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Editorial

Injeção subconjuntival de soro autógeno no tratamento de queimadura ocular por álcali em coelhos

Subconjunctival injection of autogenous blood in the treatment of ocular alcali burn in rabbits

Marcela Colussi Cypel1; Denise Atique Goulard3; Fabiana Amorim de Lima3; Jonathan Clive Lake3; Eliane Uesugui3; Maria Cristina Nishiwaki-Dantas3; Paulo Elias Correa Dantas5

DOI: 10.1590/S0004-27492004000500020

RESUMO

OBJETIVO: Estudar a ação da injeção subconjuntival de soro autógeno na evolução das complicações, após queimadura ocular grave por álcali induzida experimentalmente em coelhos. MÉTODOS: Foram utilizados trinta olhos de coelhos da raça Nova Zelândia, divididos em dois grupos, de 15 coelhos cada, ambos submetidos à queimadura grave por álcali. Em 15 olhos (grupo tratado), efetuamos, imediatamente após a queimadura, injeção de soro autógeno subconjuntival. Os resultados foram avaliados e comparados logo após a queimadura e nos dias 1, 3, 7, 15 e 30 por meio de ectoscopia biomicroscopia ocular. RESULTADOS: O grupo tratado apresentou melhor resposta de reepitelização da córnea, na fase inicial do processo do que o grupo controle (grupo sem soro autógeno), diferença esta estaticamente significante, assim como resultado final com um menor número de complicações. CONCLUSÃO: Os resultados obtidos neste estudo experimental sugerem que soro autógeno pode ter efeito no processo de cicatrização dos olhos após queimadura alcalina, diminuindo complicações tardias e melhorando o prognóstico quanto à estabilidade do processo inflamatório cicatricial.

Descritores: Córnea; Álcalis; Queimaduras oculares; Injeções; Soluções oftálmicas; Cicatrização de feridas; Microscopia eletrônica; Coelhos

ABSTRACT

PURPOSE: To determine the activity of subconjunctival injection of autogenous serum in the treatment of ocular alkali burn induced experimentally in rabbits. METHODS: Thirty eyes of 30 New Zeland albino rabbits were divided into two groups of 15 and submitted to ocular alkali burn. One group (treated group) received immediately after the alkali burn a subconjunctival injection of autogenous serum. The results were compared and recorded immediately after the alkali burn and on days 1, 3, 7, 15, and 30 by external ocular examination and manual portable slit lamp. RESULTS: The treated group presented a better reepithelialization of the cornea than the control group, in the beginning of the process, with a statistically significant difference; and a final result with less complications, in the study group. CONCLUSION: The results obtained in this experimental study suggest that the autogenous serum may have a primary effect on the process of scarring of the eyes after ocular alkali burn, decreasing late complications and improving the prognosis related to the stability of the inflammatory scarring process.

Keywords: Cornea; Alkalies; Eye burns; Injections; Ophthalmic solutions; Wound healing; Microscopy; electron; Rabbits


 

 

INTRODUÇÃO

Queimaduras oculares são freqüentes e decorrem principalmente da manipulação inadequada de substâncias químicas. Evoluem comprometendo permanentemente a acuidade visual e a superfície ocular(1).

As queimaduras por álcali se encontram no grupo das urgências oftalmológicas. Seu pronto reconhecimento e adequado tratamento são vitais na evolução e controle das complicações associadas, sejam precoces ou tardias(1-2).

A literatura descreve várias formas de tratamento para queimadura ocular por álcali, tais como lubrificantes artificiais(1), inibidores da colagenase(1), lente de contato terapêutica(1), aplicação tópica de fibronectina(1), vitamina C e citrato(2), transplante de conjuntiva(1), recobrimento com membrana amniótica humana(3) e transplante de limbo(4).

A injeção subconjuntival de soro autógeno parece ser uma alternativa, embora pouco difundida em nosso meio, talvez pela dificuldade de acesso e pouca divulgação das línguas em que estes estudos foram publicados (pesquisa bibliográfica realizada encontrou somente textos em Russo, Tcheco, Chinês e Polonês)(5-7). Foi publicado um estudo(5) em que a aplicação de sangue autógeno subconjuntival, após queimadura ocular, levou a menos simbléfaro e leucomas cicatriciais da córnea. Em 1969(6), publicaram estudo com 348 olhos, dos quais 172 receberam injeção subconjuntival de sangue e mostraram melhor acuidade visual final que o grupo controle.

