Open Access Peer-Reviewed
Editorial

Influência do uso tópico de mitomicina C no processo de diferenciação do epitélio corneano de coelhos

Influence of the topic use of mitomycin C on the differentiation process of rabbit cornea epithelium

Nilo Holzchuh1; Ricardo Holzchuh4; Carlos Eduardo Leite Arieta5; Newton Kara-José7; Milton Ruiz Alves8

DOI: 10.1590/S0004-27492004000300018

RESUMO

OBJETIVO: Avaliar os efeitos do uso tópico da mitomicina C a 0,02%, no epitélio íntegro da córnea de coelhos, sob o ponto de vista clínico e imuno-histoquímico. MÉTODOS: A mitomicina C foi instilada, 4 vezes ao dia, por 14 dias, nos olhos de 28 coelhos, em superfície ocular íntegra. A superfície ocular foi avaliada por exames biomicroscópicos seriados, durante os dias de instilação da droga. Os animais foram sacrificados no 15º, 50º e 100º dia de experimento. O exame imuno-histoquímico do epitélio corneano foi realizado pelo emprego dos anticorpos monoclonais (AE1 e AE5) que reagem com as citoceratinas do epitélio da córnea. RESULTADOS: O uso de mitomicina C desencadeou discreta hiperemia conjuntival após o terceiro dia de instilação, desaparecendo 7 dias após a suspensão da droga. Não apresentou outro sinal clínico detectável na biomicroscopia. Não desencadeou alterações histopatológicas no epitélio corneano, observando-se a continuidade do epitélio, as células epiteliais se apresentaram dispostas de maneira ordenada, com número de camadas obedecendo à maturação normal e ausência de atipia celular. O uso da mitomicina C a 0,02%, não influenciou no padrão de diferenciação da célula epitelial da córnea. CONCLUSÃO: Os resultados desta investigação demonstraram baixo potencial tóxico do uso da mitomicina C, em superfície ocular íntegra de coelhos, na dosagem e concentração utilizadas.

Descritores: Mitomicina C; Mitomicina; Epitélio da córnea; Diferenciação celular; Soluções oftálmicas; Coelhos

ABSTRACT

PURPOSE: To evaluate the effects of mitomycin C eye drops (0.2 mg/ml) on the corneal epithelium of rabbits. The changes in clinical examination, histopathologic and immunohistochemical analysis were investigated. METHODS: Mitomycin C and distilled water (controls) were instilled 4 times daily for 14 consecutive days in the eyes with intact ocular surface. The ocular surface was evaluated by slit-lamp examination, during the days of the drug instillation. The animals were sacrificed on the 15th, 50th and 100th day of the experiment. The histopathologic analysis of the corneal epithelium was complemented by immunohistochemical studies using monoclonal antibodies to cytokeratins (AE1 and AE5). RESULTS: During the use of mitomycin C eye drops mild conjunctival hiperemia was detected. It disappeared 7 days after the drug was discontinued. There was no other clinical sign by slit-lamp examination. No histopathologic alterations in the corneal epithelium were detected, epithelium continuity was observed as well as maturation and presence of atypical cells. The use of 0.02% mitomycin C not influence the differentiation pattern of the corneal epithelial cell. CONCLUSION: The results of this investigation, in conditions of the study, showed that 0.02% mitomycin C, instilled 4 times daily for 14 consecutive days, showed a low toxic potential regarding the intact ocular surface.

Keywords: Mitomycin C; Mitomycin C; Epithelium, corneal; Cell differentiation; Ophthalmic solutions; Rabbits


 

 

INTRODUÇÃO

A fisiologia da renovação da célula epitelial corneal constitui área de ativa investigação. O epitélio da córnea mantém sua população celular em equilíbrio dinâmico entre perda e renovação, tem capacidade de auto-renovação rápida e possui um reservatório de células conhecidas como células germinativas, semelhante a outros órgãos que possuem esse tipo de equilíbrio(1). Nas situações em que há necessidade de regeneração tecidual, as células germinativas, entram em mitose, originando uma célula-filha, que permanece como célula germinativa, garantindo a manutenção das mesmas, e outra destinada a dividir-se e diferenciar-se na célula epitelial da córnea(1-3).

Quando o epitélio da córnea é lesado por trauma ou toxicidade medicamentosa, a reparação desenvolve-se rapidamente para restabelecer a sua continuidade(4). Na deficiência de células germinativas podem ocorrer dificuldades de epitelização, defeitos epiteliais persistentes, ou erosão recorrente(4).

