Nilson Lopes da Fonseca Junior1; Luis Paves1; Deise Mitsuko Nakanami1; Maria Teresa Seixas2; Paulo Góis Manso1
DOI: 10.1590/S0004-27492005000400026
RESUMO
O sarcoma granulocítico é tumor que freqüentemente aparece em pacientes portadores de leucemia mielóide aguda, podendo aparecer em diferentes regiões do corpo, incluindo a órbita. Nesta última localização, é mais freqüente em crianças e adultos jovens, com discreta predominância em pacientes do sexo masculino. Este é um caso de sarcoma granulocítico orbitário de evolução rápida, sem manifestação sistêmica associada em uma paciente de 33 anos de idade, o que o torna incomum. O surgimento do sarcoma granulocítico orbitário sem acometimento leucêmico pode ocorrer em cerca de 88% dos pacientes com acometimento orbitário. A maioria dos pacientes apresenta evidências hematológicas de comprometimento sistêmico em 2 meses após a manifestação orbitária. Neste relato de caso, a paciente não apresenta acometimento sistêmico, apesar da manifestação orbitária estar presente há 30 meses. Os principais diagnósticos diferenciais do sarcoma granulocítico orbitário são o linfoma, o rabdomiossarcoma e o neuroblastoma. O diagnóstico pode ser dificultado, principalmente nos casos sem acometimento sistêmico, nos quais os exames de imagem e as manifestações clínicas pouco diferem de outras doenças. Para o diagnóstico deve-se realizar uma biópsia da lesão orbitária para análise anatomopatológica e imuno-histoquímica. O tratamento nos casos de sarcoma granulocítico orbitário sem acometimento sistêmico não é padronizado. A hipótese diagnóstica de sarcoma granulocítico orbitário deve ser aventada em casos de pacientes com tumoração orbitária mesmo que não apresentem sinais ou sintomas sistêmicos e independentes da faixa etária.
Descritores: Leucemia mielóide; Neoplasias Orbitárias; Sarcoma, granulocítico; Diagnóstico diferencial; Tomografia computadorizada por raios X
ABSTRACT
Orbital granulocytic sarcoma is a localized tumor consisting of malignant cells of myeloid origin. This tumor may present in association with acute myelogenous leukemia. Granulocytic sarcoma may be found in a variety of locations throughout the body including the orbit and typically affects children and young adults. There is a slight male predominance in these cases. This is an uncommon case report of a 33-year-old Latin-American woman who was admitted to the Hospital for rapidly progressive orbital proptosis. There was no systemic manifestation of leukemia. The occurrence of orbital granulocytic sarcoma before the development of systemic leukemia in children and young adults is not uncommon and these cases frequently develop hematological evidence within 2 months after initial orbital disease. In this case report, there was no systemic manifestation of leukemia in the last 30 months, even in the presence of orbital tumors. Granulocytic sarcoma is most frequently confused with malignant lymphoma, rhabdomyosarcoma and neuroblastoma. The differential diagnosis of these cases can be challenging, particularly when there is no evidence of systemic leukemia, when imaging features are not sufficiently specific to distinguish granulocytic neoplasms from other tumors. To establish the diagnosis often a biopsy is required. The treatment in such cases (orbital granulocytic sarcoma) is not standardized. Orbital granulocytic sarcoma may be suspected in cases of orbital tumors even in the absence of systemic manifestations of leukemia at any age.
Keywords: Leukemia, myeloid; Orbital neoplasms; Sarcoma, granulocytic; Diagnosis, differential; Tomography, x-ray computed
INTRODUÇÃO
O sarcoma granulocítico, primeiramente descrito em 1811 por Allen Burns, é um pequeno tumor que aparece em pacientes portadores de leucemia mielóide aguda, e em alguns casos podendo preceder as manifestações sistêmicas da doença. Este tumor apresenta como característica clínica o aspecto esverdeado de sua superfície, daí o nome de cloroma. Também denominado de mieloblastoma, mielocitoma, cloroleucemia e sarcoma mielóide, ele se manifesta principalmente nos subtipos M4 e M5 da leucemia mielóide aguda (LMA)(1).
Pode aparecer junto com a doença sistêmica ou preceder as manifestações sistêmicas do sangue periférico ou da medula óssea, em alguns casos em até 1 ano(2).
O sarcoma granulocítico pode aparecer em diferentes regiões do corpo, incluindo a órbita. Nesta última localização, é mais freqüente em crianças e adultos jovens(3).
