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Artigo Original

Alterações oculares em crianças com toxoplasmose congênita precoce

Ocular manifestations in children with early Congenital Toxoplasmosis

Luciana Peixoto dos Santos1; Lênio Souza Alvarenga1; Magno Antônio Ferreira2

DOI: 10.1590/S0004-27491999000500008

RESUMO

Objetivos: Estudar as manifestações oculares em crianças com toxoplasmose congênita precoce e manifestações sistêmicas ao nascimento. Métodos: Foram estudados 50 prontuários médicos de crianças com diagnóstico clínico e sorológico de toxoplasmose congênita precoce, provenientes do Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia. Todas as crianças tinham apresentado manifestações sistêmicas ao nascimento e foram examinadas por oftalmologista. Resultados: Encontrou-se alteração ocular em 86% dos pacientes. A principal alteração foi a retinocoroidite, encontrada em 76% dos pacientes submetidos à oftalmoscopia indireta, sendo bilateral em 54% deles. Alterações neurológicas foram evidenciadas em 69% dos pacientes com retinocoroidite. Conclusão: Consideramos que alterações oculares são comuns em crianças com toxoplasmose congênita precoce.O exame oftalmológico é importante no auxílio diagnóstico e subseqüente estímulo visual precoce.

Descritores: Toxoplasmose; Retinocoroidite; Manifestações sistêmicas

ABSTRACT

Purpose: To describe the ocular findings in children with early toxoplasmosis and sistemic manifestation of the disease Methods: Fifty children with early congenital toxoplasmosis were included in this study and all data collected from their medical charts from the Hospital de Clínicas de Uberlândia. These children had their diagnosis based on clinical features and serological tests. All of them presented with systemic manifestations at birth and were examined by an ophthal-mologist. Results: Ocular manifestations were present in 86% of the patients. Retinochoroiditis was the most frequent lesion and was present in 76% of the patients that underwent indirect ophthalmoscopy, being bilateral in 54% of them. Neurolo-gical findings were seen in 69% of the patients with retino-choroiditis. Conclusion: The authors consider that ocular manifestations are common in children with early congenital toxoplasmosis showing systemic manifestations at birth. Ocular examination should be performed in all suspected or confirmed cases due to its important help not only in the diagnosis but also because it leads to early visual stimulation.

Keywords: Toxoplasmosis; Retinochoroiditis; Systemic alterations

INTRODUÇÃO

A toxoplasmose congênita é considerada importante causa mundial de morbidade e mortalidade infantis. Estima-se que nasçam anualmente no Brasil, cerca de 60.000 crianças com a doença, sendo portanto de alta magnitude 1. A forma clínica em que somente os olhos são afetados é a maneira mais comum de manifestação da doença, além de ser a causa mais freqüente de uveíte no Brasil e importante causa evitável de cegueira 1-4.

Classicamente, desde 1973 já relatado por Perkins 5 e outros 6, a doença ocular normalmente representa manifestação tardia de infecção congênita. A maioria dos casos são assintomáticas e estudos anteriores mostram uma escassez de lesões oculares ao nascimento e um aumento na prevalência das mesmas durante a adolescência 7, predominando em jovens entre a segunda e terceira década 1.

Das manifestações oculares descritas, a retinocoroidite é a mais comum, sendo que alguns a consideram o sinal mais freqüente da toxoplasmose congênita 1. Alguns estudos mostram uma maior frequência e gravidade de lesões oculares em crianças com toxoplasmose congênita severa ao nascimento, muitas vezes, associadas a uma severidade maior nas lesões de sistema nervoso 8.

O presente estudo se propõe a verificar a incidência de alterações oculares precoces em crianças portadoras de toxoplasmose congênita com manifestações sistêmicas ao nascimento.

 

MATERIAL E MÉTODO

Realizamos estudo retrospectivo, através de prontuário médico, de 50 crianças do Setor de Pediatria do Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia - HC-UFU, com diagnóstico clínico e sorológico, ao nascimento, de toxoplasmose congênita e que haviam sido submetidas à avaliação oftalmológica.

