João Baptista Nigro Santiago Malta1; Henry Cantor Bernal2; Antônio Murillo Ramalho3; Maria Auxiliadora Sibinelli2; José Vital Filho4
DOI: 10.1590/S0004-27492004000600018
RESUMO
O presente relato tem como objetivo apresentar um caso raro de síndrome do ápice orbital associado com herpes zoster oftálmico de prognóstico reservado em paciente HIV positivo que procurou o pronto-socorro com quadro clínico de lesões crostosas em hemiface esquerda, dolorosa, acompanhado de baixa acuidade visual, diminuição da sensibilidade corneal e oftalmoplegia completa do olho esquerdo. A síndrome do ápice orbital é entidade rara que se caracteriza por ptose, proptose, oftalmoplegia interna e externa (acometimento do II, III, IV e VI nervos cranianos), prejuízo funcional da primeira divisão do nervo trigêmeo (nervo oftálmico) e graus variados de diminuição da acuidade visual. O tratamento do herpes zoster oftálmico baseia-se no uso de antivirais sistêmicos, sendo que o prognóstico irá variar conforme o acometimento ocular.
Descritores: Oftalmoplegia; Blefaroptose; Exoftalmia; herpes zoster oftálmico; Síndrome; Úlcera da córnea; Relato de caso [Tipo de publicação]
ABSTRACT
To present a rare case of orbital apex syndrome associated with herpes zoster ophthalmicus of unfavorable prognosis in an HIV positive patient, who arrived at the Emergency Room with the following clinical history: left facial crust lesions, low visual acuity, ocular pain, low corneal sensitivity and complete ophthalmoplegia of the left eye. The orbital apex syndrome is a rare disorder which is characterized by ptosis, proptosis, internal and external ophthalmoplegia (involvement of the second, third, fourth and sixth cranial nerves), damage to the first division of the trigeminal (ophthalmic nerve), and varied degrees of visual acuity loss. The treatment of herpes zoster ophthalmicus is based on the use of systemic antiviral drugs and the prognosis will depend on ocular damage.
Keywords: Ophthalmoglegia; Blepharoptosis; Exophthalmos; herpes zoster ophthalmicus; Syndrome; Corneal ulcer; Case report [Publication type]
INTRODUÇÃO
A síndrome do ápice orbital (SAO) é uma entidade rara que pertence ao capítulo das síndromes de oftalmoplegia e caracteriza-se por ptose, proptose, oftalmoplegia interna e externa, prejuízo funcional da primeira divisão do nervo trigêmeo (nervo oftálmico) e graus variados de diminuição da acuidade visual(1-2). As principais causas de SAO incluem: processos inflamatórios orbitários externos e difusos, massas retro-orbitárias; bloqueio do sistema de drenagem orbital e idiopática(3).
O diagnóstico é clinico sendo estabelecido quando os pares cranianos (II, III, IV, V e VI) assim como a artéria oftálmica são afetados(1-2). A distinção clínica entre as lesões no ápice orbital e na fissura orbital superior é mais acadêmica do que pragmática. As lesões que envolvem esta área podem afetar uma ou ambas as estruturas com demarcação imprecisa entre elas e a extensão anterior do seio cavernoso(1). Os exames de imagem como tomografia computadorizada (TC) e ressonância nuclear magnética (RNM) podem auxiliar no diagnóstico da doença(1,4).
O envolvimento orbitário pelo herpes zoster oftálmico (HZO) é extremamente raro, e quando ocorre pode ser manifestado como vasculite extensa, processo hemorrágico, perineurite e processo inflamatório acometendo todo o conteúdo orbital incluindo músculos extra-oculares e nervo óptico(5). Neste trabalho relatamos um caso de SAO associado a HZO.
