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Editorial

Posição viciosa de cabeça por astigmatismo mal corrigido: relato de caso

Abnormal head position caused by incorrect prescription for astigmatism: case report

Flávia Augusta Attié de Castro1; Maria Lúcia Habib Simão1; Christine Mae Morello Abbud1; Rosália Maria Simões Antunes Foschini1; Harley Edison Amaral Bicas1

DOI: 10.1590/S0004-27492005000500022

RESUMO

A posição viciosa de cabeça é uma condição compensatória que visa proporcionar aos pacientes melhor rendimento visual. Pode ser causada por problemas oftalmológicos, como distúrbios oculomotores (nistagmos, estrabismos) e altos astigmatismos. No entanto, compromete a estética e, a longo prazo, pode causar transtornos ortopédicos (coluna cervical) e assimetrias faciais. Relatamos o caso de uma garota, JL, 8 anos, com cabeça inclinada para esquerda havia vários anos. Fazia uso de óculos prescritos em outro serviço para correção de astigmatismo misto: OD= +2,00 DE Ç -5,50 DC a 180º e OE= +2,25 DE Ç -5,75 DC a 180º. No exame oftálmico, a paciente apresentava cabeça inclinada para a esquerda e acuidade visual com correção de 0,5 no OD e 0,7 OE. Os testes de cobertura simples e alternado não evidenciaram desvio ocular. Rotações oculares, biomicroscopia e fundoscopia também não mostraram alterações. Na refratometria sob cicloplegia e teste de lentes foram encontrados: OD= +3,50 DE Ç -6,00 DC a 10º e OE= +3,50 DE Ç -6,00 DC a 170º, com acuidade visual igual a 1,0 nos olhos direito e esquerdo. Foram prescritas as lentes encontradas no exame e a paciente retornou com a correção nova sem a inclinação de cabeça. Erros refracionais mal corrigidos também podem gerar torcicolo e, muitas vezes, passam despercebidos. Refratometria sob cicloplegia e teste de lentes são fundamentais para um diagnóstico preciso.

Descritores: Cabeça; Postura; Astigmatismo; Estrabismo; Reflexo vestibulo-ocular; Nistagmo patológico; Músculos oculomotores; Refratometria; Relatos de casos

ABSTRACT

Abnormal head position is a compensatory condition which improves patients' vision. It can be caused by ophthalmological problems such as oculomotor imbalances (strabismus, nystagmus) and high astigmatisms. However, it results in esthetic impairment, orthopedic trouble and facial asymmetries. We describe a case of a girl, JL, 8 years, with abnormal head position tilted to the left since the last glasses were prescribed. The correction used by the patient was: right eye = +2.00 sph à -5.5 cyl 180° and left eye = +2.25 sph à -5.75 cyl 180°. In tilted position, the correct visual acuity was: right eye 6/12 and left eye 6/9. No deviations were noted by the cover test and the remaining ophthalmological examination was completely normal. Retinoscopy under cycloplegia and subjective test showed right eye = +3.50 sph à -6.00 cyl 10° and left eye = +3.50 sph à -6.00 cyl 170°, with visual acuity 6/6 in both eyes. With adequate prescription, the head position was normalized. Wrong cylindrical positions for correction of high astigmatisms may cause abnormal head position. Retinoscopy under cycloplegia and subjective test are essential for precise diagnoses and prescriptions.

Keywords: Head; Posture; Astigmatism; Strabismus; Reflex; vestibulo-ocular; Nystagmus; pathologic; Oculomotor muscles; Refractometry; Case reports


 

 

INTRODUÇÃO

Os termos posição viciosa de cabeça (PVC) e torcicolo são posições persistentes do segmento cefálico em torno dos eixos: vertical ou súpero-inferior (rotação para a esquerda ou direita), horizontal transversal ou látero-medial (flexão ou extensão do pescoço) e horizontal longitudinal ou ântero-posterior (inclinação para o ombro esquerdo ou para o direito).