O estudo do efeito da Mitomicina C nas células germinativas do limbo, depois da realização de um defeito epitelial na córnea de coelhos, foi possível identificar interferência na proliferação e diferenciação destas células após 3 meses de uso da droga(5).

Com a popularização do uso tópico de MMC no tratamento de diversas afecções da superfície ocular, impõe-se avaliar o potencial iatrogênico de dano da droga nas células germinativas límbicas corneanas e no seu processo de diferenciação celular. Este estudo teve por objetivo avaliar efeitos desencadeados pelo uso da MMC a 0,02% na superfície córneo-conjuntival de coelhos, sob o ponto de vista clínico e imuno–histoquímico.

 

MÉTODOS

Este estudo contou com o apoio do Laboratório de Investigação Médica (LIM 33) da Clínica Oftalmológica do HCFMUSP, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP, do Laboratório de Investigação da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo e Laboratório de Anatomia Patológica da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP.Todos os procedimentos aos quais os animais foram submetidos tiveram a aprovação prévia dos Conselhos de Ética das Instituições envolvidas.

Utilizaram-se 28 coelhos da raça Califórnia, espécie, apresentando peso médio de 2.751,07g ± 423,10g. Os animais foram aleatoriamente divididos em 4 lotes (lotes A e B com 6 animais e C e D com 8 animais).

Os olhos direitos dos animais foram medicados com água destilada (olhos-controle), 2 gotas, 4 vezes ao dia, durante 14 dias (animais do lote A receberam água destilada em ambos os olhos) e os olhos esquerdos medicados com colírio de MMC a 0,02% (olhos tratados), na dosagem de 2 gotas, 4 vezes ao dia, por 14 dias.

Os animais dos lotes A e B foram sacrificados no 15º dia. Noventa e seis horas antes do sacrifício dos animais dos lotes C e D, realizou-se um defeito epitelial central de 8,0 mm em 4 olhos de animais de cada um dos grupos com o objetivo de estimular o processo de proliferação celular. As córneas foram retiradas e transferidas para frascos individuais contendo álcool etílico a 95% e submetidas a estudo imuno-histoquímico, pela reação dos anticorpos AE1 e AE5 com as citoceratinas do epitélio da córnea e reveladas pelo método ABC (complexo redutor-estreptovidina e biotina peroxidase revelada).

Durante o experimento os animais foram submetidos a exame ocular realizado em lâmpada de fenda, diariamente, antes e após a instilação de colírio de fluoresceína sódica a 2%, durante os 14 dias de instilação da MMC e água destilada. Foram examinadas as margens das pálpebras, conjuntiva e córnea, para avaliação de possíveis efeitos tóxicos da droga. A avaliação da presença de alteração do epitélio, bem como sua integridade, foi feita anotando-se as dimensões, número e formas de ulcerações quando presentes. Também foram avaliados possíveis alterações estromais e processos de neovascularização.

 

RESULTADOS

Não foram observadas blefarites, blefaro-conjuntivites, conjuntivites ou ceratites nos animais medicados com água destilada ou mitomicina C. Hiperemia conjuntival foi verificada a partir do 3º dia nos olhos tratados com mitomicina C. A hiperemia tornou-se mais intensa em alguns animais do que em outros, intensificando-se na 2ª semana de uso da droga, desaparecendo com a suspensão da droga.

No estudo histopatológico dos olhos controle e dos olhos medicados com mitomicina C, observou-se córnea com células epiteliais ordenadamente dispostas, com as camadas obedecendo à maturação normal; continuidade da camada epitelial normal, ausência de edema e de infiltrado inflamatório.

Na análise do padrão de diferenciação das células epiteliais da região límbica e central da córnea, verificou-se que todas as células do limbo reagiram com o anticorpo AE1 em todos os lotes avaliados. Também se observou que todas as células do epitélio da córnea reagiram com o anticorpo AE5 em todos os animais dos lotes estudados (Quadro 1).

 

DISCUSSÃO

A partir de relatos da literatura enfatizando que estudos experimentais feitos com diferentes concentrações de MMC e 5-fluorouracil colocadas por 5 a 15 minutos na superfície ocular íntegra de coelhos, não provocaram alterações epiteliais detectáveis por avaliações biomicroscópicas(6) e, que a administração de baixas concentrações de MMC não afetaram a função básica do epitélio corneano normal(7), resolveu-se investigar os efeitos da MMC a 0,02%, instilada 2 gotas, 4 vezes ao dia, durante 14 dias, na superfície íntegra do epitélio da córnea de coelhos.

