Murilo Barreto Souza1; Vivian Onoda Tomikawa1; Bráulio Folco Telles de Oliveira2; Mariza Polati3
DOI: 10.1590/S0004-27492004000300017
RESUMO
OBJETIVO: Desenvolver uma rede neural artificial para planejar a estratégia cirúrgica em pacientes portadores de estrabismo sensorial, com desvio horizontal. MÉTODOS: Foi realizado estudo retrospectivo envolvendo 95 pacientes portadores de estrabismo sensorial, atendidos no Ambulatório de Motilidade Ocular Extrínseca do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Foi construída uma rede neural artificial utilizando-se o Java Neural Network 1.1. Foram utilizados 68 pacientes para treinamento e validação da rede e 27 para testar o seu funcionamento. RESULTADOS: Dos 68 pacientes utilizados no treinamento da rede, 37 apresentavam exotropia e 31 esotropia. O método utilizado para treinamento da rede foi o "backpropagation". A taxa de aprendizado utilizada foi de 0,6, e a taxa de tolerância de erro 0,05. Dos 27 pacientes utilizados para avaliação da eficácia da rede, 18 apresentavam exotropia, e 9 esotropia. A eficácia da rede foi avaliada pela média da diferença entre os resultados fornecidos pela rede, e as indicações originais. Nos pacientes com exotropia o erro médio foi de 0,4 mm (±0,4), para o retrocesso do músculo reto lateral, e de 0,3 mm (±0,3), para a ressecção do músculo reto medial. Nas esotropias, o erro médio foi de 0,2 mm (±0,2), para o retrocesso do músculo reto medial e de 0,5 mm (±0,3), para ressecção do músculo reto lateral. CONCLUSÃO: A rede neural artificial, por sua característica de simular o sistema nervoso central biológico, e sua capacidade de realizar tarefas cognitivas, é opção viável para auxiliar no planejamento cirúrgico da cor-reção do estrabismo.
Descritores: Estrabismo; Procedimentos cirúrgicos operatórios; Esotropia; Exotropia; Rede nervosa
ABSTRACT
PURPOSE: To develop a neural network model for planning of the surgical strategy of patients with sensorial strabismus. METHODS: In this retrospective study, medical records of 95 patients with sensorial strabismus were reviewed. All patients were seen at the Strabismus Sector of the Hospital das Clínicas of the University of São Paulo. The neural network was designed containing 3 layers. Sixty-eight patients were used in the training and validation set, and 27 in the test set. RESULTS: In the 68 patients used in the training and validation set, 37 had exotropia, and 31 esotropia. The backpropagation approach was used for training the neural network. A learning rate of 0.6, and a tolerance error of 0.05 were used. In the 27 patients used in the test set, 18 had exotropia, and 9 had esotropia. The efficacy of the neural network was analyzed using the average of the difference between the indication supplied by the network and the original indication. In patients with exotropia, the average error was 0.4 mm (±0.4), for recession of the lateral rectus muscle, and 0.3 mm (±0.3), for the resection of the medial rectus muscle. In the esotropia group, the average error was 0.2 mm (±0.2) for the recession of the medial rectus muscle, and 0.5 mm (±0.3) for resection of the lateral rectus muscle. CONCLUSION: As the artificial neural network can simulate a biological central nervous system, and is able to carry out cognitive tasks, it can be a viable option to help the surgical planning for strabismus correction.
Keywords: Strabismus; Surgical procedures, operative; Esotropia; Exotropia; Nerve Net
INTRODUÇÃO
Uma das questões mais difíceis no tratamento do estrabismo consiste no planejamento da estratégia cirúrgica. Além do conhecimento científico, a experiência do cirurgião tem participação fundamental na decisão desta etapa, devido, em parte, à grande variabilidade observada em situações clínicas aparentemente semelhantes(1).