RELATO DO CASO
Paciente da raça branca, sexo feminino, 32 anos de idade, procurou o Pronto de Socorro do Departamento de Oftalmologia da Santa Casa de São Paulo dia 09/08/2002 com quadro de lesões de aspecto crostoso (rash cutâneo) na hemiface esquerda acometendo região nasal, frontal e maxilar que teve início havia 10 dias.
O quadro dermatológico era acompanhado de dor de forte intensidade, incapacitante, e há dois dias tinha notado baixa súbita da acuidade visual e paralisia dos músculos oculares extrínsecos (MOE).
No exame oftalmológico apresentava acuidade visual (AV) no olho direito (OD): 20/20 e no olho esquerdo (OE): sem percepção luminosa (SPL). Os MOE do OE estavam paralisados e observava-se discreta proptose, ptose, além de diminuição da sensibilidade corneal do mesmo olho.
O exame biomicroscópico do OE evidenciou hiperemia conjuntival +2/+4, ceratite epitelial puntata, reação celular em câmara anterior (CA) de +2/+4 e "flare" de +2/+4. A tonometria de aplanação foi de 16 mmHg no OD e 28 mmHg no OE. A fundoscopia evidenciou no OE vitreíte +3/+4, pólo posterior e periferia sem alterações.
As principais hipóteses diagnósticas foram: SAO, HZO e uveíte difusa hipertensiva.
Imediatamente a paciente foi internada e medicada com: aciclovir 500 mg intravenoso (IV) 8/8 h, dipirona 1 ampola IV 6/6 h, carbamazepina 400 mg via oral (VO) 4x/dia, prednisona 60 mg/dia VO, aciclovir tópico (pomada) 5x/dia, maleato de timolol colírio 1 gota OE 12/12 h, ciclopentolato 1% colírio 1 gota no OE 8/8h, sulfato de dexametasona 0,1% colírio 1 gota no OE 3/3 h.
A paciente apresentou melhora gradativa e importante do quadro dermatológico e álgico. Em relação ao quadro oftalmológico, a ceratouveíte e a hipertensão ocular foram controladas, porém não houve melhora da AV e nem da MOE.
A paciente recebeu alta hospitalar 5 dias após a internação com Aciclovir 4,0 g VO, carmabazepina 200 mg 4x/dia, sulfato de dexametasona 0,1% colírio 6x/dia e ciclopentolato 1% colírio 2x/dia e foram solicitados os seguintes exames: sorologia (ELISA) anti-HIV e tomografia computadorizada (TC) de órbita - cortes axial e coronal.
No primeiro retorno ambulatorial apresentava melhora importante do quadro externo, sem melhora da AV e da MOE, apresentava lagoftalmo no OE. No exame biomicroscópico observava-se leve reação de CA, além de vitreíte moderada. O exame de retina não apresentou alterações.
A ultra-sonografia do OE foi realizada e nenhuma alteração foi notada. O ELISA para HIV foi positivo nas duas amostras colhidas e o diagnóstico definitivo foi confirmado pelo Western Blot.
A TC mostrou discreto espessamento do nervo óptico esquerdo e dos tecidos moles ao nível da fissura orbital superior com intenso realce após o contraste iodado.
A medicação antiviral sistêmica foi mantida na dose de 4,0 g/dia e após dois meses a paciente evoluiu com quadro de úlcera corneal neurotrófica no OE. A conduta instituída foi a realização de tarsorrafia provisória.
Após quatro meses de acompanhamento, paciente evoluiu com melhora importante da MOE, manteve AV do início do quadro e apresentou estabilidade do quadro corneal, após tarsorrafia medial e lateral definitivas, com leucoma no local da ceratite, porém sem apresentar afinamento ou necrose de tecido.
COMENTÁRIOS
Kjoer, em 1945, descreveu uma síndrome constituída de oftalmoplegia com envolvimento do nervo óptico, neurite retrobulbar ou papiledema que poderia evoluir para atrofia. Esta foi denominada de síndrome do ápice orbital(4).
