Luci Meire Pereira da Silva1; Filipe de Oliveira1; Cristina Muccioli1
DOI: 10.1590/S0004-27492005000500026
RESUMO
O termo de consentimento é um documento recomendado por declarações internacionais, códigos de ética, resoluções e leis específicas para ser utilizado no cotidiano de pesquisas em saúde. A prática ou a obtenção do consentimento informado no exercício da medicina e da pesquisa em seres humanos é própria das últimas décadas e caracteriza o aperfeiçoamento da ética biomédica, constitui um requerimento legal e ético na pesquisa clínica envolvendo seres humanos. O principal desafio do processo de consentimento é garantir a compreensão adequada do indivíduo, entretanto os aspectos sociais, culturais e intelectuais dos indivíduos, ou mesmo a relação existente entre médico e paciente, às vezes, podem comprometer esse processo. O objetivo desse trabalho é apresentar critérios importantes no processo de consentimento que merecem ser destacados e abordados de acordo com normas e resoluções específicas.
Descritores: Pesquisa biomédica; Termos de consentimento; Consentimento; Bioética; Ensaios clínicos
ABSTRACT
The consent form is a document recommended for international declarations, resolutions and specific laws currently used in research on health. The practice or the accomplishment of the informed consent in the exercise of the medicine and the research in human beings is pertains to the last decades and characterizes the perfectioning of biomedical ethics, constitutes a legal and ethical requirement in clinical research involving human beings. The main challenge of the consent process is to guarantee the adequate understanding of the individual, however the social, cultural and intellectual aspects as well as the relationship between physician and patient, sometimes, can affect this process. The purpose of this paper is to present important criteria in the consent process that need to be highlighted in accordance with specific tenets and resolutions, such as Resolution 196/96 of the National Council of Health.
Keywords: Biomedical research; Consent forms; Informed consent; Bioethics; Clinical Trials
INTRODUÇÃO
A pesquisa clínica é ferramenta essencial na busca de opções para prevenção e tratamento da saúde, tendo como objetivo principal diminuir o sofrimento e assegurar o desenvolvimento científico e tecnológico em benefício do ser humano. A evolução da medicina é baseada na pesquisa que se fundamenta, em parte, na experimentação envolvendo seres humanos(1). Foi a experimentação sistematizada com animais de várias espécies, inclusive o homem, que resultou na soma de conhecimentos que possibilitou a atual precisão diagnóstica, a adequação terapêutica e o alto nível de saúde e expectativa de vida que caracterizam a vida moderna no mundo(2).
A realização de pesquisas por profissionais da área de saúde envolve em grande parte seres humanos e a avaliação ética transformou-se em parte essencial da investigação clínica para assegurar que os seres humanos sejam respeitados nos termos de sua dignidade, integridade e valores, evitando que sejam usados apenas como instrumentos para obtenção de resultados.
Durante a elaboração de um projeto de pesquisa deve ser verificado sua adequação às leis, normas e diretrizes vigentes. No Brasil, as exigências estabelecidas pela Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (CNS) devem ser atendidas(3). Também, vale a pena ressaltar que as Resoluções complementares à Resolução 196/96 também impõem restrições e estabelecem requisitos mínimos à realização de projetos de pesquisa em áreas específicas(4-7).
Termo de Consentimento: Histórico, Conceitos Básicos e Atualidades
A prática ou a obtenção do consentimento informado no exercício da medicina e da pesquisa em seres humanos é própria das últimas décadas e caracteriza o aperfeiçoamento da ética biomédica(8).
O termo de consentimento é um documento recomendado por declarações internacionais, códigos de ética, resoluções e leis específicas para ser utilizado na prática cotidiana em saúde e na realização de pesquisas envolvendo seres humanos. Podemos encontrar algumas variações na terminologia utilizada para expressar o uso do consentimento. Na literatura internacional, o termo mais comumente empregado é "Consentimento Informado" e, no Brasil, adota-se a expressão "Termo de Consentimento Livre e Esclarecido"(TCLE), conforme consta na Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde(1,3).
O Código de Nuremberg (1947) foi o primeiro documento com repercussão internacional, que estabeleceu princípios éticos mínimos a serem seguidos em pesquisa envolvendo seres humanos e foi elaborado em decorrência dos abusos e atrocidades cometidas dentro e fora dos campos de concentração, durante a Segunda Guerra Mundial(9). O Código de Nuremberg menciona que o consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial quando da participação em ensaios clínicos, além de afirmar a necessidade de estudos prévios em animais, da análise de riscos e benefícios, da liberdade do participante de se retirar no decorrer do experimento e a não indução à participação. Também declara que o dever e a responsabilidade de garantir a qualidade do consentimento é obrigação do pesquisador que inicia ou dirige o experimento ou nele se compromete.