Recentemente, a inteligência artificial vem sendo utilizada como uma ferramenta de auxílio diagnóstico na área médica. Como exemplo podemos citar os programas para interpretação de eletrocardiogramas, que atualmente apresentam performance comparável à de um cardiologista(2). A rede neural artificial (RNA), uma forma de inteligência artificial, consiste na simulação, através de "software" ou "hardware", de alguns aspectos do sistema nervoso biológico, na tentativa de permitir a realização de tarefas cognitivas de forma mais eficaz do que as obtidas através do processamento serial(3). A RNA é constituída por uma série de unidades básicas de processamento, distribuídas em diferentes camadas, estando cada uma dessas unidades conectada às unidades da camada subseqüente (Figura 1). A camada inicial consiste nas variáveis envolvidas no problema e são definidas pelo investigador. A camada final corresponde às respostas a serem apresentadas pela rede. Cada unidade localizada além da camada inicial recebe uma série de dados das unidades da camada anterior e, após a interação destes dados, transfere o resultado para as unidades da camada subseqüente. Este processo é repetido até que a última camada, ou seja, a resposta final seja alcançada(3). Durante o processo de treinamento, as interações entre as unidades são modificadas, buscando tornar a resposta final apresentada pela rede mais semelhante às respostas desejadas. As redes neurais, após um processo de "aprendizado", podem relacionar dados complexos de uma equação e predizer seu resultado final corretamente(2). Quando uma RNA completa o seu treinamento, as relações entre as variáveis iniciais e a resposta final é memorizada como uma matriz, e a rede pode ser utilizada com dados não apresentados previamente(3). Em relação à estratégia cirúrgica do estrabismo, as redes neurais artificiais podem ser particularmente úteis para associar os diversos fatores envolvidos no seu planejamento, fornecendo valores objetivos para medidas e associações subjetivas. Uma RNA adequadamente desenvolvida para a determinação da estratégia cirúrgica poderia fornecer resultados, em milímetros de retrocesso ou ressecção dos músculos extra-oculares, baseando-se apenas nos dados pré-operatórios do paciente estudado.
O presente estudo tem como objetivo desenvolver e treinar uma rede neural artificial para determinar a estratégia cirúrgica a ser utilizada em pacientes portadores de estrabismo sensorial, com desvio horizontal.
MÉTODOS
Foi realizado um estudo retrospectivo, utilizando dados provenientes de prontuários de 95 pacientes portadores de estrabismo sensorial com desvio horizontal, não submetidos à cirurgia prévia, atendidos no setor de Motilidade Ocular Extrínseca do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC/FMUSP), no período de setembro de 1990 a maio de 2003. Todos os pacientes apresentavam baixa acuidade visual mais acentuada em um dos olhos e indicação cirúrgica restrita a retrocesso e ressecção dos músculos retos horizontais. Os dados coletados foram: sexo, idade, acuidade visual, diagnóstico, desvio para longe e perto em posição primária do olhar e cirurgia proposta. Todas as indicações cirúrgicas foram realizadas pelo mesmo médico.
A rede neural foi construída utilizando-se o Java Neural Network Simulator versão 1.1, contendo 3 camadas (Figura 1). A camada de entrada dos dados continha 4 unidades, correspondendo ao tipo e quantificação do desvio para longe e perto e a idade do paciente; a camada intermediária continha 6 unidades; e a camada final 4, correspondendo à indicação quantitativa do retrocesso ou da ressecção dos músculos retos medial e lateral do olho direito ou esquerdo em milímetros. De acordo com os critérios de inclusão e da conduta adotada no nosso serviço, nos pacientes com estrabismo sensorial, o procedimento cirúrgico é realizado no olho com pior função visual. Desta forma, optou-se por adotar uma camada final com apenas 4 unidades, sendo os resultados assumidos como procedimento a ser realizado no olho com pior visão, e não 8 unidades, correspondendo ao retrocesso e ressecção em cada um dos 4 músculos retos horizontais.
O método utilizado para treinamento da rede foi o "backpropagation". Utilizou-se uma taxa de aprendizado de 0,6 e uma taxa de tolerância de erro 0,05. O número de neurônios na camada intermediária foi estabelecido segundo a estratégia do "software", de acordo com os dados utilizados. Foram utilizados dados de 68 pacientes para treinamento e validação da rede e de 27 pacientes para testar o seu funcionamento. Os pacientes foram aleatoriamente distribuídos entre estes grupos.
