Abrahão da Rocha Lucena1; Antônio Augusto Velasco e Cruz2; Ronald Cavalcanti3
DOI: 10.1590/S0004-27492004000200003
RESUMO
OBJETIVOS: Fazer estudo epidemiológico do tracoma no povoado de Serrolândia, município de Ipubi, na chapada do Araripe, sertão de Pernambuco, região historicamente conhecida como bolsão. MÉTODOS: Em outubro e novembro de 2002 foi realizado trabalho de campo prospectivo, no qual se examinaram 1.239 indivíduos. A idade dos indivíduos variou de 1 a 93 anos (média de 25,3 anos). O exame foi realizado com lupa binocular de 2,5 vezes de magnificação e obedeceu-se a classificação clínica de tracoma preconizada pela OMS. RESULTADOS: O tracoma foi diagnosticado clinicamente em 250 (20,5%) indivíduos, com predileção pelo sexo masculino. A média de idade dos indivíduos com tracoma folicular (TF) foi 13 anos e com tracoma cicatricial (TS) 49 anos. Observaram-se as seguintes gradações do tracoma: 107 (8,6%) casos de TF, 2 (0,2%) de TI (tracoma inflamatório), 139 (11,2%) de TS, 1 (0,1%) de TT (triquíase tracomatosa) e nenhum caso de CO (opacificação corneana). CONCLUSÕES: Pode-se considerar que o tracoma na comunidade de Serrolândia, Ipubi-PE, apresenta baixa endemicidade (8,8% TF / TI), apesar de localizar-se em região de baixo nível socio-econômico da chapada do Araripe, conhecida como bolsão de tracoma. Não é, portanto, um grave problema de saúde pública nessa comunidade.
Descritores: Tracoma; Tracoma; Chlamydia trachomatis; Infecções por Chlamydia; Conjuntivite; Cegueira; Brasil
ABSTRACT
PURPOSE: To perform an epidemiologic study on trachoma in the village of Serrolândia, Ipubi country, situated in the "Chapada of Araripe", interior of Pernambuco. METHODS: A cross-section study on 1239 patients was accomplished in October and November 2002. The age of the patients ranged from 1 to 96 years (average 25.3 years). The examination was done a binocular magnifying lens of X 2.5 magnification following the clinical classification approved by WHO. RESULTS: The diagnosis of trachoma was established in 250 (20.5%) patients, with a predominance of males. The mean age of the patients with follicular trachoma (TF) was 13 years and with cicatrizing trachoma (TS) was 49 years. The following stages of trachoma were observed: 107 (8.6%) cases of TF, 2 (0.2%) of inflammatory trachoma (TI), 139 (11.2%) of cicatrizing trachoma, 1 (0,1%) of trichiasis and no case of corneal opacities (CO). CONCLUSION: Trachoma in Serrolândia, Ipubi-PE presents low endemic potential (8.8% TF / TI), although being located in a low socioeconomic region of the "Chapada do Araripe", an area known as endemic. Thus, trachoma is not a serious public health problem in that community.
Keywords: Trachoma; Trachoma; Chalmydia trachomatis; Chlamydia infections; Conjunctivitis; Blindness; Brazil
INTRODUÇÃO
A palavra tracoma (do Grego Tráchomas) significa rugoso, áspero ou edemaciado, descrevendo a aparência da conjuntiva tarsal acometida(1).
O tracoma é uma ceratoconjuntivite bacteriana crônica e recidivante causada pela Chlamydia trachomatis (sorotipos A, B, Ba e C) que costuma afetar crianças desde os primeiros meses de vida; acarreta de forma lenta: cicatrização conjuntival, entrópio, triquíase, opacidade corneana, olho seco e cegueira no adulto. Geralmente sua transmissão ocorre dentro do ambiente doméstico, de forma direta (olho para olho ou mãos contaminadas) ou indireta (vestuários e proliferação de moscas)(2-4).
A ocorrência do tracoma no mundo atualmente restringe-se quase que exclusivamente às populações dos países subdesenvolvidos e dentro deles, às populações rurais e às pobres, marginalizadas dos benefícios do desenvolvimento socioeconômico(3,5).
Esta afecção ocular começou a ser relatada em 1556 a.C., em um papiro descoberto em 1892 por George Ehers onde estava descrita uma doença com sinais característicos de tracoma. Voltou a ser referida no Egito em 525 a.C., por ocasião da invasão Persa, e em 48 a.C., Cícero referiu que em Roma vários médicos oculistas curavam a triquíase, o tracoma e operavam catarata(2).
Durante o século passado a prevalência do tracoma na Europa e América do Norte era alta, constituindo a principal causa de cegueira nessas regiões. Nesse século, a doença foi gradualmente desaparecendo graças a uma multiplicidade de mudanças nas condições de vida e assistência à saúde. O desaparecimento do tracoma nessas localidades deveu-se mais ao progresso material e cultural do que a programas quimioterápicos(6).