Podem ser secundárias a alterações ortopédicas (como a fibrose congênita do músculo esternocleidomastóideo), neurológicas (como a paralisia supranuclear dos movimentos conjugados e nistagmos) e por problemas oftalmológicos, como distúrbios oculomotores (estrabismo) e altos astigmatismos(1-3). Geralmente, a PVC é uma posição compensatória que visa proporcionar aos pacientes melhor rendimento visual(4-5). No entanto, ela compromete a estética e, a longo prazo, pode causar transtornos ortopédicos (coluna cervical) e assimetrias faciais.

Frente a um paciente com PVC, estrabismo e nistagmo são sempre lembrados como causas, mas altos astigmatismos podem levar o paciente a adotar uma posição de cabeça que lhe proporcione melhor acuidade visual.

O presente relato de caso tem como objetivo mostrar um exemplo de PVC secundária a astigmatismo de alto valor, mas com prescrição incorreta e alertar oftalmologistas quanto à importância de um exame refracional bem feito, principalmente em crianças.

 

RELATO DE CASO

JL, 8 anos, feminina, foi encaminhada para o setor de Estrabismo do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, devido à "cabeça inclinada para o lado esquerdo" havia vários anos (Figura 1). A paciente negou traumatismos anteriores ou doenças sistêmicas. Fazia uso de óculos prescritos em outro serviço para correção de astigmatismo misto: OD= +2,00 DE Ç -5,50 DC a 180º e OE= +2,25 DE Ç -5,75 DC a 180º.

 

 

No exame oftalmológico, a paciente efetivamente apresentava PVC inclinada para a esquerda (Figura 2A) e acuidade visual com correção de 0,5 no OD e 0,7 no OE, mas as lentes dos óculos em uso estavam riscadas. Os testes de cobertura simples e alternado não evidenciaram desvio ocular tanto em posição primária do olhar como nas demais posições (supra, infra, levo e dextroversões). Rotações oculares, biomicroscopia e fundoscopia também não mostraram alterações. Na refratometria sob cicloplegia e teste de lentes foram encontrados:

OD= +3,50 DE Ç -6,00 DC a 10º
OE= +3,50 DE Ç -6,00 DC a 170º

com acuidade visual igual a 1,0 nos olhos direito e esquerdo.

 


 

Devido à diferença entre as posições dos eixos dos cilindros em uso e as encontradas no exame, em presença de ortoforia, foi feita a hipótese diagnóstica de a PVC ser secundária à posição incorreta dos eixos dos cilindros em uso pela paciente.

Foram prescritas as lentes encontradas no exame e a paciente retornou com a correção nova sem PVC (Figura 2B).

 

DISCUSSÃO

Em posição primária do olhar, os eixos dos cilindros negativos encontrados nos óculos antigos estavam no plano horizontal nos dois olhos (0º ou 180º).

Porém, as posições achadas como corretas para esses eixos eram de 10° no olho direito (portanto extorcida relativamente à usada) e 170° no esquerdo (idem); ou, reciprocamente, a posição efetivamente usada do eixo de cada lente achava-se intorcida relativamente à correta, tanto para um olho quanto para o outro. Para melhorar sua visão, com a fixação com o olho esquerdo (o olho dominante), a paciente inclinava a cabeça para a esquerda, posicionando os óculos e o olho esquerdo de maneira que o eixo do cilindro se posicionasse corretamente; a lente esquerda era inclinada no sentido horário, o olho esquerdo realizava movimento compensatório de intorção (anti-horário) e a correção ficava, então, "ajustada" (eixo de 170°) (Figura 3).

 

 

A prescrição incorreta do eixo do cilindro como causa da PVC foi confirmada ao se fazer a oclusão do OE, com os óculos antigos: a paciente inclinou a cabeça para a direita para fixar com o OD, cujo movimento de intorção aproximava o eixo em que se daria a correção de seu astigmatismo ao da posição do eixo da lente cilíndrica usada. Assim, invertia-se a PVC inicial (Figuras 4A e 4B); já com os óculos novos (cilindro prescrito a 10º no OD), a PVC desapareceu (Figura 2).