Nos primeiros dias de instilação do colírio de MMC a 0,02%, não se notou qualquer alteração clínica macroscópica e nem biomicroscópica no olho esquerdo dos animais dos lotes B,C e D. A partir do 4º dia foi observada presença de hiperemia conjuntival, nos olhos tratados com MMC a 0,02%, que aumentou nos dias subseqüentes, persistindo até o 21º dia, ou seja, uma semana após o término da instilação do colírio. Nesta data, os olhos já não apresentavam reação. A hiperemia variou de leve a moderada em todos os animais, não chegando a comprometer seu comportamento. Nos olhos medicados com água destilada, (ambos os olhos dos animais do lote A e no olho direito dos lotes B,C e D), não foi observada nenhuma reação clínica ou qualquer alteração ao exame na lâmpada de fenda.

Isto está em concordância com os achados na literatura que observaram presença discreta de hiperemia conjuntival durante a instilação de MMC a 0,02%, desaparecendo após suspensão da droga(7-8).

Não foram observadas blefarite, bléfaro-conjuntivite, conjuntivite ou ceratite, em nenhum período do experimento.

No estudo histopatológico das córneas obtidas dos olhos controle e dos olhos medicados com MMC, não foram identificadas alterações do epitélio corneano. As córneas examinadas apresentavam-se com células epiteliais ordenadamente dispostas, as camadas obedecendo à maturação normal, sem solução de continuidade. Ausência de edema e infiltrado inflamatório.

O epitélio límbico apresenta a mais alta taxa mitótica do epitélio corneano(9). Muitos dos mais potentes agentes citotóxicos atuam em fases específicas do ciclo celular e, portanto, têm atividade apenas contra células que estão em processo de divisão(10). Como a MMC provavelmente induz maior dano às células com intensa atividade proliferativa, a droga atuaria especificamente nos processos de síntese do DNA e funcionamento do fuso mitótico das células germinativas presentes no limbo corneano. Ainda não estão estabelecidas as doses mínimas eficazes da droga nos diversos usos oftalmológicos e nem as concentrações que podem causar lesões irreversíveis, principalmente nestas células com maior capacidade proliferativa.

Os resultados observados in vivo indicaram que a MMC inibe a proliferação das células epiteliais da córnea e este efeito inibitório é dependente da dose utilizada, sendo que os limites da dose variam de 0,0016% a 0,2% e a DL50 foi estimada ser 0,06%. A confirmação destas informações seguramente contribuiria para diminuir o número de complicações relacionadas à droga(6).

O epitélio corneano tem capacidade de auto-regeneração rápida. Essa peculiaridade se deve às células germinativas localizadas no limbo(1). Como a MMC induziu alterações morfométricas significativas no epitélio corneano, inclusive no limbo(11), justificou-se a realização de estudo para avaliação do padrão de diferenciação das células epiteliais da córnea, através da análise imuno-histoquímica.

Os resultados obtidos das reações dos anticorpos monoclonais AE1 e AE5 com as expressões de citoceratinas do epitélio corneano de coelhos, nas regiões do limbo e central, não revelaram alterações no padrão de diferenciação celular com uso tópico de MMC a 0,02%, em superfície ocular íntegra (Quadro 1) - o que coincide com os achados na literatura(12).

Foi demonstrado que 4 dias após a realização de defeito no epitélio superficial da córnea, existia reparação da área danificada e alta taxa de mitose(13). Baseado nestes achados resolveu-se pesquisar qual o resultado que se obteria danificando a superfície do epitélio da córnea, previamente submetido ao uso tópico de MMC a 0,02%, 2 gotas, 4 vezes ao dia, durante 14 dias, com intuito de poder estimular a diferenciação das células germinativas límbicas. Pela adoção desse modelo experimental nesta pesquisa, não se verificou influência da MMC na diferenciação do epitélio corneano.

 

 

 

 

A reparação do defeito epitelial da córnea também não foi influenciada pelo uso prévio da droga(14). Após 3 meses do uso tópico da droga, no defeito epitelial superficial, foi possível identificar interferência na proliferação das células e no processo de diferenciação do epitélio da córnea de coelhos(5).