No Brasil, o tracoma teria chegado no século XVIII entre 1718 e 1750, com os ciganos expulsos de Portugal, desenvolvendo-se na região do Cariri no interior do Ceará, o mais antigo foco do país(6-7). No final do século XIX, com a chegada dos Europeus procedendo de países endêmicos do mediterrâneo (Itália e Espanha), outros focos surgiram nos Estados de São Paulo e Rio Grande do Sul, expandindo-se para outras regiões(2).
O tracoma é a doença ocular mais freqüente no mundo, acometendo cerca de 500 milhões de pessoas(1-2). A OMS estima que 5,6 milhões de pessoas estejam cegas devido às complicações do tracoma, sendo, portanto a principal causa de cegueira previnível, principalmente nos países em desenvolvimento6. Além disso, 80 milhões de crianças apresentam o tracoma inflamatório que potencialmente pode causar grave deficiência visual(8).
A campanha federal do tracoma no Brasil foi estruturada em 1943, havendo melhoria na sua evolução em 1966, deixando de representar grande problema de saúde pública. Com a descoberta de novos casos de tracoma inflamatório em Bebedouro-SP (1982) e em outras localidades do Brasil, estudos de prevalência foram realizados na Bahia, Ceará, Pernambuco, Santa Catarina, Amazonas e Paraná(3,7).
Este estudo tem como objetivo determinar a prevalência do tracoma na chapada do Araripe, região do sertão de Pernambuco.
MÉTODOS
Foi realizado um estudo transversal no período de 22 a 26 de outubro e 3 a 8 de novembro de 2002 no povoado de Serrolândia, Ipubi-PE, localizado sobre a chapada do Araripe, a mais ou menos 750 km da capital Recife, com população de 5.511 habitantes (IBGE-1991)(9).
Examinaram-se 1.239 indivíduos; o exame oftalmológico foi realizado no domicílio das pessoas por um médico aluno do curso de especialização em oftalmologia da Fundação Altino Ventura, treinado pela Fundação Nacional de Saúde, acompanhado de um agente de saúde da localidade.
Para o exame clínico utilizou-se lupa de 2,5 vezes de magnificação sob iluminação natural ou com lanterna, objetivando avaliar as alterações de pálpebras, cílios, conjuntiva e córnea e graduar o tracoma de acordo com os critérios da OMS(1): TF (Tracoma inflamatório folicular), TI (Tracoma inflamatório intenso), TS (Tracoma cicatricial), TT (Triquíase tracomatosa) e CO (Opacificação corneana). As pessoas que ganharem menos de um salário mínimo ficarão no grupo I, os que ganharem entre um e cinco salários ficarão no grupo II e os que ganharem mais de cinco salários pertencerão ao grupo III.
Utilizaram-se como métodos estatísticos: teste de hipóteses (t de Student, Mann-Whitmey), teste de aderência Kolmogonov-Smirnov e o qui-quadrado.
RESULTADOS
Dos 1.239 indivíduos examinados, 989 (79,8%) não apresentaram sinais clínicos de tracoma e dentre os que tinham a doença não houve casos de CO (Gráfico 1).
O tracoma foi observado em 250 indivíduos (20,2%), sendo 108 (8,7%) do sexo masculino e 142 (11,5%) do feminino, diferença estatisticamente significativa (p=0,01).
Com relação à idade, o TF foi encontrado em 108 (8,6%) de 1 a 63 anos, prevalecendo nas classes mais jovens, com picos aos 3 e 6 anos (média=12,7; mediana=7,5; desvio padrão=13,81), diminuindo nas faixas etárias subseqüentes (distribuição exponencial). O TS ocorreu em 139 (11,3%) indivíduos aparecendo na faixa etária de 11 a 93 anos (Distribuição Gaussiana), com pico aos 34 anos (média = 49,6; mediana = 50; desvio padrão= 19,08).
A forma clínica TF diminuiu de modo inversamente proporcional com o avançar da idade, contrastando com a prevalência do TS (Gráfico 2).
Dos pacientes que possuíam TF, 53 (49,0%) eram homens, correspondendo a 12,7% do universo masculino e 55 (50,9%) eram do sexo feminino, correspondendo a 6,7% das mulheres, diferença estatisticamente significante (p=0,002). O TS apresentou-se em 53 (38,1%) homens, correspondendo a 12,7% do universo total masculino e em 86 (61,8%) mulheres, representando 10,4% do universo feminino, não havendo diferença estatisticamente significante entre os sexos (p=0,11) (Tabela 1).
Os dois casos de TI aconteceram em um jovem de 19 anos e em sua irmã de nove anos de idade. O TT esteve presente em apenas 1 (0,1%) paciente de 60 anos.
Novecentos e oitenta (79,1%) indivíduos examinados possuíam renda abaixo de um salário mínimo e o analfabetismo representou 739 casos (59,6%). Houve diferença estatística significante relacionando classe de renda e nível de instrução para todos os grupos (p=0,05), com exceção dos grupos II e III (p=0,14) no teste de Mann-Whitney (Tabela 2).
