Patricia Grativol Costa1; Ivana Pereira Cardoso1; Fabio Petersen Saraiva1; Ana Carolina Pasquini Raiza1; Lílian Keiko Tanaka1; Suzana Matayoshi1
DOI: 10.1590/S0004-27492006000300007
RESUMO
OBJETIVO: Determinar o efeito da toxina botulínica no filme lacrimal em pacientes com distonia facial. MÉTODOS: Foram incluídos 24 pacientes portadores de blefaroespasmo essencial e espasmo hemifacial que receberam aplicação de toxina botulínica tipo A que foram submetidos à propedêutica do filme lacrimal previamente à aplicação e após, com 7 e 30 dias. RESULTADOS: Houve diminuição das queixas de olho seco trinta dias após a aplicação, entretanto, o tempo de ruptura do filme lacrimal e o teste de Schirmer não demonstraram variação significativa entre os períodos pré-tratamento e 1 mês da aplicação. Em relação ao teste de coloração com rosa bengala, todos os olhos que coraram no pré-tratamento, melhoraram na última avaliação. CONCLUSÃO: A injeção de toxina botulínica pode aliviar as queixas de olho seco nos pacientes com distonia facial pela provável ação de inibição do orbicular na sua função de bomba lacrimal.
Descritores: Drenagem; Espasmo hemifacial; Piscadela; Rosa Bengala; Toxina botulínica tipo A; Distonia
ABSTRACT
PURPOSE: To determine the effect of botulinum toxin injection in the eyelid on lacrimal film in patients with facial dystonia. METHODS: Twenty-four patients with essential blepharospasm and hemifacial spasm were submitted to botulinum toxin injection and lacrimal film tests were performed before the application and after seven and thirty days. RESULTS: There was improvement in symptoms of dry eye and rose bengal test, however, the breakup time and Schirmer's test did not show significant variation between pretreatment and after 1 month of follow-up. CONCLUSION: The dry eye symptoms in patients with facial dystonia may be attenuated by botulinum toxin due to its possible inhibitory effect on the orbicular muscle leading to a decrease in lacrimal pump.
Keywords: Drainage; Hemifacial spasm; Blinking; Rose Bengal; Botulinum toxin type A; Dystonia
INTRODUÇÃO
As distonias faciais são caracterizadas por contrações espasmódicas involuntárias repetidas dos músculos faciais, incluindo o músculo orbicular dos olhos, resultando no fechamento palpebral prolongado. O blefaroespasmo essencial é uma distonia focal adquirida das pálpebras caracterizada por contrações tônicas espasmódicas do músculo orbicular, prócerus e corrugador dos supercílios. Acredita-se que seja uma doença neurológica provavelmente relacionada a alterações nos gânglios da base. O espasmo hemifacial é também uma distonia focal caracterizada pela contração involuntária e intermitente dos músculos da face, geralmente unilateral. A compressão vascular do nervo facial é sua etiologia mais provável(1-2).
É relatada na literatura a associação de olho seco em pacientes com distonia facial, pois a contração do músculo orbicular periódica é fundamental para a manutenção e renovação do filme lacrimal(3). Além disso, este músculo também é considerado o principal responsável pelo mecanismo de bomba lacrimal, auxiliando a drenagem da lágrima(4-5).
A toxina botulínica tipo A foi introduzida para denervar quimicamente a musculatura ocular extrínseca em 1978 por Scott(6-7). A injeção da toxina na porção medial das pálpebras pode provocar uma denervação farmacológica temporária do músculo orbicular. Dessa forma, o uso desta medicação pode estar relacionado com a diminuição da drenagem lacrimal e com o alívio dos sinais e sintomas de olho seco em pacientes com blefaroespasmo essencial e espasmo hemifacial(4).
Dessa forma, o objetivo deste estudo foi determinar o efeito da toxina botulínica no filme lacrimal em pacientes com distonia facial através da propedêutica para olho seco.
MÉTODOS
Estudo prospectivo, realizado no setor de Plástica Ocular do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP). Foram triados 24 pacientes, sendo que, 16 eram portadores de blefaroespasmo essencial e 8 de espasmo hemifacial. Foram submetidos à aplicação de toxina botulínica tipo A (Botox®) na dose de 12,5 unidades ao redor de cada olho (2,5 unidades por ponto de aplicação; figura 1). A diluição da toxina utilizada foi de 100 unidades de Botox® em 4 ml de cloreto de sódio a 0,9%. Todos os pacientes já vinham recebendo este tipo de tratamento com intervalo de aproximadamente 6 meses entre as aplicações. Além disso, estes pacientes selecionados não fizeram uso de colírios lubrificantes antes do tratamento e durante o período de seguimento.
Foram analisados os seguintes dados: idade, sexo, tempo da doença, anamnese (questionando a respeito de sinais e sintomas relacionados com olho seco e medicações sistêmicas que pudessem interferir no filme lacrimal), e os exames de propedêutica do filme lacrimal (tempo de ruptura do filme lacrimal - BUT, teste de Schirmer e coloração com Rosa Bengala).