Estudos avaliando 39 casos de oftalmoplegia com envolvimento do nervo óptico demonstraram, em relação à sintomatologia, que a dor local acometia 82% dos pacientes, que a ptose (85%), que a lesão no III, IV e VI nervo estava presente em respectivamente 77%, 65% e 64%, que o nervo oftálmico era acometido em 49% das vezes e que o exoftalmo e o papiledema eram observados respectivamente em 54% e 18%(4).
O mesmo autor pesquisando a etiologia da SAO com auxílio da neuroimagem, neste grupo de pacientes, conclui que a causa da doença é inflamatória em 67% dos casos, neoplásica em 17%, idiopática em 8% e hemorrágica em 8%(4).
Nos indivíduos idosos e imunodeficientes pode ocorrer reativação do vírus varicela zoster (VZV) que está latente nos gânglios sensoriais. Porém quando o VZV acomete o ramo oftálmico do nervo trigêmeo dá origem ao HZO(6).
Apenas alguns casos de oftalmoplegia completa associada ao HZO foram descritos na literatura médica mundial nos últimos 30 anos(7).
A divisão oftálmica do V nervo craniano é afetada em 7 - 17,5% dos indivíduos com Herpes zoster e a intensidade do zoster oftálmico pode variar desde doença grave, ameaçando a vida e a visão, até doença de moderada gravidade, podendo passar desapercebida(5).
O envolvimento oftalmológico pelo HZO pode ser resultado de alterações inflamatórias, danos nervosos ou secundário a lesões dermatológicas. As alterações inflamatórias podem ocorrer na forma de ceratite (dendrítica, numular ou disciforme), vasculite, episclerite, esclerite, irite, papilite isquêmica ou neurite óptica(5).
No exame oftalmológico da paciente evidenciou-se ceratite epitelial, uveíte difusa, hipertensão ocular, além de acometimento da MOE e do nervo óptico. A pesquisa da sensibilidade corneal e da hemiface afetada pelo zoster comprovaram o acometimento do nervo oftálmico no paciente avaliado.
Uma recente revisão comparou a incidência de complicações oftalmológicas do zoster em diferentes séries e nenhum caso de complicação orbital foi citado do total de 1.550 pacientes(5).
Várias teorias foram propostas para esclarecer de que modo o HZO poderia causar a SAO. Edgerton sugere que o envolvimento do nervo oculomotor resulta da propagação contínua do processo inflamatório do nervo trigêmeo até o seio cavernoso ou fissura orbital superior(8). Garg et al propõe que o microinfarto dos nervos cranianos seria uma possível causa(9). Naumann et al concluíram em seu estudo que a neuropatia é decorrente de processo de vasculite oclusiva(10).
O HZO associado a oftalmoplegia completa tende a afetar indivíduos acima de 50 anos de idade (7), porém a paciente em questão apresentava 32 anos sendo o imunocomprometimento, causado pela síndrome da imunodeficiência adquirida (SIDA), o fato que melhor explica a doença ter acometido paciente tão jovem (11). O início da oftalmoplegia ocorre geralmente após uma a duas semanas do desenvolvimento do zoster cutâneo (7).
O acometimento no nervo óptico em paciente jovem, no caso relatado, é atribuído diretamente a imunodepressão causado pelo vírus HIV. Alguns autores descrevem os riscos que pacientes imunodeprimidos possuem de desenvolver reativação do vírus varicela-zoster em locais atípicos(12-13).
A ceratite neurotrófica acomete por volta de 50% dos indivíduos com HZO e são, em geral, graves e de difícil tratamento sendo que algumas delas evoluem para inflamações importantes com necrose, perda de tecido e perfuração (6).
Após dois meses do início do HZO e SAO, a paciente desenvolveu quadro de ceratite neurotrófica. Devido a pobre resposta ao tratamento clínico e ao lagoftalmo que a paciente apresentava, instituiu-se como conduta tarsorrafia provisória, porém a resposta no primeiro mês não foi favorável.