Em 1973(7), relataram 293 olhos submetidos à administração de sangue autógeno subconjuntival, como método terapêutico para queimaduras oculares químicas que apresentaram melhor acuidade visual.

O soro autógeno parece aumentar a regulação de Mucina-1 nas culturas de células epiteliais conjuntivais(8); talvez possua propriedade bactericida(2,9), fatores de crescimento, vitamina A(1) e citoquinas(8) que podem auxiliar a suprir a deficiência da lágrima e interferir na manutenção da superfície ocular(8).

Objetivamos estudar o efeito da ação da injeção subconjuntival de soro autógeno nas complicações após queimadura ocular por álcali, induzida experimentalmente em coelhos.

 

MÉTODOS

Desenho do estudo

Estudo experimental em coelhos, do tipo prospectivo, comparativo e duplo-cego.

Seleção dos animais

Foram utilizados 30 coelhos albinos, machos, da raça Nova Zelândia, pesando de 2 a 3 kg. Os animais foram divididos, por sorteio, em dois grupos de 15 coelhos cada (grupo tratado e grupo controle), mantidos em gaiolas apropriadas, com alimentação e hidratação ad libitum e controle veterinário constante. As recomendações para manuseio de animais de pesquisa da Unidade de Técnica Cirúrgica e Cirurgia Experimental (UTECE / Santa Casa / SP), do Comitê Brasileiro para Experimentos em Animais de Laboratório (COBEA) e da Association for Research and Vision in Ophthalmology (ARVO) foram seguidas.

O protocolo deste estudo foi aprovado sem restrições pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UTECE / Santa Casa / SP.

Modelo experimental de queimadura ocular por álcali

O modelo experimental realizado seguiu modelos já descritos(10-11), com modificação em relação à magnitude do disco de papel e à técnica da anestesia geral.

Provocamos queimadura ocular Grau III e IV (classificação de Huges, 1946 modificada por Ballen, 1964 e Roper-Hall, 1965)(12) no olho direito de todos os coelhos. Os animais foram submetidos à anestesia geral. Após instilação de uma gota de colírio de proparacaína 1% nos olhos direitos, queimadura ocular por álcali foi provocada, colocando-se um disco de papel de filtro nº 40 (Whatman), de 12 mm de diâmetro, abrangendo córnea e o limbo justacorneal, embebido em hidróxido de sódio (NaOH 4N) durante um minuto.

Imediatamente após a queimadura, o olho era lavado com 1000 cc de solução de NaCl 0,9%. Durante o mesmo ato anestésico, realizamos a coleta de 5 cc de sangue venoso periférico de 15 coelhos (coelhos de números 1 a 15, grupo de estudo). O sangue foi centrifugado a 2500 rpm durante 10 minutos, para obtenção do soro autógeno. Após a centrifugação, aspiramos 0,3 cc do soro e injetamos, com agulha de insulina, essa quantidade no espaço subconjuntival superior (12 horas) dos olhos do grupo de estudo. No grupo controle (15 olhos de 15 coelhos) injetamos 0,3 cc de solução salina balanceada no espaço subconjuntival superior.

Acompanhamento e exame dos animais

Os animais foram acompanhados por 30 dias, e avaliados imediatamente após a queimadura e nos dias 1, 3, 7, 15 e 30 subseqüentes a ela. Os exames foram realizados por observador independente e constaram de ectoscopia e biomicroscopia com lâmpada de fenda manual portátil (Heine-HSL100, USA), após a instilação de colírio anestésico e de fluoresceína sódica. Realizamos registro vídeo-fotográfico de cada uma das avaliações com Filmadora Digital Sony modelo PC1- Japão, seguido de preenchimento de questionário pré-formulado. Nas respostas com opção sim ou não (dados nominais), sim correspondeu a 1 ponto e não a 0 ponto; respostas com opção gradual (dados ordinais); o não correspondeu a 0 ponto, muito leve a 1 ponto, leve a 2 pontos, moderada a 3 pontos e grave a 4 pontos. Para as medidas horizontais e verticais, em milímetros, de desepitelização da córnea foram registrados os valores numéricos (dados contínuos).