RESULTADOS
Dos 68 pacientes utilizados para treinamento e validação da rede, 37 (52,9%) apresentavam exotropia, com desvios para perto e longe variando de 20 a 90 dioptrias prismáticas (DP), e idade média de 26,8 anos (±14,7), sendo 21 (57%) do sexo feminino e 16 (43%) do sexo masculino. Trinta e um (47,1%) apresentavam esotropia, com desvios para perto e longe variando de 15 a 70 DP, e idade média de 13,9 anos (±12,9), sendo 17 (55%) do sexo feminino e 14 (45%) do sexo masculino. A acuidade visual média foi 0,26 e 0,24 em LogMAR nos olhos com melhor visão e 1,41 e 1,53 LogMAR nos olhos com acuidade visual mais comprometida, nos pacientes com exotropia e esotropia respectivamente (Tabela 1). Os olhos que apresentavam percepção luminosa ou ausência de percepção luminosa foram excluídos para o cálculo das médias. O tempo médio de acompanhamento antes da indicação da cirurgia foi de 10 meses.
A rede neural foi treinada até atingir as metas propostas (taxa de erro de 0,05). Os objetivos em relação ao treinamento da rede foram obtidos após 633 ciclos. Para a avaliação da eficácia da rede, foram utilizados dados provenientes de 27 pacientes, com as mesmas características dos pacientes incluídos no treinamento e validação da RNA, cujos dados foram apresentados à rede após o treinamento. Os resultados fornecidos pela rede foram comparados com o planejamento cirúrgico original contido no prontuário. Dos 27 pacientes utilizados para avaliação da eficácia da rede, 18 apresentavam exotropia (66,7%), com desvios variando de 25 a 80 DP (p = 0,06) e idade média de 21,3 anos (±10,2) (p = 0,2), sendo 10 (56%) do sexo feminino e 8 (44%) do sexo masculino (p = 0,9). Nove pacientes apresentavam esotropia (33,3%), com desvio variando de 30 a 60 DP (p=0,5) e idade média de 14,7 anos (±10,1) (p = 0,3), sendo 5 (56%) do sexo feminino e 4 (44%) do sexo masculino (p = 0,9). A acuidade visual média foi de 0,23 e 0,21 em LogMAR nos olhos com melhor visão (p = 0,7) e 1,32 e 1,42 em LogMAR, nos olhos com acuidade visual mais comprometida (p = 0,2), nos pacientes com exotropia e esotropia respectivamente (Tabela 1).
O erro da RNA foi avaliado pela média da diferença entre a indicação fornecida pela RNA e a indicação original, em números absolutos. Nos pacientes com exotropia o erro médio foi de 0,4 mm (±0,4), variando de 0,1 a 1,1 mm, para o retrocesso do reto lateral, e de 0,3 mm (±0,3), variando de zero a 1,3, para a ressecção do reto medial (Tabela 1). Nas esotropias o erro médio foi de 0,2 mm (±0,2), variando de zero a 0,6, para o retrocesso do reto medial, e de 0,5 mm (±0,3), variando de 0,2 a 1,3, para ressecção do reto lateral (Tabela 2).
DISCUSSÃO
Os fatores envolvidos no planejamento da estratégia cirúrgica em casos de estrabismo são muito complexos, envolvendo tanto a participação do conhecimento científico teórico como a experiência do cirurgião(1,4). Existem diversas fórmulas e tabelas, baseadas em séries de casos que fornecem valores exatos para o planejamento cirúrgico de acordo com o grau do desvio observado(5-6). Estas tabelas apresentam como desvantagem o fato de fornecerem valores médios, que muitas vezes não podem ser aplicados individualmente(6), já sendo bem estabelecida a grande variabilidade da correção cirúrgica obtida em termos de dioptrias prismáticas por milímetro de retrocesso e/ou ressecção(4). A RNA simula aspectos do sistema nervoso central biológico, possibilitando a associação dos diversos fatores envolvidos no planejamento cirúrgico. Esta habilidade para realizar tarefas cognitivas e o fato de fornecer resultados aplicáveis individualmente, torna a utilização da RNA uma opção potencialmente viável no planejamento cirúrgico do estrabismo.
