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Editorial

Tuberculose ocular: relato de casos

Ocular tuberculosis: case reports

Daniella Socci da Costa1; Rodrigo Tavares Schueler e Silva1; Tatina Klejnberg1; Ricardo Japiassu2; Remo Turchetti1; Haroldo Vieira de Moraes Jr.3

DOI: 10.1590/S0004-27492003000700028

RESUMO

Os autores relatam dois casos de tuberculose ocular presumida com comprometimento coroidiano. No primeiro caso, um paciente de 43 anos, HIV positivo, com tuberculose pulmonar miliar e tuberculoma cerebral, apresenta um granuloma coroidiano único na região macular do olho esquerdo. No segundo caso, uma paciente de 12 anos, HIV negativa, com tuberculose pulmonar apresenta coroidite multifocal e comprometimento do segmento anterior do olho esquerdo. Ambos os pacientes evoluíram favoravelmente com o tratamento específico, apresentando completa resolução das lesões. As lesões oculares da tuberculose são diversas e devemos continuar atentos a esta enfermidade.

Descritores: Tuberculose ocular; Uveíte; Coroidite; HIV; Antituberculosos; Relato de caso

ABSTRACT

The authors report two cases of presumed ocular tuberculosis with choroidal involvement. In the first case, we describe a 43-year-old male, HIV positive, with pulmonary and cerebral tuberculosis, who presented a single choroidal nodule in the left eye's macula. In the second case, a 12-year-old female with pulmonary tuberculosis presented multifocal choroiditis and anterior involvement of the left eye. Both patients underwent the treatment for tuberculosis and the lesions completely resolved. The ocular lesions of tuberculosis are polymorphic and we must be aware of this disease.

Keywords: Ocular tuberculosis; Uveitis; Choroiditis; HIV; Antitubercular agents; Case report


 

 

INTRODUÇÃO

A tuberculose é uma doença infecciosa crônica, causada por 3 espécies de microbactérias: Mycobacterium tuberculosis, Mycobacterium bovis e Mycobacterium africanum, agrupadas como complexo M. tuberculosis pela presença de DNA homólogo(1-2).

O M. tuberculosis é um bacilo aeróbio obrigatório, transmitido principalmente por via aérea, que infecta primariamente o tecido pulmonar, podendo afetar qualquer outro órgão, inclusive o olho (cuja incidência em caso de tuberculose sistêmica é de 1 a 2%)(3). A possibilidade de contrair a doença depende de alguns fatores relacionados ao hospedeiro, como resistência imunológica, e outros ligados diretamente ao bacilo, como a sua virulência.

As taxas de mortalidade e morbidade vinham apresentando um declínio, mas desde 1986, a incidência da doença vem aumentando, o que poderia ser explicado pelo advento da AIDS e migrações populacionais originárias de países onde a tuberculose é endêmica(3-4).

Estima-se que nos países desenvolvidos, o prazo mínimo de diagnóstico de um paciente com tuberculose seja de 3 meses. Neste período, até alcançar a inatividade com a quimioterapia, terá infectado duas ou três pessoas. Nos países em desenvolvimento este intervalo pode ser muito maior, produzindo grande número de infectados e novos pacientes(2,5).

A tuberculose tem grande importância como uma das etiologias de uveíte em nosso meio, de acordo com os dados epidemiológicos publicados na literatura nacional(6-8), e o tratamento específico deve ser realizado precocemente já que pode melhorar o prognóstico visual do paciente(9-10).

Diante destas informações, podemos começar a compreender a real dimensão do problema da tuberculose como questão de saúde pública para o nosso país e a importância de um diagnóstico correto e precoce desta patologia na nossa prática clínica diária.

 

