela tem de melhor. Eventualmente interpretando instrumentos e seus resultados, programas de análise com suas evidências; mas sempre ele, ou ela, gente; como aquele, ou aquela, de quem se cuida. Seres humanos que, precisamente por serem humanos, devem tratar de seres humanos.

E, pois, aqui estamos, neste dia de fim de ano e começo de outro, como então devem ser todos os nossos outros dias, se nos esquecermos das convenções. Com os princípios gregários de respeito mútuo e solidariedade. Praticando nossa profissão, com os conhecimentos já acumulados no correr do tempo, mas ainda juntando mais e novas evidências para os que nos sucederem. Mas, sobretudo, com a consciência aguçada de que muito mais do que ciência, nosso tempo (e todos) precisa mesmo é de concórdia e afeto. Ou, como se dizia até há pouco: paz e amor. E o exercício da Medicina, mais que de computadores e aparelhagem sofisticada, precisa mesmo é de atenção e delicadezas para com o outro. Ou, como se pode então dizer: um atendimento de gente.


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