Durante os primeiros 20 dias após a queimadura ocular (período de re-epitelização da córnea), ambos os grupos foram tratados com antibiótico tópico (ofloxacina 3%) instilado 3 vezes ao dia e lágrima artificial sem preservante, instilada 3 vezes ao dia.

Foram sacrificados, antes do final do estudo, os coelhos que apresentaram perfuração ocular ou afinamento grave, com iminência de perfuração ocular, durante a evolução do processo.

Os resultados foram submetidos a estudo estatístico. Para as respostas ao questionário referentes a sim e não (dados nominais), aplicamos o teste do Qui-quadrado e o teste de Fisher. Para as respostas ao questionário referentes ao escore (dados ordinais) e referentes a desepitelização da córnea (dados contínuos), aplicamos o teste não-paramétrico de Mann-Whitney, sendo aceito, nos dois casos, como diferença estatisticamente significante, valores de p < 0,05.

 

RESULTADOS

Hiperemia conjuntival apresentou diferença estatisticamente significante no dia 1, mais intensa no grupo que recebeu soro autógeno ( p= 0,012). Nos demais dias, não houve diferença estatisticamente significante entre os dois grupos.

A presença de secreção ocular não mostrou diferenças estatisticamente significativas entre os dois grupos em nenhum dos dias avaliados. Desde o dia 1 até o dia 30, encontrou-se secreção ocular purulenta ou mucóide em ambos os grupos com distribuição homogênea.

Não observamos diferença estatisticamente significante até o exame do dia 15 quanto ao simbléfaro e/ou sinéquia da pálpebra superior com a pálpebra inferior. No exame do dia 30, apesar de não haver diferença estatisticamente significante, o valor de p ficou próximo do nível de significância ( p= 0,074), tendo o grupo controle apresentado mais simbléfaro e/ou sinéquia das pálpebras.

O grupo tratado apresentou menor área de vascularização límbica imediatamente após a queimadura, diferença essa estatisticamente significante ( p= 0,02). No dia 1, essa diferença já não era significante ( p= 1,00). Nova mudança foi observada no dia 3, quando todos os olhos do grupo de estudo apresentavam o limbo vascularizado em alguma região, enquanto no grupo controle ainda havia olhos com limbo avascular. Esta diferença se mostrou estatisticamente significante ( p= 0,042). Nos dias 7, 15 e 30, não observamos diferença entre os grupos, pois ambos apresentavam alguma região do limbo vascularizada (Gráfico 1).

 

 

A conjuntivalização da córnea só se mostrou biomicroscopicamente perceptível a partir do 3º dia de exame, mas diferença estatisticamente significante ( p= 0,002) foi notada no 7º dia de exame, quando o grupo de estudo, na sua maioria, apresentou córnea conjuntivalizada. No 15º dia, apesar de haver diferença clínica considerável entre os grupos, não constatamos significância estatística. No dia 30, voltamos a encontrar maior conjuntivalização no grupo de estudo, diferença estatisticamente significante ( p= 0,009).

O grau de opacidade da córnea, computada como escore, não mostrou diferença estatística entre os grupos em nenhum dos dias da avaliação.

A tabela 1 mostra à desepitelização da córnea, imediatamente após a queimadura e nos dias 1, 3, 7, 15 e 30, acompanhados da média e do desvio padrão das lesões em cada dia. A cicatrização no sentido horizontal ficou próxima da significância no dia 1 ( p= 0,077) e significante no dia 3 ( p= 0,001). O grupo em estudo apresentou diminuição do tamanho da lesão no sentido horizontal mais rapidamente que o grupo controle apenas neste dia. Já nos outros dias, não encontramos diferença estatisticamente significante. A cicatrização no sentido vertical mostrou diferença estatisticamente significante nos dias 3 ( p= 0,006) e 7 ( p= 0,037) e novamente no grupo de estudo ela mostrou-se mais rápida. Quando analisada a área desepitelizada e em re-epitelização (medida horizontal x medida vertical), encontrou-se diferença estatisticamente significante no dia 3 ( p= 0,002), mostrando que, considerando-se a área da lesão, o grupo em estudo, num primeiro momento, re-epitelizou significativamente mais rápido que o grupo controle (Tabela 1).