Foram consideradas portadoras de toxoplasmose congênita as crianças que preenchessem os seguintes requisitos 1:

¾ IgM específico positivo (Imunofluorescência Indireta ou Elisa)

¾ IgG específico positivo associado à quadro clínico suspeito e confirmado com nova sorologia após o 6º mês de vida

¾ IgG específico positivo após o 6º mês, com títulos estáveis ou maiores em relação ao nascimento.

Aquelas crianças que apresentaram outras infecções congênitas associadas, bem como aquelas sem manifestações clínicas ao nascimento foram exclusas do trabalho.

 

RESULTADOS

O estudo constou de 50 pacientes, sendo 27 (54%) do sexo feminino e 23 (46%) do sexo masculino. A média de idade por ocasião do primeiro exame oftalmológico foi de 3,2 meses, variando de 2 dias a 7 meses.

Dos 50 pacientes estudados, 43 (86%) apresentaram alguma manifestação oftalmológica. A fundoscopia foi realizada em 34 (68%) pacientes. Nos demais pacientes a avaliação do Fundo de Olho (F.O.) foi prejudicada devido à opacidade dos meios dióptricos.

A alteração ocular mais comum foi a retinocoroidite (RC), observada em 26 pacientes, o que representa 52% do total de casos ou 76% do número de fundoscopias realizadas. A lesão era bilateral em 14 pacientes (54%).

As outras manifestações mais encontradas foram: Estrabismo (32%), microftalmia (28%), nistagmo (28%), catarata (24%) e opacidade vítrea (12%) (gráfico 1). Outros achados menos freqüentes como palidez de papila (3 casos), sinéquias posteriores (3 casos) e descolamento de retina bilateral (1 caso) foram também observados.

 

 

Em relação à distribuição topográfica da retinocoroidite, em 21 pacientes (81%) se localizou no pólo posterior, dos quais 19 (90%), na região macular (gráfico 2). A mácula de ambos os olhos foi afetada em 11 pacientes, o que corresponde à 42% do total de casos de RC.

 

 

Dos pacientes com RC, 18 (69%) apresentaram manifestações neurológicas tais como calcificações cerebrais, microencefalia, convulsões, hidrocefalia e alterações liquóricas.Três pacientes sem retinocoroidite (37%) apresentavam alguma manifestação neurológica (gráficos 3 e 4).

 

 

 

Observamos uma associação entre estrabismo e nistagmo com RC. Dos pacientes com estrabismo (16 casos ), 87%(14) apresentaram RC; dos pacientes com nistagmo (14 casos), 78% (11) apresentaram essa lesão. Catarata não esteve associada a nenhum caso de estrabismo ou nistagmo.

 

DISCUSSÃO

Observamos que todos os nossos casos foram diagnosticados no primeiro ano de vida, provavelmente porque, nossa amostra, conste de pacientes que apresentaram manifestações clínicas ao nascimento. Outros estudos mostram uma variação de 35 - 70% de diagnóstico nesta faixa etária 1.

Não houve diferença significativa em relação ao sexo, reafirmando que a doença não tem afinidade especial por um ou outro sexo 1.

A RC foi a alteração ocular mais comum em nossa amostra, o que está de acordo com a literatura 1, 2, 8-12. Estudos que abrangem pacientes maiores de 1 ano apresentam freqüência maior de lesões retinianas, explicado pelo fato de que essas lesões seriam, provavelmente, de aparecimento tardio 5,7 e também pela maior facilidade de execução do exame de fundo de olho (FO) nessa faixa etária. Se considerarmos que 76% das crianças nas quais a fundoscopia foi viável apresentaram RC, teremos uma freqüência de lesões comparável às crianças com maior idade. Outros estudos que, como o nosso, abrangeram apenas pacientes com toxoplasmose congênita severa ao nascimento, encontraram 100% de casos de RC 8,11. Assim como na Tétrade de Sabin, é possível que as lesões de retinocoroidite sejam de aparecimento mais precoce naquelas crianças com manifestações clínicas sistêmicas ao nascimento, como resultado de uma reação generalizada do parasita contra o hospedeiro.