O tratamento da SAO visa combater a causa que levou ao quadro de oftalmoplegia. O tratamento preconizado para o HZO baseia-se no uso de antivirais sistêmico. Na fase aguda do processo e em indivíduos imunocomprometidos utiliza-se antivirais via intravenosa (aciclovir 5-10 mg/kg a cada 8 horas) entre 5 a 7 dias e a terapia via oral (4,0 g/dia) deve ser mantida por tempo indeterminado(6).
Os tratamentos propostos para SAO associado a HZO são controversos e os efeitos dos antivirais e dos corticoesteróides ainda não foram formalmente estudados(14).
Esse mesmo estudo, com 16 casos de oftalmoplegia completa associado a HZO, demonstrou que 9 casos apresenta vam melhora significativa do quadro em 2 meses e resolução quase completa em 18 meses(14).
Concluindo, embora o caso relatado seja pouco comum, é de suma importância o rápido diagnóstico, tratamento adequado e imediato, na tentativa de obter-se prognóstico mais favorável. Nos casos de apresentação atípica de HZO é necessário sempre avaliar a possibilidade de doenças que causem imunodeficiência, especialmente a SIDA.
REFERÊNCIAS
1. Beck RW, Smith CH. Orbital apex syndrome. In: Beck RW, Smith CH. Neuro-ophthalmology: a problem oriented approach. Boston: Little-Brown; 1988. p.216-8.
2. Bray WH, Giangiacomo J, Ide CH. Orbital apex syndrome. Surv Ophthalmol. 1987;32(2):136-40.
3. Rodrigues-Alves CA, Santo RM. Pseudotumor de órbita. In: Rodrigues-Alves CA. Neuroftalmologia. São Paulo: Roca; 2000. p.193-211.
4. Lenzi GL, Fieschi C. Superior orbital fissure syndrome. Review of 130 cases. Eur Neurol. 1977;16(1-6):23-30.
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6. Freitas D, Lima ALH. Infecções virais. In: Lima ALH, Dantas MCN, Alves MR. Manual do CBO - Doenças externas oculares e córnea. São Paulo: Cultura Médica; 1999. p.154-97.
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8. Edgerton AE. herpes zoster ophthalmicus: report of cases and review of literature. Arch Ophthalmol 1945;34:40-62.
9. Garg RK, Kar AM, Jain AK. herpes zoster ophthalmicus with complete external ophthalmoplegia. J Assoc Physicians India. 1992;40(7):496-7.
10. Naumann G, Gass JD, Font RL. Histopathology of herpes zoster ophthalmicus. Am J Ophthalmol. 1968;65(4):533-41.
11. Karbassi M, Raizman MB, Schuman JS. herpes zoster ophthalmicus. Surv Ophthalmol. 1992;36(6):395-410. Review.
12. Greven CM, Singh T, Stanton CA, Martin TJ. Optic chiasm, optic nerve, and retinal involvement secondary to varicella-zoster virus. Arch Ophthalmol. 2001; 119(4):608-10.
13. Litoff D, Catalano RA. herpes zoster optic neuritis in human immunodeficiency virus infection. Arch Ophthalmol. 1990;108(6):782-3.
14. Chang-Godinich A, Lee AG, Brazis PW, Liesegang TJ, Jones DB. Complete ophthalmoplegia after zoster ophthalmicus. J Neuroophthalmol. 1997;17(4): 262-5. Review.
Endereço para correspondência
João Baptista N. S. Malta
Av. Comendador Adibo Ares, 1590
São Paulo (SP) - CEP 05613-001
E-mail: [email protected]
Recebido para publicação em 26.05.2003
Versão revisada recebida em 05.07.2004
Aprovação em 19.07.2004
Trabalho realizado no Departamento de Oftalmologia da Irmandade Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.
Nota Editorial: Pela análise deste trabalho e por sua anuência na divulgação desta nota, agradecemos ao Dr. Roberto Abucham.