Em relação à presença de afinamento da córnea, que se mostrou presente desde o exame do dia 15, só notamos diferença com significância estatística no dia 30 ( p= 0,09), quando o grupo controle apresentou maior afinamento da córnea do que o grupo de estudo (Gráfico 2).

 

 

Os coelhos nos 3 e 20 foram sacrificados no décimo nono dia após a queimadura, pois, evoluíram com afinamento corneal importante, seguido de perfuração ocular. O coelho nº1 foi sacrificado no vigésimo primeiro dia após queimadura, por possuir afinamento grave da córnea, em iminência de perfuração ocular.

 

DISCUSSÃO

A presença de maior intensidade de hiperemia conjuntival no grupo de coelhos que receberam soro autógeno por via subconjuntival, mostrando diferença estatisticamente significante em relação ao grupo controle, no exame do dia 1, poderia estar associada à possível ação irritante local do soro, já que nos dias subseqüentes não notamos diferença.

Com relação à re-epitelização da córnea, partimos de dois grupos com lesões semelhantes (em tamanho e grau de opacidade corneal), porém da fase inicial até apenas o sétimo dia de observação, notamos maior velocidade de cicatrização no grupo tratado. É possível que o soro autógeno e seus componentes atuem de maneira mais efetiva nos primeiros dias, em razão de sua maior quantidade e concentração no espaço subconjuntival. O soro sanguíneo apresenta substâncias como macroglobulinas e inibidores da colagenase I que, numa fase tardia de reparo após a queimadura grave, provêm dos vasos limbares ou dos vasos neoformados da córnea ajudando a diminuir a reação inflamatória e a necrose local(1). Em nosso estudo, ao injetarmos o soro autógeno subconjuntival, fornecemos tais substâncias numa fase mais precoce, na tentativa de manter este processo rapidamente controlado. Talvez, um número maior ou mais freqüente de aplicações de soro autógeno ou a associação de medidas terapêuticas (medicamentosas ou cirúrgicas), possam dar caráter adjuvante ao uso de soro autógeno no tratamento de queimaduras oculares agudas.

O comentário acima é reforçado pelo fato dos coelhos do grupo de estudo, no exame imediato, apresentarem 100% de limbo avascular e, já no dia 3, apresentarem número maior de limbos vascularizados. A melhora na fase inicial, mais rápida no grupo de estudo, pode ter sido responsável pela apresentação biomicroscópica com menos complicação na fase tardia do acompanhamento.

A comparação entre os dados encontrados neste estudo e os relatados por outros autores(1,5-6) torna-se difícil, uma vez que os trabalhos são escassos, de difícil compreensão, não são experimentais e não fornecem detalhes do método utilizado (aplicação de sangue ou soro, quantidade de aplicação e forma de aplicação), além de apresentarem critérios de avaliação divergentes entre si (acuidade visual e tempo de hospitalização). Em 1973(7), sugerem como hipóteses para a ação do sangue subconjuntival: efeito mecânico, afastando a conjuntiva lesada da esclera; infiltração rápida removendo substâncias nocivas e material tóxico; fornecimento de substâncias nutritivas para o tecido prejudicado e efeito fibrinolítico(2).

 

CONCLUSÃO

Os resultados obtidos sugerem que o soro autógeno pode ter efeito modulador no processo de cicatrização dos olhos após queimadura alcalina, diminuindo complicações tardias e melhorando o prognóstico da estabilidade do processo inflamatório cicatricial nas condições propostas.

 

REFERÊNCIAS

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12. Lima ALH, Nishiwaki-Dantas MC, Alves MR. Córnea. In: Lima ALH, Nishiwaki-Dantas MC, Alves MR. Doenças externas oculares. Rio de Janeiro: Cultura Médica; 1999. p.390.        

 

 

Endereço para correspondência
Marcela Colussi Cypel
Rua Simão Álvares 1015
São Paulo (SP) CEP 05417-030
E-mail: [email protected]

Recebido para publicação em 05.01.2004
Versão revisada recebida em 04.02.2004
Aprovação em 29.03.2004

 

 

Trabalho realizado na Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.
Os autores não têm interesse financeiro em nenhum dos instrumentos ou técnicas utilizados.
Este trabalho recebeu suporte financeiro para pesquisa da Fundação de Apoio a Pesquisa da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (FAP-SC).


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