O teste do BUT foi realizado com aplicação de colírio de fluoresceína no fundo de saco conjuntival e medida na lâmpada de fenda do tempo de ruptura do filme lacrimal. Um resultado menor que 5 segundos foi considerado patológico(3,8).
O teste de Schirmer foi realizado com papel de filtro (Whatman 41, medindo 5 mm de largura por 35 mm de extensão), dobrando o papel 5mm antes da ponta terminal e colocando no 1/3 externo da pálpebra inferior, sem aplicação de colírio anestésico. Foi medida a extensão umidecida ao final de 5 minutos. A leitura da fita com régua milimetrada menor que 5 mm foi considerada anormal(3,8).
O teste da coloração com Rosa Bengala foi realizado aplicando-se 1 gota de colírio de Rosa Bengala no fundo de saco conjuntival observando-se na lâmpada de fenda a coloração de células desvitalizadas. Os resultados foram classificados em:
Grau I | - coloração de pontos distribuídos na área exposta da conjuntiva bulbar e na parte inferior da córnea; |
Grau II | - coloração de toda a área interpalpebral; |
Grau III | - presença de filamentos mucosos corados na porção exposta da superfície corneana; |
Grau IV | - observação de grande quantidade de filamentos mucosos(8). |
A propedêutica do filme lacrimal foi realizada antes da aplicação da toxina botulínica e repetida após 1 semana e 1 mês. Os resultados foram comparados, utilizando se o teste t de Student para amostras independentes, com um nível de significância menor ou igual a 0,01 (1%), comparando o tempo de ruptura do filme lacrimal e o teste de Schirmer de todos os pacientes para cada época em que foram realizados (pré-tratamento, 1 semana e 1 mês).
RESULTADOS
Foram avaliados no estudo 40 olhos de 16 pacientes portadores de blefaroespasmo essencial (32 olhos) e 8 pacientes com espasmo hemifacial (8 olhos) com indicação de tratamento com toxina botulínica tipo A. Foi incluído apenas o olho do lado afetado nos casos de espasmo hemifacial.
O grupo era constituído de 16 pacientes do sexo feminino e 8 pacientes do sexo masculino com idade variando entre 45 e 85 anos. A duração do espasmo foi de 3 a 30 anos, sendo que 41,6% dos pacientes apresentavam a doença há mais de 10 anos. Nenhum dos pacientes estava em uso de medicações sistêmicas que pudessem interferir na produção da lágrima.
Conforme mostra o gráfico 1, no período pré-tratamento, todos os pacientes relataram algum sintoma de olho seco, sendo os mais citados: prurido (58,33%), sensação de corpo estranho (50,0%) e lacrimejamento (45,83%). Trinta dias após a injeção de toxina botulínica, houve diminuição expressiva dos sinais e sintomas, sendo que os mais citados foram: secreção (33,33%), prurido (29,16%) e lacrimejamento (25,0%).
Em relação ao BUT, no pré-tratamento encontramos uma média de 6,27 segundos, com 1 semana média de 5,5 segundos e com 1 mês média de 9,2 segundos. O teste de Schirmer resultou, em média, de 13,3 mm; 10,3 mm e 11,5 mm no pré-tratamento, 7º e 30º dias pós-tratamento, respectivamente. De 40 olhos avaliados pelo teste de coloração com Rosa Bengala no pré-tratamento, 4 apresentaram resultado grau I, 2 grau II, 3 grau III e nenhum olho grau IV. Após 1 mês, todos os olhos que coraram com Rosa Bengala no pré-tratamento, tiveram exame negativado.
DISCUSSÃO
O olho seco é uma doença da superfície ocular causada por diversas patologias que alteram o mecanismo de proteção externa ocular levando a uma instabilidade do filme lacrimal(3). Há relatos na literatura relacionando blefaroespasmo com olho seco, porém os resultados são controversos(3,9). Apesar de ser difícil determinar se realmente existe essa relação, sabe-se que o blefaroespasmo interrompe o ato de piscar periódico que é fundamental para a manutenção e renovação do filme lacrimal(3).
A anatomia e a fisiologia do sistema lacrimal vêm sendo estudadas e investigadas desde o século XVIII. Existe uma forte evidência de um mecanismo de bomba associado ao canalículo lacrimal e o músculo orbicular é considerado o principal responsável por este mecanismo(4-5). A paralisia do músculo orbicular palpebral após o uso da toxina botulínica poderia diminuir a função de bomba lacrimal durante o piscar.
Este estudo investigou a influência que a injeção de toxina botulínica pode exercer no filme lacrimal. A análise dos sinais e sintomas de olho seco apresentados no gráfico 1 mostra que, de um modo geral, houve uma diminuição das queixas trinta dias após a aplicação. Entretanto, o BUT, que avalia a estabilidade do filme lacrimal, e o teste de Schirmer, que avalia a produção da camada aquosa, não demonstraram variação significativa (p<0,01) entre os períodos pré-tratamento, após 1 semana e após 30 dias da aplicação (Tabela 1). Em contraste com os resultados deste estudo, Horwath-Winter et al., observaram uma diminuição dos valores obtidos no teste de Schirmer. Estes autores especulam que a diminuição dos valores encontrados no teste de Schirmer possa ser devido à idade relativamente alta dos pacientes estudados(3).
