Vanderson Glerian Dias1; Joran Seiko Aguni2; Ana Karina Teixeira Bezzon3
DOI: 10.1590/S0004-27492004000600019
RESUMO
O objetivo do artigo é relatar o caso de uma paciente de 43 anos com síndrome de Lyell relacionada à ingestão de imipramina e mostrar as alterações corneanas associadas a lesões dermatológicas típicas da síndrome de Lyell, que melhoraram após suspender o uso de imipramina e tratamento adequado. O oftalmologista deve estar apto para reconhecer, tratar e conduzir adequadamente os casos de síndrome de Lyell.
Descritores: Necrólise tóxica epidermal; Síndrome de Stevens-Johnson; Imipramina; Relato de caso
ABSTRACT
The purpose is to describe a case of a 43-year-old patient with Lyell syndrome due to imipramine and to show the corneal alterations and dermatological lesions typical for Lyell syndrome that healed after imipramine discontinuation and adequate treatment. The ophthalmologist must be able to recognize, treat and adequately follow Lyell syndrome cases.
Keywords: Toxic epidermal necrolysis; Stevens-Johnson syndrome; Imipramine; Case report
INTRODUÇÃO
O primeiro relato da síndrome de Stevens Johnson (SSJ) foi publicado em 1922 como uma doença inflamatória aguda que afeta, predominantemente, a pele e membranas mucosas, incluindo a superfície ocular(1). A síndrome inicia-se geralmente após o uso de algum medicamento ou infecções e apresenta etiopatogenia provavelmente autoimune(2). Provoca quadro febril, raramente evoluindo para óbito, sendo, na maioria dos casos, autolimitada após a retirada do agente causador.
A síndrome de Lyell (SL) ou necrólise epidérmica tóxica é a forma mais severa da SSJ, com 20-30% de mortalidade e envolvimento de 20% ou mais da epiderme, podendo haver perda em folhetos da derme(3).
O quadro clínico ocular é caracterizado por conjuntivite catarral bilateral, com secreção purulenta e membranas ou pseudomembranas, podendo estar associada a ceratites e úlceras de córnea(2,4-5). Após a fase inicial aproximadamente metade dos pacientes com SSJ sistêmica severa continuarão tendo problemas na superfície ocular que incluem: simbléfaro, entrópio, ectrópio, triquíase, olho seco, inflamação conjuntival persistente, infecções conjuntivais e opacidades corneanas(6-7).
Várias são as drogas que podem induzir a SSJ, dentre elas: sulfonamidas, barbituratos, alopurinol, antiinflamatórios, penicilina e mais recentemente, cefotaxime(8), citosina-arabinosídeo(9) e vancomicina(10).
A imipramina é um antidepressivo tricíclico que inibe a recaptação de noradrenalina e serotonina. Essa droga, usada em várias formas de depressão, pode provocar efeitos colaterais, tais como: tontura, sonolência, boca seca, cansaço, aumento de peso, sudorese, visão turva, hipotensão, dentre outras(11).
O objetivo deste trabalho é relatar um caso de síndrome de Lyell secundária à imipramina, já que não é do conhecimento dos autores outra publicação semelhante.
RELATO DO CASO
N.M.G.S., 43 anos, feminina, branca, natural de Osvaldo Cruz - SP e procedente de Presidente Prudente - SP. Deu entrada no pronto socorro do HU/UNOESTE com queixa de olho vermelho e lacrimejamento há uma semana, sendo que há 3 dias relatou início de lesões de pele em face, tronco e tórax.
Em relação aos antecedentes pessoais, relatou ter iniciado tratamento para depressão com imipramina há uma semana, devido ao insucesso do tratamento com fluoxetina. Negou o uso de outras drogas.
Ao exame clínico apresentava eritema difuso em toda área corporal, algumas lesões em placas, outras descamativas, além de úlceras em mucosa oral.
A paciente foi internada com diagnóstico de eritema multiforme (Síndrome de Stevens-Johnson) a qual se confirmou como sendo farmacodermia por imipramina. Evoluiu com perda da derme em folhetos em várias partes do corpo, principalmente nas extremidades superiores, além de muitas áreas necróticas (Figura 1), sendo, portanto considerada SL.