RELATO DE CASO

Caso 1

C.J.S., sexo masculino, 43 anos de idade, HIV positivo, em novembro de 2000 apresentou turvação visual no olho esquerdo, acompanhada por cefaléia fronto-temporal e dispnéia. O exame oftalmológico inicial revelou: acuidade visual corrigida (AV) olho direito (OD): 1,0 e olho esquerdo (OE): vultos, biomicroscopia anterior sem alterações em ambos os olhos (AO), tonometria 14 mmHg AO, fundoscopia do OD normal e granuloma coroidiano na região macular do OE (Figura 1 A e B). No mesmo período, foi diagnosticada tuberculose pulmonar miliar, e a tomografia computadorizada de crânio mostrou lesões nodulares no lobo temporal direito, e nas regiões têmporo-occipital e parietal à esquerda (Figura 2). A biópsia destas lesões evidenciou processo inflamatório crônico granulomatoso com necrose caseosa, compatível com tuberculoma cerebral (Figura 3). Vários exames laboratoriais foram realizados, entre os quais: CD4 88 cels/mm3, carga viral < 80 cópias/ml, VDRL negativo, PPD não reator, sorologia para toxoplasmose IgG positivo e IgM negativo, sorologia para CMV IgG positivo e IgM negativo. O tratamento clássico para tuberculose com o esquema RIP (rifampicina, isoniazida e pirazinamida) foi prontamente iniciado e este após um mês foi modificado para a associação de estreptomicina, etambutol e ofloxacina devido à interação com a terapia anti-retroviral (Biovir, Ritonavir e Saquinavir). Após dois meses de tratamento, o paciente apresentava CD4 141 cels/mm3, carga viral < 80 cópias/ml além da completa cicatrização do granuloma coroidiano (Figura 1 C e D), mantendo a acuidade visual do olho esquerdo de vultos.

 


 

 

 

 

 

Caso 2

C.S.F., sexo feminino, 12 anos de idade, negra, natural e residente no Rio de Janeiro, apresentou-se em nosso serviço com quadro de dor importante em olho esquerdo, acompanhado de hiperemia ocular intensa, fotofobia e diminuição da acuidade visual neste olho, acompanhada por linfadenomegalia submandibular esquerda, discreta tosse vespertina sem expectoração e emagrecimento progressivo nos últimos 6 meses ocasionando quadro de desnutrição. Nega quaisquer doenças sistêmicas prévias, relações sexuais ou uso de drogas intravenosas, porém refere doenças pulmonares recentes na família, que não soube especificar. No exame físico, apresentava linfadenopatia submandibular esquerda, com aproximadamente 5 cm no seu maior diâmetro, de consistência elástica, indolor à palpação e com boa mobilidade. O exame oftalmológico demonstrou AV OD: 1,0 e OE <0,1, à biomicroscopia do segmento anterior injeção ciliar (4+/4+) em OE, além de "flare" (2+/4+) e células (4+/4+), nódulos irianos de Bussaca e Koeppe, com formação de sinéquias posteriores, e notada ausência de precipitados ceráticos (Figura 4), tonometria 12 mmHg em AO. O exame fundoscópico demonstrou opacidade vítrea (1+/4+) em olho esquerdo, com coroidite multifocal, acometendo inclusive a região macular, além de intensa papilite reacional (Figura 5). A paciente apresentava sorologia anti-HIV (ELISA) negativa, VDRL não reator e PPD 10 mm. A radiografia de tórax revelou lesão no ápice do pulmão esquerdo compatível com tuberculose pulmonar em atividade. Foi formulada a hipótese diagnóstica de tuberculose ocular e iniciado o tratamento tópico com colírios de atropina e dexametasona, além do esquema tríplice (RIP). Após dois meses de tratamento obteve regressão das lesões do segmento anterior (Figura 6) e completa cicatrização das lesões coroidianas (Figura 7).

 

 

 

 

 

 

 

 

DISCUSSÃO

O diagnóstico de tuberculose ocular é pouco comum, geralmente baseado na história clínica sugestiva, achados intra-oculares e evidências laboratoriais do Mycobacterium tuberculosis(6). A forma ocular geralmente é considerada como secundária a um foco primário qualquer, podendo ser este extrapulmonar ou associado à forma disseminada da doença. Em nosso relato, os dois pacientes apresentavam alguma forma de imunodeficiência adquirida, como a SIDA no primeiro caso e a desnutrição no segundo, além de revelar duas formas distintas de apresentação da coroidite tuberculosa: focal no paciente com SIDA e multifocal no segundo caso, esta última sendo mais comum. O diagnóstico em ambos os casos foi clínico, pelo aspecto das lesões oculares, evidências sistêmicas de tuberculose, e confirmação propedêutica através de PPD, exames radiológicos e histopatológicos. Apesar de ser um procedimento altamente invasivo, a biópsia cerebral do paciente 1 foi realizada, pois havia a suspeita clínica de neoplasia.

A literatura mundial mostra vários casos de tuberculose ocular(11-17), geralmente com diagnóstico através de exames extremamente especializados, como punção de humor aquoso, aspirado vítreo ou biópsia coriorretiniana. Em um país como o Brasil, onde a tuberculose é endêmica, nós pretendemos mostrar nestes casos que muitas vezes a clínica é suficiente para o correto diagnóstico e tratamento da doença, não necessariamente através de métodos avançados, que por serem pouco disponíveis poderiam identificar a elucidação diagnóstica e agravar a doença ocular, com grande potencial de seqüelas visuais permanentes.