Nesse estudo não foi verificada complicação atribuída ao uso da MMC a 0,02%, 2 vezes ao dia, durante 14 dias e não são relatadas complicações após injeções subconjuntivais de MMC a 0,02%, na dose de 0,25 ml, em ambas conjuntivas bulbares superior e inferior para o tratamento de penfigóide ocular cicatricial(15). Eles atribuem o fato de não verificarem presença de complicações após o uso da MMC, como ocorre nas cirurgias filtrantes de glaucoma e de pterígio, provavelmente devido à preservação de epitélio intacto e ao fato de as injeções serem dentro do espaço subconjuntival. A exposição da superfície do epitélio a MMC é mínima.

 

CONCLUSÃO

O uso tópico da MMC a 0,02% em superfície ocular íntegra de coelhos, nas condições deste estudo, não influenciou no padrão de diferenciação da célula epitelial da córnea. Baseado nos achados da literatura e apesar de todas as limitações ao uso da MMC, este estudo sugere que a MMC pode ser um excelente auxiliar na terapia dos diferentes campos da área oftalmológica, necessitando investigações adicionais.

 

REFERÊNCIAS

1. Thoft RA, Friend J. The X, Y, Z hypothesis of corneal epithelial maintenance. Invest. Ophthalmol Vis Sci1983;24:1442-3.        

2. Schermer A, Galvin S, Sun TT. Differentiation-related expression of a major 64K corneal keratin in vivo and in culture suggests limbal location of corneal epithelial stem cells. J Cell Biol 1986;103:49-62.        

3. Tseng SCG. Concept and application of limbal stem cells. Eye1989;3(Pt2):141-57.        

4. Dua HS, Azuara-Blanco A. Limbal stem cells of the corneal epithelium Surv Ophthalmol 2000;44:415-25.        

5. Jabbur NS, Blair SD, Rubinfeld RS, Zieske JD, Foster CS. The effect of mitomycin C on corneal limbal stem cells. Invest Ophthalmol Vis Sci 1994;35:1797.        

6. Ando H, Ido T, Kawai Y, Yamamoto T, Kitazawa Y. Inhibition of corneal epithelial wound healing. A comparative study of mitomycin C and 5-fluorouracil. Ophthalmology 1992;99:1809-14.        

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8. Holzchuh N, Alves MR, Santo RM, Matayoshi S, Kara-José N. Efeitos do uso do colírio de mitomicina C na superfície ocular de coelhos. Rev Med (São Paulo) 1997;76:303-6.        

9. Ebato B, Friend J, Thoft R. Comparison of limbal and peripheral corneal epithelium in tissue culture. Invest Ophthalmol Vis Sci 1988;29:1533-7.        

10. Calabresi P, Parks Jr. RE. Agentes antiproliferativos e drogas usadas na imunossupressão. In: Gilman AG, Goodman LS, Rall TW, Murad F, editors. Goodman e Gilman: as bases farmacológicas da terapêutica. 7ed., Rio de Janeiro, Guanabara Koogan;1987. p.817-56.        

11. Alves MR, Saldiva PHN, Lemos M, Kara-José N. Efeitos do uso tópico da mitomicina C no epitélio corneano de coelhas. Análise histopatológica pela morfometria. Arq Bras Oftalmol 1996;59:431-7.        

12. Kiritoshi A, Sundar RA, Thoft RA. Differentiation in cultured limbal epithelium as defined by keratin expression. Invest Ophthalmol Vis Sci 1991;32:3073-7.        

13. Shapiro MS, Thoft RA, Friend J, Parrish RK, Gressel MG. 5-fluorouracil toxicity to the ocular surface epithelium. Invest Ophthalmol Vis Sci 1985;26: 580-3.        

14. Mattar DB, Alves MR, Silva MHT, Kara-José N. Estudo comparativo da ação do tiotepa e da mitomicina C na reparação do epitélio corneano, em coelhas. Arq Bras Oftalmol 1994;57:270-3.        

15. Donnenfeld EC, Perry HD, Wallerstein A, Caronia RM, Kanellopoulos AJ, Sforja PD, et al. Subconjunctival mitomycin C for the treatment of ocular cicatricial pemphigoid. Ophthalmology 1999;106:72-9.        

 

 

Endereço para correspondência
Nilo Holzchuh Av. Pacaembu, 1358
São Paulo (SP) - CEP 01234-000
E-mail: [email protected]

Recebido para publicação em 15.07.2003
Versão revisada recebida em 10.03.2004
Aprovação em 18.03.2004

 

 

Nota Editorial: Pela análise deste trabalho e por sua anuência na divulgação desta nota, agradecemos ao Dr. Leiria de Andrade Neto.


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