 


 

Os cálculos dos valores dióptricos nas diferentes posições refratométricas para o olho esquerdo e os das respectivas correções possibilitadas pela lente então usada em posição normal (sem inclinação de cabeça) e com a cabeça compensatoriamente inclinada para a esquerda, mostram que (Figura 4):

a) Para a refratometria (R), o valor dióptrico de menor convergência óptica (+3,50 D) é encontrado na inclinação de 80º* e o de maior convergência (-2,50 D) na de 170º. Aproximadamente a 30º (e 210º) e a 130º (e 310º) (isto é, mais proximamente ao eixo de 170º e 350º que ao de 80º e 260º) o valor dióptrico é nulo.

b) Para a lente usada (+2,25 D sf Ç -5,75 D cil/180º) na posição normal da cabeça (S) a maior convergência óptica (-3,50 D) está no eixo de 180º e a menor (+2,25 D) a 90º. Os valores nulos acham-se aproximadamente nos eixos de 51º (e 231º) e 129º (e 308º) isto é, mais aproximadamente ao eixo (90º e 270º) de menor valor absoluto (+2,25 D) que ao seu perpendicular (eixo de 0 a 180º, com valor -3,50 D).

c) Para a lente usada na inclinação de cabeça (C), supondo-se que a torção ocular situe os meridianos oculares nas posições das correções cilíndricas equivalentes, a maior convergência óptica (-3,50 D) passa à inclinação de 170º (e 350º) e a menor (+2,25 D) à posição de 80º (e 260º). Os eixos cujos valores são nulos passam, correspondentemente, aos eixos (aproximados) de 41º (e 221º) e 119º (e 299º).

É interessante notar o que ocorre com as diferenças entre o valor refratométrico em cada posição e o efeito da respectiva correção. Com a lente prescrita, usada na posição normal da cabeça, há uma diferença de 10º entre os valores de maior (ou menor) poder dióptrico da refratometria (R) e da correção (S). Assim, o valor máximo da diferença entre R e S é +2,15 D (nos eixos de 43,44º e 223,44º) e o mínimo é +0,10 D (nos eixos de 133,44º e 313,44º) segundo uma função senoidal.

A figura 5 mostra que a diferença entre as curvas S (valores dióptricos da correção óptica nos diferentes meridianos -ou eixos - oculares, com a cabeça ereta) e C (idem, com a cabeça apropriadamente inclinada) é, meramente, de fase. Isto é, a correção óptica dada pela prescrição (S) e que se apresenta assimétrica quando referida à correção ideal (R), é "deslocada" (para a esquerda) por 10º, o que produz uma distribuição mais equilibrada da curva C relativamente à R. Convém observar que a soma dos erros (diferenças entre S e R ou entre C e R) não se altera; ou seja, os espaços entre S e R ou entre C e R cobrem a mesma área, apenas de modo menos ou mais simétrico (respectivamente nos casos S e C).

 

 

Para uma acomodação de 1,125 D, sobraria um astigmatismo misto de +1,025 a -1,025 D nesses eixos. Todavia, se a cabeça for inclinada (C), o eixo da correção cilíndrica passa a coincidir com o valor desejado (cilindro negativo a 170º e ou, positivo a 80º), restando valores dióptricos de hipermetropia residual (R – C) de +1,25 D (a 80º e 260º) a +1,00 D (nos eixos de 170º e 350º). Com uma acomodação também de 1,125 D sobraria um astigmatismo misto de +0,125 D (a 80º e 260º) a -0,125 D (a 170º e 350º). Ou seja, um ganho de 0,90 D em cada um desses eixos, resultante do astigmatismo remanescente na condição sem a posição viciosa da cabeça (2,15 D - 0,10 D = 2,05 D) contra o que sobra com a posição viciosa de cabeça (1,25 D - 1,00 D = 0,25 D devida à hipocorreção cilíndrica relativamente à devida pela refratometria).