Este é um caso de apresentação incomum, em um paciente de 33 anos de idade com quadro de envolvimento orbitário e de evolução rápida, sem manifestação sistêmica associada.
RELATO DE CASO
N.S.L., 33 anos de idade, sexo feminino, branca, apresentando quadro oftalmológico de proptose progressiva no olho esquerdo acompanhada de dor nos últimos 2 meses antes de seu primeiro atendimento no Setor de Órbita do Departamento de Oftalmologia da Escola Paulista de Medicina - UNIFESP. A paciente referia um episódio semelhante há cerca de 12 meses, sendo tratada com corticoterapia oral com resultado satisfatório. No momento da consulta a paciente referia estar fazendo uso de dexametasona 8 mg via oral 2 vezes por dia há 1 mês sem melhora da sintomatologia. Negava antecedentes familiares e pessoais.
No exame oftalmológico apresentava acuidade visual com melhor correção de 20/20 no olho direito (OD) e 20/100 no olho esquerdo (OE). As pupilas eram fotorreagentes e normais. À motilidade extrínseca ocular apresentava limitação em adução, abdução, infralevoversão e infradextroversão. A medida da exoftalmometria utilizando-se o exoftalmômetro de Hertel foi de 15 mm em OD e 23 mm em OE. O olho direito mostrava-se sem alteração, porém o olho esquerdo apresentava edema palpebral 2+/4+, equimose, proptose axial, hiperemia conjuntival e quemose inferior (Figura 1). A tonometria de aplanação era de 18 mmHg no OD e 24 mmHg no OE e o exame de fundo de olho não revelou quaisquer alterações em ambos os olhos.
Diante da suspeita de oftalmopatia tireoidiana, a paciente foi investigada sistemicamente.
O exame clínico sistêmico não apresentou alterações, assim como os testes de função tireoidiana (T4, TSH). O exame de tomografia computadorizada de órbita (Figura 2) apresentava uma lesão intra e extraconal com densidade de partes moles hiperdensa com realce após contraste. A imagem por ressonância magnética de órbita apresentava uma lesão expansiva sólida com sinal intermediário em T1 e T2 (Figura 3) que ocupava a região súpero-lateral da órbita esquerda, extra e intraconal, deslocando medialmente a musculatura extrínseca adjacente e o nervo óptico esquerdo, determinando acentuada proptose. Houve realce após injeção endovenosa do contraste paramagnético (gadolíneo). Não havia definição da glândula lacrimal esquerda, que permitisse observar plano de clivagem com a lesão.
A lesão foi biopsiada através de uma orbitotomia lateral e a análise anatomopatológica revelou processo inflamatório crônico inespecífico. Neste momento, o esquema de corticoterapia via oral (dexametasona 8 mg, 2 vezes por dia) foi re-introduzida e mantida observação cuidadosa.
Duas semanas após, a paciente retornou com queixa de piora da dor ocular, fraqueza e fadiga. Houve piora da sua acuidade visual, assim como proptose severa, quemose e hiperemia conjuntival. Frente à piora do quadro, a paciente foi submetida à nova biópsia. O estudo anatomopatológico revelou quadro sugestivo de infiltração por sarcoma granulocítico (Figura 4A). A imuno-histoquímica foi realizada pelo método estrepto-avidina-biotina complexo/HRP e os antígenos pesquisados foram: LCA, PANB, PANT, mieloperoxidase e lisozima, revelando positividade para os antígenos lisozima e mieloperoxidase (Figura 4B e 4C). Com isso, o perfil imuno-histoquímico associado aos achados histológicos desta biópsia foram compatíveis com infiltração por sarcoma granulocítico.
A paciente foi submetida à investigação sistêmica, incluindo punção de medula, que não demonstrou doença medular. Iniciou quimioterapia sistêmica com Ara-c e Daunorubicin. Houve melhora importante do quadro com diminuição da proptose, dor e acuidade visual. Ao exame oftalmológico a paciente apresentava uma nébula corneana no olho esquerdo (Figura 5). Após 20 dias a paciente foi internada para nova sessão de quimioterapia. O exame de ressonância magnética de órbita após as sessões de quimioterapia apresentava acentuada redução das dimensões da lesão, notando-se apenas leve hipersinal em T2 e realce laminar adjacente à glândula lacrimal, possivelmente residual (seqüelas).