Ainda, a fim de estabelecer parâmetros éticos para nortear o trabalho dos pesquisadores, foi elaborado em 1964, pela Associação Médica Mundial, a Declaração de Helsinque, que determina que em qualquer pesquisa com seres humanos, cada participante em potencial deve ser adequadamente informado sobre os objetivos, métodos, benefícios previstos e potenciais perigos decorrentes do estudo. Os sujeitos de pesquisa devem ser informados de que são livres para retirar seu consentimento em participar, a qualquer momento(1).
A Declaração de Helsinque também trata a necessidade de obediência a princípios científicos aceitos, revisão ética e científica, adequada qualificação dos pesquisadores, avaliação dos riscos/benefícios, assegurando aos participantes dos estudos os melhores métodos diagnósticos e terapêuticos existentes após término da pesquisa. Além disso, condena o uso do placebo quando já existe tratamento eficaz estabelecido.
No Brasil, foi criada a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, onde constam as Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisa Envolvendo Seres Humanos e que fundamenta-se nos principais documentos internacionais resultantes das declarações e diretrizes sobre pesquisas que envolvem seres humanos(3).
Esta resolução além normatizar a criação, composição e atuação de Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) institucionais e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), também estabelece exigências éticas e científicas para pesquisas envolvendo seres humanos e exige que o esclarecimento dos sujeitos se faça em linguagem acessível ao paciente.
Muitos estudos têm sido realizados a fim de avaliar, auxiliar e melhorar o processo de obtenção de consentimento e avanços importantes estão sendo obtidos.
Elaboração do Termo de Consentimento
De acordo com as diretrizes da Resolução 196/96, o TCLE consiste em um instrumento para assegurar a autonomia do sujeito da pesquisa, através da obtenção da sua anuência à participação. Seu uso correto pressupõe a concordância, sem qualquer coerção, após fornecimento e compreensão da informação sobre os procedimentos. Para tal é necessário que seja elaborado em linguagem acessível e que inclua os seguintes aspectos:
Além disso, o TCLE deve:
Nos casos em que haja qualquer restrição à liberdade ou ao esclarecimento necessário para o adequado consentimento, deve-se ainda observar:
- documento comprobatório da morte encefálica (atestado de óbito);
- consentimento explícito dos familiares e/ou do responsável legal, ou manifestação prévia da vontade da pessoa;
- respeito total à dignidade do ser humano sem mutilação ou violação do corpo;
- sem ônus econômico ou financeiro adicional à família;
- sem prejuízo para outros pacientes aguardando internação ou tratamento;
- possibilidade de obter conhecimento específico relevante, novo e que não possa ser obtido de outra maneira;
Desafios na Obtenção do Consentimento
O principal desafio durante o processo de consentimento é garantir a compreensão adequada do indivíduo, principalmente em um país como o nosso em que a grande maioria dos sujeitos de pesquisa é extremante vulnerável devido às condições sociais, culturais e econômicas diferenciadas. Outro aspecto diz respeito à estrutura do texto num TCLE, pois a utilização de palavras, frases ou parágrafos longos dificulta o acompanhamento da leitura e a compreensão das idéias que estão sendo apresentadas(10).
O nível de complexidade de informações que são apresentadas num TCLE pode comprometer o entendimento do sujeito da pesquisa(11-13). Essa complexidade é a maior barreira no processo de compreensão dos termos de consentimento, e é encontrada em aproximadamente 25% da população americana adulta que apresenta baixa habilidade para ler e escrever(14). A obtenção do consentimento do sujeito para sua participação numa pesquisa médica é particularmente importante, pois requer um nível de compreensão além dos cuidados usuais que são tomados atualmente(15). Alguns estudos apontam que a lingüagem usada nos termos de consentimento nos EUA, não é plenamente compreensível. Muitos TCLEs apresentam texto pouco legível, conforme verificado por Burman et al., num importante estudo baseado no assunto(16). A legibilidade é um atributo de um texto impresso, resultante da escolha de família tipográfica, corpo, espaçamento, etc., e que afeta a velocidade de leitura. Mas como podemos avaliar a legibilidade? Burman et al., como em muitos IRB (institutional review boards) usa a Escala Flesch-Kincaid. Esta escala baseia-se num método de contagem de sílabas para calcular o nível de leitura que é esperado de acordo com o nível de educação escolar. Entretanto essa escala tem sido abandonada por alguns pesquisadores, por considerarem que nem o tamanho da palavra e da sentença são indicadores do quanto um indivíduo é capaz de compreender um texto.
Outro fator a ser destacado é a "relação entre o pesquisador e o sujeito da pesquisa" que segundo o Conselho Federal de Medicina guarda estreita e inevitável analogia com a relação médico-paciente, ou seja, a figura do médico, geralmente, expressa a imagem do poder e da detenção do conhecimento, de forma que questionar e/ou contestar as suas falas pode não ser um facilitador da relação pesquisador-sujeito(17). Também é notório que a linguagem médica é mais técnica do que comum, o que pode favorecer a distância entre aquele que informa e o que recebe a informação, em termos de compreensão e apreensão.