A grande variação entre os valores máximo e mínimo no caso da correção S e a pequena variação no caso da correção C, isto é, a correção de um astigmatismo (de 2,05 D a 0,25 D) traduz a preferência por esta última condição. Seria quase o mesmo que comparar qual lente um emétrope preferiria: uma cilíndrica de -2,00 D (equivalente esférico de -1,00 D) produzindo-lhe um astigmatismo hipermetrópico simples de +2,00 D ou uma esférica de -1,00 D (convertendo-o num hipermétrope simples de +1,00 D). A acomodação de 1,00 D produziria, para o caso de astigmatismo residual, o círculo interfocal na retina (mas sem corrigir a distorção astigmática) enquanto para a hipermetropia pura (esférica) induzida, uma correção absoluta seria obtida. A figura 6 ilustra claramente essas diferenças e suas variações.

 

 

São várias as causas de PVC(6) e, em oftalmologia, compensações de estrabismo, ou bloqueio de nistagmo são as mais freqüentes. No entanto, alterações mais simples como erros refracionais mal corrigidos também podem gerar PVC e, muitas vezes, passar despercebidos. Refratometria sob cicloplegia e teste de lentes são fundamentais para um diagnóstico preciso, devendo ser complementados pela ceratometria para se avaliar a posição do eixo do cilindro nos pacientes que não possibilitam a refratometria subjetiva, uma vez que a grande maioria dos grandes astigmatismos é de face anterior da córnea.

 

REFERÊNCIAS

1. Carvalho LEMR. Nistagmo. Arq Bras Oftalmol.1998;61(4):473-5.        

2. Souza-Dias C, Díaz JP. Estrabismo. São Paulo: Santos; 2002.        

3. Campos EC, Schiavi C, Bellusci C. Surgical management of anomalous head posture because of horizontal gaze palsy or acquired vertical nystagmus. Eye. 2003;17(5):587-92.        

4. Stevens DJ, Hertle RW. Relationships between visual acuity and anomalous head posture in patients with congenital nystagmus. J Pediatr Ophthalmol Strabismus. 2003;40(5):259-64.        

5. Jorge AAH. Viscosidade como fator frenador de rotações [tese]. Ribeirão Preto: Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo; 2003.        

6. Barcellos RB, Carvalho LEMR, Souza-Dias CR. Efeito da inclinação da cabeça sobre a acuidade visual de pacientes astigmatas corrigidos com óculos. Arq Bras Oftalmol. 1996;59(1):52-61.        

 

 

Endereço para correspondência
Prof. Dr. Harley Edson Amaral Bicas
Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto
Universidade de São Paulo (USP)
Av. dos Bandeirantes, 3900
Ribeirão Preto (SP) CEP 14049-900
E-mail: [email protected]

Recebido para publicação em 20.10.2004
Versão revisada recebida em 02.03.2005
Aprovação em 30.05.2005

 

 

Trabalho realizado no Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.
Nota Editorial: Depois de concluída a análise do artigo sob sigilo editorial e com a anuência do Dr. Ronaldo Boaventura Barcellos sobre a divulgação de seu nome como revisor, agradecemos sua participação neste processo.
*: Considera-se como valor dióptrico numa "inclinação" o que corresponde ao efeito dado pela posição dos eixos de lentes cilíndricas. Por exemplo, para a refratometria dada como +3,50 D sf Ç -6,00 D cil/170º (ou equivalentemente -2,50 D sf Ç +6,00 D cil/80º), os valores de maior e menor refração são respectivamente -2,50 D a 170º e +3,50 D a 80º, que podem ser obtidos por essas lentes cilíndricas. Os meridianos oculares correspondentes a esses defeitos ópticos são perpendiculares a tais eixos.


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