A paciente permanece em seguimento ambulatorial.
DISCUSSÃO
O sarcoma granulocítico tipicamente acomete crianças com uma média de idade de 7 anos(3-4), sendo o acometimento de pacientes na fase adulta mais raro(5).
Na literatura observa-se uma predominância desta doença em populações africanas, do leste asiático, sul-americanas, e outras com descendência espanhola(3-4,6-7), assim como uma discreta predominância em pacientes do sexo masculino(3,6,8).
O acometimento ocular é facilmente identificado através de sinais como: proptose, inflamação orbitária, aumento da glândula lacrimal, tumoração palpebral, iriana ou conjuntival, uveíte e massa escleral(3-4,6,9-13). Dentre estes sinais a proptose é o mais comum(3-4,6).
Neste trabalho relatamos um caso de sarcoma granulocítico em uma paciente de 33 anos de idade, brasileira, sem acometimento sistêmico. A paciente referia um episódio de proptose, sem qualquer outro sinal ou sintoma há cerca de 12 meses. Segundo alguns autores o surgimento do sarcoma granulocítico orbitário sem acometimento leucêmico sistêmico não é incomum podendo ocorrer em cerca de 88% dos pacientes com acometimento orbitário(3). Quanto ao subseqüente desenvolvimento da doença sistêmica, os mesmos autores observaram que em 2 meses após a manifestação orbitária a maioria dos pacientes apresentava evidências hematológicas de comprometimento sistêmico(3).
Outros autores relatam que cerca de 57% dos pacientes apresentaram sinais de envolvimento sistêmico da doença 5 meses após o diagnóstico da lesão orbitária(2).
Neste relato de caso, a paciente não apresenta acometimento sistêmico, apesar da manifestação orbitária estar presente há 20 meses. Alguns autores relatam intervalos prolongados entre o aparecimento da lesão orbitária e o acometimento sistêmico, variando de 1 a 16 anos(14-15).
Os principais diagnósticos diferenciais do sarcoma granulocítico orbitário são o linfoma, o rabdomiossarcoma e o neuroblastoma. O diagnóstico pode ser dificultado, principalmente nos casos sem acometimento sistêmico, onde os exames de imagem e as manifestações clínicas pouco se diferem de outras patologias(2).
Para o diagnóstico deve-se realizar uma biópsia da lesão orbitária para análise anátomo-patológica e imuno-histoquímica. Com o desenvolvimento do corante de Leder e da imunohistoquímica o patologista obteve um grande auxílio para o diagnóstico do sarcoma granulocítico orbitário(2). Cerca de 98% dos casos de sarcoma granulocítico apresentam positividade para o corante de Leder e para os antígenos lisozima na imuno-histoquímica(8).
Neste relato a imuno-histoquímica foi realizada revelando positividade para os antígenos LCA, mieloperoxidase e lisozima e os achados histológicos da biópsia foram compatíveis com infiltração por sarcoma granulocítico.
O tratamento nos casos de sarcoma granulocítico orbitário sem acometimento sistêmico não é padronizado(16). Alguns autores preferem a associação da quimioterapia com a radioterapia(17-18). Em casos de pacientes idosos sem acometimento sistêmico geralmente opta-se pela radioterapia, evitando quadros de mielossupressão que normalmente acompanham a quimioterapia(16).
O prognóstico nestes casos de sarcoma granulocítico orbitário sem acometimento sistêmico é indeterminado(16).
A hipótese diagnóstica de sarcoma granulocítico orbitário deve ser aventada em casos de pacientes com tumoração orbitária mesmo que não apresentem sinais ou sintomas sistêmicos e independente da faixa etária.
Esta paciente permanece em acompanhamento ambulatorial sem apresentar até o presente momento sinais de envolvimento sistêmico.
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Endereço para correspondência
Nilson Lopes da Fonseca Junior
Rua Antonio Canero, 27
São Paulo (SP) CEP 03190-140
E-mail: [email protected]
Recebido para publicação em 31.08.2004
Versão revisada recebida em 23.03.2005
Aprovação em 23.05.2005
Trabalho realizado no Departamento de Oftalmologia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
Nota Editorial: Após concluída a análise do artigo sob sigilo editorial e com a anuência do Dr. Mário Luiz Ribeiro Monteiro sobre a divulgação de seu nome como revisor, agradecemos sua participação neste processo.