DISCUSSÃO
Neste estudo o tracoma apresentou taxa de prevalência de 20,2%, incluindo todas as formas clínicas da doença. Tal achado discorda daqueles encontrados por alguns autores que relatam maior prevalência da doença em comunidades com baixas condições socioeconômicas e precário sistema de saneamento(1,4,10-11).
Escolheu-se o povoado de Serrolândia para estudo pelo fato de possuir precário sistema de saneamento público, deficiente sistema de abastecimento de água e baixo nível socio-econômico; além disso, sua localização no sertão, na chapada do Araripe, uma região árida, com muito vento, torna mais interessante do ponto de vista epidemiológico o estudo do tracoma. Alguns trabalhos mostram que esta enfermidade ocular está associada com áreas áridas e empoeiradas, sendo a redução do risco de disseminação da doença associada com a maior quantidade de água disponível para higiene pessoal(12-13).
Com relação à idade, o TF (8,6%) aconteceu na faixa etária mais jovem (média de 12,7 anos), concordando com dados da literatura onde se observa que quanto menor a endemicidade do tracoma, mais elevada será a idade em que aparecerá o pico de prevalência do TF, notando-se assim uma forma branda da doença. Quanto ao sexo, a forma folicular foi mais freqüente no sexo masculino, discordando de outros autores(7-8,10,12).
Sendo o tracoma uma doença invariavelmente contraída na infância precoce, há uma relação marcante entre a idade e o estado de evolução, notando-se os primeiros casos de TS (média de 49,6 anos) quando a prevalência do TF começa a declinar. A idade de início da infecção influencia na evolução da doença, sendo esta mais grave, quanto mais precoce for seu início. O TS esteve presente em 11,3% dos examinados, sendo um resultado direto da intensidade e duração do processo inflamatório(8,10).
Observando-se os resultados já discutidos, nota-se apenas um caso de TT (0,1%) e nenhum caso de CO e entrópio, sugerindo-se que o tracoma nessa região tenha características de doença não causadora de cegueira, discordando com trabalhos semelhantes encontrados na literatura e concordando com outros(1,4,10,12).
O quadro clínico característico do tracoma auxilia no diagnóstico de exclusão de outras conjuntivites foliculares crônicas, como: conjuntivite de inclusão, conjuntivite folicular tóxica causada por drogas, conjuntivite por molusco contagioso, conjuntivite bacteriana (pela Moraxella) e foliculoses(4).
O elevado índice de pessoas com renda menor que um salário mínimo (79,1%), associado com elevado percentual de analfabetismo (59,6%) reflete o baixo nível econômico-cultural da população estudada. A ocorrência de tracoma em uma população é geralmente descrita como associada a precárias condições de vida, entendidas como baixo nível socioeconômico, precárias condições de habitação, precariedade do saneamento básico e baixos níveis educacional e cultural(6).
CONCLUSÃO
Através desse estudo pode-se considerar que o tracoma no povoado de Serrolândia- Ipubi-PE, apresentou-se de uma forma branda e com baixa endemicidade (8,6% de TF e 0,2% de TI), apesar do baixo nível socioeconômico da população (79,1% ganhavam menos de um salário mínimo) e sua localização na região do Araripe, conhecida como bolsão de tracoma.
Concluiu-se que nesse povoado o tracoma não é um grave problema de saúde pública, o que, contudo, não invalida a realização de outros estudos em regiões semelhantes em busca de novos focos da doença.
REFERÊNCIAS
1. Adan CBD, Scarpi MJ. Guidueli T. Eficácia da ciprofloxacina e da tetraciclina no tratamento do tracoma: estudos clínicos e microbiológico. Arq Bras Oftalmol 1996;59:592-600.
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8. Carvalho RC, Falcão R, Cohen J, Chaves C, Scarpi MJ. Prevalência do tracoma em escolares de Manaus. Arq Bras Oftalmol 1997;60:243-7.
9. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Recenseamento 1991. Brasília: IBGE; 1991.
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11. Scarpi MJ, Gentil R. Sinais e sintomas em povoado do Estado da Bahia-Brasil. Arq Bras Oftalmol 1990;53:276-8.
12. Prost A, Negrel AD. Water trachoma and conjunctivitis. Bull World Health Organ 1989;67:9-18.
13. Morschbacher R, Scarpi MJ. Prevalência de tracoma no parque do Xingu. Arq Bras Oftalmol 1996;59:83-7.
Endereço para correspondência
Abrahão Lucena
Av. D. Luis nº 1233, 14 and.
Fortaleza (CE) CEP 60160-230
E-mail: [email protected]
Enviado em 08.01.2001
Após análises e aceitação, a publicação ficou suspensa, a pedido do primeiro autor, sendo por ele autorizada em 15.12.2003
Trabalho realizado pela Fundação Altino Ventura-PE/ USP - Ribeirão Preto, servindo como base para tese de mestrado em oftalmologia na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - Ribeirão Preto-SP