Devido à piora do quadro com aumento de hiperemia e dor ocular em ambos os olhos (AO), foi solicitada avaliação oftalmológica.
Ao exame oftalmológico foi diagnosticada ceratite punctata, com área de desepitelização corneana central (Figura 2).
Optou-se por tratá-la com curativo oclusivo com pomada a base de acetato de retinol (10.000 UI), aminoácidos (25 mg), metionina (5 mg) e cloranfenicol (5 mg) apresentando melhora significativa após 6 dias desse tratamento. A paciente recebeu alta hospitalar utilizando a mesma pomada 3 vezes ao dia e colírio à base de sulfato de condroitina (0,03 g) 6 vezes ao dia em AO. A paciente foi acompanhada ambulatorialmente, evoluindo com melhora importante das lesões oculares e recebendo alta oftalmológica após 3 semanas de tratamento.
DISCUSSÃO
Os primeiros casos da forma grave da SSJ foram descritos por Ruskin em 1948, mas somente Lyell, em 1956(12), nomeou de necrólise epidérmica tóxica (NET), denominação que permanece atualmente(13). A SL (ou NET) é caracterizada por lesões atípicas eritematosas, necróticas e amplo destacamento da epiderme simulando queimadura de 2º grau.
As lesões oculares podem ter uma resolução total ou um comportamento crônico, levando à fibrose subepitelial, simbléfaro, diminuição do fundo de saco conjuntival, comprometimento dos ductos das glândulas meibomianas, triquíase e ceratoconjuntivite seca. A formação de defeitos epiteliais, neovascularização, ulceração estromal com cicatrizes e queratinização são os principais fatores corneanos que podem levar à cegueira(14-15).
O oftalmologista deve estar atento às doenças dermatológicas associadas a condições oculares. A identificação do fator desencadeante, no caso de SL, é de importância capital no manejo e controle clínicos do paciente. A retirada imediata de medicações que causam a SL está muito bem documentada como principal ação para diminuir a mortalidade desses pacientes(16).
Mesmo após cessar o quadro agudo o paciente deverá ser acompanhado freqüentemente em intervalos apropriados, com distanciamento progressivo das consultas ambulatoriais, já que a probabilidade de acometimento ocular na fase crônica da SL não é pequena e nem mesmo isenta de complicações do que a fase aguda(15).
O uso de lubrificantes oculares é importante na maioria dos casos para prevenir lesões corneanas e ajudar na cicatrização, deve-se, porém, ter cuidado com os conservantes.
Ao invés do uso do recobrimento conjuntival, deve-se priorizar o uso da membrana amniótica em ceratopatias bolhosas, devido à excelente evolução proporcionada por esse tratamento, principalmente no que tange à dor ocular(17-18).
Como a síndrome de Lyell é considerada rara, após o seu diagnóstico deve-se descartar doenças infecciosas ou doenças depressoras do sistema imunológico, como a síndrome de imunodeficiência adquirida (SIDA), pois muitos trabalhos apontam-na como um dos principais fatores de risco para o desencadeamento da SL, seja pelo aumento do consumo de sulfonamidas e outras drogas, seja pela debilitação do sistema imune(19-21).
REFERÊNCIAS
1. Stevens AM, Johnson FC. A new eruptive fever associated with stomatitis and ophthalmia. Am J Dis Child. 1922;24(4):526-33.
2. Nogueira R, Franca M, Lobato MG, Belfort R, Souza CB, Gomes JAP. Qualidade de vida dos pacientes portadores de Síndrome de Stevens-Johnson. Arq Bras Oftalmol. 2003;66(1):67-70.
3. Palmon FE, Webster GF, Holland EJ. Erythema multiforme, Stevens-Johnson syndrome, and toxic epidermal necrolysis. In: Krachmer JJ, Mannis MJ, Holland EJ, editors. Cornea. St. Louis: Mosby-Year Book; 1997. p.835-46.
4. Stewart MG, Duncan NO, Franklin DJ, Friedman EM, Sulek M. Head and neck manifestations of erythema multiform in children. Otolaryngol Head Neck Surg. 1994;111(3 Pt 1):236-42.