O corante de Rosa Bengala cora células em degeneração ou mortas e células saudáveis recobertas por muco e filamentos. A maioria dos pacientes (77,5%), no pré-tratamento apresentaram o teste com coloração por Rosa Bengala negativo. Todos os olhos alterados (22,5%) mostraram melhora após 30 dias de tratamento (Tabela 2).
Uma razão que poderia explicar os resultados encontrados no teste de BUT e de Schirmer é o fato de que a toxina botulínica pode ter um efeito farmacológico direto na produção de lágrima pela glândula lacrimal quando aplicada intraglandular, e com menor eficácia via subcutânea(10-11). A toxina botulínica tipo A afeta a transmissão colinérgica durante as manifestações sistêmicas do botulismo. Seu uso está sendo estudado para o tratamento de patologias com hiperatividade secretória como "lágrima de crocodilo", hipersalivação e hiperidrose. A toxina botulínica tipo A pode diminuir a secreção da glândula lacrimal através da sua dispersão local pelos tecidos, quando aplicada no músculo orbicular(3). Logo, a droga deve ter um efeito positivo no filme lacrimal ao melhorar o blefaroespasmo e paralisar o orbicular, reduzindo a drenagem lacrimal, e por outro lado, um efeito negativo, diminuindo a produção de lágrima pela dispersão local (efeito anticolinérgico). O resultado no filme lacrimal provavelmente dependerá do local e forma de aplicação, dose e dispersão tecidual local da droga.
CONCLUSÕES
A injeção de toxina botulínica pode aliviar os sinais e sintomas de olho seco em pacientes com blefaroespasmo. Isso talvez esteja relacionado à inibição da ação do músculo orbicular com diminuição da drenagem lacrimal. Porém existem outros efeitos associados da toxina botulínica que precisam ser melhor estudados e que também podem influenciar na produção da lágrima. Pode representar um tratamento promissor em pacientes com olho seco e distonias faciais.
REFERÊNCIAS
1. Matayoshi S, Siva AB. Blefaroespasmo essencial. In: Matayoshi S, Forno EA, Moura EM. Manual de cirurgia plástica ocular. São Paulo: Roca; 2004. p.127-35.
2. Machado FCN, Fregni F, Campos CR, Limongi JCP. Espasmo hemifacial bilateral: relato de caso. Arq Neuropsiquiatr. 2003;61(1):115-8.
3. Horwath-Winter J, Bergloeff J, Floegel I, Haller-Schober EM, Schmut O. Botulinum toxin A treatment in patients suffering from blepharospasm and dry eye. Br J Ophthalmol. 2003;87(1):54-6.
4. Dutton JJ. The lacrimal drainage system. In: Dutton JJ. Atlas of clinical and surgical orbital anatomy. Philadelphia: WB Saunders; 1994. p.142-5.
5. Sahlin S, Chen E, Kaugesaar T, Almqvist H, Kjellberg K, Lennerstrand G. Effect of eyelid botulinum toxin injection on lacrimal drainage. Am J Ophthalmol. 2000;129(4):481-6.
6. Reifler DM. Early descriptions of Horner's muscle and the lacrimal pump. Surv Ophthalmol. 1996;41(2):127-34.
7. Kraft SP, Lang AE. Botulinum toxin injections in the treatment of blepharospasm, hemifacial spasm, and eyelid fasciculations. Can J Neurol Sci. 1988;15(3): 276-80.
8. Scarpi MJ. Olho seco. In: Kara-José N, Belfort Junior R. In: Córnea Clínica-Cirúrgica. São Paulo:Roca;1997. p287-99.
9. Price J, O'Day J. A comparative study of tear secretion in blepharospasm and hemifacial spasm patients treated with botulinum toxin. J Clin Neuroophthalmol. 1993;13(1):67-71.
10. Hofmann RJ. Treatment of Frey's syndrome (gustatory sweating) and 'crocodile tears' (gustatory epiphora) with purified botulinum toxin. Ophthal Plast Reconstr Surg. 2000;16(4):289-91.
11. Keegan DJ, Geerling G, Lee JP, Blake G, Collin JR, Plant GT. Botulinum toxin treatment for hyperlacrimation secondary to aberrant regenerated seventh nerve palsy or salivary gland transplantation. Br J Ophthalmol. 2002;86(1): 43-6.
Endereço de correspondência:
Patrícia Grativol Costa
Rua Oscar Freire, 1702/38
São Paulo (SP) - Cep 05409-011
E-mail: [email protected]
Recebido para publicação em 12.04.2005
Versão revisada recebida em 28.11.2005
Aprovação em 09.12.2005
Trabalho realizado no Departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - USP - São Paulo (SP) - Brasil.