 

CONCLUSÃO

O relato acima deve servir como alerta aos profissionais de saúde quanto à questão da persistência da tuberculose como grave problema de saúde pública nos países em desenvolvimento, como o Brasil, e sua recrudescência nos países desenvolvidos, além de destacar sua relevância como patógeno envolvido em agravos oftalmológicos.

 

REFERÊNCIAS

1. Wayne LG. Microbiology of tubercle bacilli. Am Rev Respir Dis. 1982;125 (3 Pt 2):31-41.        

2. Campos WR, Fernandes LC, Azevedo JF, Oréfice F. Tuberculose. In: Oréfice F. Uveíte clínica e cirúrgica: Atlas e Texto. Rio de Janeiro: Cultura Médica; 2000. v.1 p.415-8.        

3. Deschenés J, Seamon C, Che SB. Tuberculosis and atypical Mycobacteria. In: Tasman W, Jaeger EA, editors. Duane's Clinical Ophthalmology. Philadelphia: JB Lippncott, 1991. v.1.        

4. Muccioli C, Belfort R. Presumed ocular and central nervous system tuberculosis in a patient with the acquired immunodeficiency syndrome. Am J Ophthalmol 1996;121:215-7.        

5. Lewallen S, Courtright, P. HIV and AIDS and the eye in developing countries: a review. Arch Ophthalmol 1997;115:1291-5.        

6. Oréfice F, Carvalho A, Pinheiro S. Controvérsias nas uveítes tuberculosas. Arq Bras Oftalmol 1987;50:237-45.        

7. Carvalhal ML. Uveíte tuberculosa: a propósito de 5 casos. Rev Bras Oftalmol 1993;52:383-6.        

8. Petrilli AM, Belfort Jr R, Moreira JBC, Nishi M. Uveítes na infância em São Paulo. Arq Bras Oftalmol 1987;50:203-7.        

9. Campos WR, Pinheiro SRAA, Oréfice F, Bicalho MAC, Filogônio CJB. Uveíte tuberculosa bilateral em paciente com quadro de tuberculose miliar. Rev Bras Oftalmol 1996;55:7-12.        

10. Campos WR, Oréfice F, Siqueira RC, Cunha AN. Uveíte posterior em paciente com tuberculose pulmonar em atividade: relato de um caso. Rev Bras Oftalmol 1997;56:773-81.        

11. Kotake S, Kimura K, Yoshikawa K. Polymerase chain reaction for the detection of Mycobacterium tuberculosis in ocular tuberculosis. Am J Ophthalmol 1994;117:805-7.        

12. Barnes PF, Bloch AB, Davidson PT, Snider DE. Tuberculosis in patients with human immunodeficiency virus infection [commented on N Engl J Med 1991;325:1882-4]. N Engl J Med 1991;324:1644-50.        

13. Bowyer JD, Gormley PD, Seth R, Downes RN, Lowe J. Choroidal tuberculosis diagnosed by polymerase chain reaction. A clinicopathologic case report. Ophthalmology 1999;106:290-4.        

14. Jabbour NM, Faris B, Trempe CL. A case of pulmonary tuberculosis presenting with a choroidal tuberculoma. Ophthalmology. 1985;92:834-7.        

15. Cangemi FE, Friedman AH, Josephberg R. Tuberculoma of the choroid. Ophthalmology 1980;87:252-8.        

16. Morinelli EN, Dugel PU, Riffenburgh R, Rao NA. Infectious multifocal choroiditis in patients with acquired immunedeficiency syndrome. Ophthalmology 1993;100:1014-21.        

17. Moraes Jr HV, Dantas MM, Pinto CM, Zacarias JRF. Uveítes tuberculosa. Relato de casos atípicos. Rev Bras Oftalmol 1995;54:853-5.        

 

 

Endereço para correspondência
Remo Turchetti Moraes
Rua Humaitá, nº 244 - bloco 2 - aptº 1302
Rio de Janeiro (RJ) CEP 22261-001
E-mail: [email protected]

Recebido para análise em 21.12.2001
Versão revisada recebida em 17.04.2002
Aprovação em 14.05.2003

 

 

Trabalho realizado no Serviço de Oftalmologia do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho.
Nota Editorial: Pela análise deste trabalho e por sua anuência na divulgação desta nota, agradecemos aos Drs. Fernando Oréfice e Mauro Nishi.


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