5. Álvarez LMP, Salcedo MAS, Pacheco DLS. Síndrome de Stevens-Johnson. Presentación de 1 caso. Rev Cubana Pediatr. 2001;73(4):240-4.
6. Kawasaki S, Nishida K, Sotozono C, Quantock AJ, Kinoshita S. Conjunctival inflammation in the chronic phase of Stevens-Johnson syndrome. Br J Ophthalmol. 2000;84(10):1191-3.
7. Arstikaitis MJ. Ocular aftermath of Stevens-Johnson syndrome. Arch Ophthalmol. 1973;90(5):376-9.
8. Liberopoulos EN, Liamis GL, Elisaf MS. Possible cefotaxime-induced Stevens-Johnson syndrome. Ann Pharmacother. 2003;37(6):812-4.
9. Figueiredo MS, Yamamotto M, Kerbauy J. Necrólise epidérmica tóxica secundária ao uso da citosina-arabinosídeo em dose intermediária. Rev Ass Med Bras. 1998;44(1):53-5.
10. Rocha JL, Kondo W, Baptista MI da, Cunha CA, Martins LT. Uncommon vancomycin-induced side effects. Braz J Infect Dis. 2002;6(4):196-200.
11. Melo JMS. Dicionário de Especialidades Farmacêuticas (DEF 2000/2001). Rio de Janeiro: EPUC; 2000.
12. Lyell A. Toxic epidermal necrolysis: an eruption resembling scalding of the skin. Br J Dermatol. 1956;68(11):355-61.
13. Pérez OP, Yabor VA. Necrólisis epidérmica tóxica. Descripción de 1 caso. Rev Cubana Pediatr. 2001;73(4):245-8.
14. Neves RA, Foster CS. Ceratoconjuntivites cicatriciais. In: Belfort Jr R, Kara-José N. Córnea clinica - Cirúrgica. São Paulo: Roca; 1996. p.305.
15. Magina S, Lisboa C, Leal V, Palmares J, Mesquita-Guimaraes J. Dermatological and ophthalmological sequels in toxic epidermal necrolysis. Dermatology. 2003;207(1):33-6.
16. Garcia-Doval I, LeCleach L, Bocquet H, Otero XL, Roujeau JC. Toxic epidermal necrolysis and Stevens-Johnson syndrome: does early withdrawal causative drugs decrease the risk of death? Arch Dermatol. 2000;136(3):323-7.
17. John T, Foulks GN, John ME, Cheng K, Hu D. Amniotic membrane in the surgical management of acute toxic epidermal necrolysis. Ophthalmology. 2002; 109(2):351-60.
18. Fairbanks D, Vieira LA, Santos WD, Attie GC, Gomes JAP, Freitas D. Membrana amniótica no tratamento dos afinamentos corneais e esclerais. Arq Bras Oftalmol. 2003;66(1):71-6.
19. Moussala M, Beharcohen F, Dighiero P, Renard G. Lyell´s syndrome and its ophthalmologic manifestations in Cameroon. J Fr Ophtalmol. 2000;23(3): 229-37.
20. Paquet P, Paquet F, Al Saleh W, Reper P, Vanderkelen A, Pierard GE. Immunoregulatory effector cells in drug-induced toxic epidermal necrolysis. Am J Dermatopathol. 2000;22(5):413-7.
21. Udawat H, Khandelwal V, D´Souza P, Goyal RK. Toxic epidermal necrolysis secondary to carbamazepine in a pacient with human immunodeficiency virus infection. J Assoc Physicians India. 2001;49:918-9.
Endereço para correspondência
Vanderson Glerian Dias, Rua Guaporé, 432
Catanduva (SP) - CEP 15804-105
E-mail: [email protected]
Recebido para publicação em 30.09.2003
Versão revisada recebida em 29.06.2004
Aprovação em 09.08.2004
Trabalho realizado no Departamento de Oftalmologia do Hospital Universitário da Universidade do Oeste Paulista.
Nota Editorial: Pela análise deste trabalho e por sua anuência na divulgação desta nota, agradecemos à Dra. Zélia Maria da Silva Corrêa.
Arq Bras Oftalmol. 2004;67(6):943-5