O método de treinamento da rede neste estudo, "backpropagation", é um dos mais utilizados, devido à sua simplicidade de utilização e interpretação dos resultados(2-3). Neste método, a RNA realiza uma mudança nos valores das conexões entre as unidades utilizando a taxa de erro, de forma a tornar os resultados finais obtidos mais semelhantes aos resultados desejados(7). Uma vez treinada com este método, a rede produz sempre respostas iguais para as mesmas associações de variáveis(3), característica desejável em um sistema médico de auxílio diagnóstico/terapêutico(8).
A RNA oferece vantagens em relação a outros métodos de desenvolvimento de sistemas de auxílio diagnóstico/terapêutico. Seu mecanismo de aprendizado é baseado unicamente nos dados fornecidos, não sendo necessária nenhuma informação sobre relações ou regras entre eles(7). Além disso, ela é capaz de detectar características não explícitas nos dados utilizados para alimentar a rede.
Os critérios de inclusão dos pacientes foram estabelecidos de forma a limitar o procedimento cirúrgico a retrocesso e ressecção dos músculos retos horizontais em apenas um dos olhos, facilitando o treinamento da rede ao restringir os possíveis resultados e fatores envolvidos na sua determinação. Nesta série, a RNA indicou o procedimento com erro médio igual ou menor que 0,5 mm em todos os músculos, porém com grande variabilidade e erro máximo de 1,3 mm em relação à conduta original, tornando a indicação inaceitável em alguns casos. Estes dados sugerem a capacidade da utilização da rede neural artificial para este fim, porém demonstram a necessidade da construção de uma rede mais elaborada e a utilização de maior número de pacientes para o treinamento e validação, viabilizando a sua utilização na prática clínica.
CONCLUSÃO
A RNA, por sua característica de simular o sistema nervoso central biológico e a sua capacidade em realizar tarefas cognitivas, é uma opção viável para auxiliar no planejamento cirúrgico para a correção do estrabismo. Após um processo de treinamento adequado, a RNA fornece valores confiáveis e reprodutíveis, que podem ser utilizados de forma direta ou como mais uma informação a ser considerada no momento da indicação do procedimento cirúrgico a ser realizado.
REFERÊNCIAS
1. Diaz JP, Dias CS. Cirurgia do estrabismo. In: Pietro-Díaz J, Souza-Dias C. Estrabismo. São Paulo: Livraria Santos; 2002. p.465-514.
2. Edenbrandt L, Devine B, Macfarlane PW. Neural network classification of ECG ST-T segments. J Electrocardiol 1992;25:167-73.
3. Bose NK, Liang P. Multilayer networks. In: Bose NK, Liang P editor. Neural network fundamentals with graphs, algorithms, and applications. New York: McGraw-Hill; 1996. p.155-218.
4. Von Noorden GK. Principles of therapy. In: Von Noorden GK editor. Binocular vision and ocular motility: theory and management of strabismus. St Louis: Mosby; 1980. p.450-1.
5. Scott AB, Mash AJ, Jampolsky A. Quantitative guidelines for exotropia surgery. Invest Ophtalmol 1975;14:428-36.
6. Gordon YJ, Bachar E. Multiple regression analysis predictor models in exotropia surgery. Am J Ophtalmol 1980;90:687-91.
7. Rumelhart DE, Hinton GE, Williams RJ. Learning representations by back-propagating errors. Nature 1986;323:533-6.
8. Mutlukan E, Keating D. Visual field interpretation with a personal computer based neural network. Eye 1994;8:321-3.
Endereço para correspondência
Murilo Barreto Souza
Rua Alberto Pondé nº 109/503
Salvador (BA) CEP 40280-690
E-mail: [email protected]
Recebido para publicação em 17.07.2003
Versão revisada recebida em 11.12.2003
Aprovação em 16.02.2004
Nota Editorial: Pela análise deste trabalho e por sua anuência na divulgação desta nota, agradecemos ao Dr. Carlos Ramos de Souza-Dias.