A RC foi bilateral em 54% dos casos. A maioria dos autores consideram as lesões típicas da toxoplasmose congênita como sendo bilaterais 1, 3, 10, 13.

Associação de RC com lesões do sistema nervoso central é relatada em muitos trabalhos 3, 8, 11. Em nosso estudo, 69% dos pacientes com lesão retiniana tinham manifestações neurológicas contra 37% nos pacientes sem retinocoroidite; essa diferença não foi estatisticamente significante, embora a análise estatística pelo teste de McNemar sugira uma correlação entre essas duas variáveis. Isso nos chama atenção para o fato de que, provavelmente, o T. gondii tenha um tropismo especial pelo sistema nervoso, já que a retina representa extensão do mesmo. Outros estudos mostraram que, um comprometimento ocular mais severo reflete comprometimento neurológico mais intenso, o que ocorreria em casos de exposição ao parasita em fases precoces da gestação 8.

Em relação à topografia da lesão, tivemos um alta incidência de lesões no pólo posterior (81%), dos quais 90% na região macular. O comprometimento macular bilateral, observado em 42% do total de casos de RC, representa um sério comprometimento da função visual nessas crianças. Sabe-se que a mácula é a localização preferencial da toxoplasmose congênita de manifestação precoce, por razões não esclarecidas 1, 13.

Dos outros achados mais encontrados, chamamos atenção em relação a uma provável associação de estrabismo e nistagmo com RC, o que ocorreria pela baixa acuidade visual causada pelas lesões retinianas centrais 1. O achado de 12 casos (24%) de catarata reforça mais ainda a importância de diagnóstico precoce nessas crianças, já que representa uma das principais causas recuperáveis de cegueira infantil 14. Outros estudos mostram até 40% de catarata associada à toxoplasmose congênita severa 11; estudo anterior 15, que avaliou a freqüência etiológica de catarata congênita, encontrou 2% de casos relacionados à toxoplasmose, porém esse estudo, diferente do nosso, não incluiu apenas casos graves da doença. A presença de nistagmo foi maior em crianças sem catarata, embora não tenha sido estatisticamente significante. Em nosso estudo, o não desenvolvimento de nistagmo nas crianças com catarata, provavelmente se deveu ao fato do exame ter sido realizado nos primeiros meses de vida onde se dá o período crítico para o desenvolvimento do reflexo de fixação 16. As demais alterações oculares encontradas são todas descritas 8, 10-12.

Diante das inúmeras alterações oftalmológicas possíveis e da facilidade do exame, consideramos a avaliação oftalmológica de fundamental importância no diagnóstico de toxoplasmose congênita. O exame oftalmológico deve ser feito de rotina em todas as crianças com quadro clínico suspeito dessa infecção e repetidos posteriormente, a fim de se evidenciar as lesões típicas dessa doença. Por ser uma doença de alta freqüência, causando lesões de caráter irreversível e com graves seqüelas visuais, reforçamos também a importância da estimulação visual precoce e prevenção da infecção congênita, o que contribuiria profundamente com a diminuição do número de casos evitáveis de cegueira em crianças e adultos jovens.

 

 


 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Apresentação em congresso : XII Congresso Brasileiro de Prevenção de Cegueira- São Paulo-SP-1996
Departamento de Oftalmologia da Universidade Federal de Uberlândia - UFU

(1) Graduação em medicina pela Universidade Federal de Uberlândia ¾ UFU; Residente em Oftalmologia do terceiro ano na Universidade Federal de São Paulo- UNIFESP.
(2) Graduação em medicina pela Universidade Federal de Uberlândia ¾ UFU; Residente em Oftalmologia do segundo ano na Universidade Federal de São Paulo-UNIFESP.
(3) Mestre em Oftalmologia pela Universidade Federal de São Paulo¾UNIFESP; Departamento de Oftalmologia da Universidade Federal de Uberlândia.

Endereço para correspondência: Luciana Peixoto dos Santos. Rua Canário, 988, apto 132. São Paulo (SP) CEP 04521-004. E-mail: [email protected]


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