Goldim et al., num estudo recente sobre abordagem do processo de consentimento, concluiu que a transmissão coletiva de informações através de palestras e com o uso de recursos áudio-visuais, habitualmente não utilizados no processo de consentimento, auxilia na adequada compreensão do projeto de pesquisa e melhoram sua qualidade global(18).
Considerando estes aspectos que envolvem a capacidade do sujeito da pesquisa em conceder o seu consentimento de forma livre e esclarecida, torna-se importante que toda dúvida deva ser plenamente esclarecida, diretamente pelo investigador do estudo ou por questões de inibição do paciente, com outra pessoa envolvida com a pesquisa (sub-investigadores, coordenadores, etc), mesmo que se faça necessário agendar dias subseqüentes para que o paciente se sinta a vontade para esclarecimentos imparciais que possam estar presentes, e assim evitar e/ou reduzir falhas no processo de compreensão e consentimento do paciente nessa etapa importante da condução da pesquisa clínica.
REFERÊNCIAS
1. Declaration of Helsinki. Ethical principles for medical research involving human subjects. Adopted by the 18th World Medical Assembly. Helsinki, Finland, June 1964 and amended by 1975, 1983, 1989, 1996, 2000.
2. Campana AO, Padovani CR, Iaria CT, Freitas CBD. Investigação científica na área médica. São Paulo: Manole, 2001. 245p.
3. Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 196 de 10 de outubro de 1996. Diretrizes e normas reglamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos [texto na Internet]. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília (DF); 1996 Out 16. [citado 2004 Set 20]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/docs/Reso196.doc
4. Brasil. Conselho Nacional de Saúde (Brasil). Resolução nº 251 de 7 de agosto de 1997. Dispõe sobre as normas de pesquisa envolvendo seres humanos para a área temática de pesquisa com novos fármacos, medicamentos, vacinas e testes diagnósticos [texto na Internet]. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília (DF); 1997 Ago 05. [citado 2004 Set 12] Disponível em: http://www.inpa.gov.br/cep/resolucoes/reso251_97.doc
5. Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Resolução 292 de 08 de julho de 1999. Regulamentação Complementar da Resolução CNS nº 196/96 na área temática de projetos com cooperação estrangeira. pesquisas coordenadas com participação estrangeira e pesquisas que envolvam remessa de material biológico para o exterior [texto na Internet]. [citado 2004 Dez 12]. Disponível em: http://www.aids.gov.br/resolucao_292.htm
6. Conselho Nacional de Saúde (Brasil). Resolução 303 de 06 de julho de 2000. Norma Complementar para a área de reprodução humana [texto na Internet]. Disponível em: http://www.prppg.ufg.br/comite/res303.php
7. Conselho Nacional de Saúde (Brasil). Resolução 340 de 08 de julho de 2004. Diretrizes para Análise Ética e Tramitação dos Projetos da Área Temática Especial de Genética Humana [texto na Internet]. [citado 2004 Set 27]. Disponível em: http://www.pucrs.br/reitoria/bioetica/professores/clarice/Resolu% E7%E3o-340.pdf
8. Clotet J. O consentimento informado nos comitês de ética em pesquisa e na prática médica: conceituação, origens e atualidade. Bioética. 1995;3(1):51-9.
9. Trials of war criminal before the Nuremberg Military Tribunals. Control Council Law. 1949;10(2):181-2.
10. Clotet J, Goldim JR, Francisconi CF. Consentimento Informado e a sua prática na assistência e pesquisa no Brasil. Porto Alegre: EDIPUCRS; 2000.
11. Communicating with patients who have limited literacy skills: report of the National Work Group on Literacy and Health. J Fam Pract. 1998;46(2):168-76.
12. Andrus MR, Roth MT. Health literacy: a review. Pharmacotherapy. 2002;22(3):282-302.
13. Fitzmaurice DA, Adams JL. A systematic review of patient information leaflets for hypertension. J Hum Hypertens. 2000;14(4):259-62.
14. Kirsch IS, Jungeblut A, Jenkins L, Kolstad A. Adult literacy in America: a first look at the results of the National Adult Literacy Survey. Washington, D.C: Office of Education Research and Improvement, Department of Education; 1993.
15. The Belmont report: ethical principles and guidelines for the protection of human subjects of research. Bethesda, Md.: National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomedical Research; 1978.
16. Burman W, Breese P, Weis S. The effects of local review on informed consent documents from a multicenter clinical trials consortium. Control Clin Trials. 2003;24:245-55.
17. Marques R. Declaração de Helsinque. J Cons Fed Méd. 2001;16:6.
18. Goldim JR, Pithan CF, Oliveira JG, Raymundo MM. O processo de consentimento livre e esclarecido em pesquisa: uma nova abordagem. Rev Assoc Med Bras. 2003;49(4):372-4.
Endereço para correspondência
Luci Meire Pereira da Silva
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E-mail: [email protected]
Recebido para publicação em 04.04.2005
Versão revisada recebida em 15.06.2005
Aprovação em 05.07.2005
Trabalho realizado no Departamento de Oftalmologia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).