Open Access Peer-Reviewed
Editorial

Microemulsões como veículo de drogas para administração ocular tópica

Microemulsions as drug delivery systems for topical ocular administration

Armando da Silva Cunha Júnior1; Sílvia Ligório Fialho1; Luciana Barbosa Carneiro2; Fernando Oréfice4

DOI: 10.1590/S0004-27492003000300025

RESUMO

As formas farmacêuticas oftálmicas convencionais são relativamente simples: drogas solúveis em água são formuladas em solução aquosa e drogas pouco solúveis em suspensão ou pomada. Entretanto, essas formulações apresentam como inconvenientes baixa biodisponibilidade corneal, absorção sistêmica devida à drenagem nasolacrimal e reduzida eficácia no segmento posterior do olho. Assim, o desenvolvimento de novos sistemas de liberação de drogas de administração oftálmica tem sido um dos principais temas de pesquisa em tecnologia farmacêutica nos últimos anos. Entre as alternativas avaliadas, destacam-se principalmente as microemulsões. Estas formas farmacêuticas que são dispersões de água e óleo, estabilizadas por um emulsionante e por um co-emulsionante, transparentes, termodinamicamente estáveis, apresentam partículas de tamanho menor que 1,0 mm e, portanto, passíveis de serem esterilizadas por filtração. Além disso, as microemulsões apresentam baixa viscosidade, possuem grande capacidade para o transporte de drogas, demonstram comprovada propriedade promotora de absorção para as drogas veiculadas e são facilmente obtidas, sem a necessidade de utilização de equipamentos sofisticados e de componentes de custo proibitivo. O presente artigo objetiva revisão de literatura abordando o tema e os principais estudos relacionados com a utilização de microemulsões como sistemas de liberação de drogas oftálmicas.

Descritores: Administração tópica; Absorção; Composição de medicamentos; Tecnologia farmacêutica; Soluções oftálmicas; Disponibilidade biológica; Emulsões; Fármaco-cinética; Solubilidade; Sistemas de liberação de medicamentos; Córnea

ABSTRACT

The conventional ophthalmic dosage forms are relatively simple: usually, water-soluble drugs are delivered in aqueous solution and water-insoluble drugs are prepared as suspensions or ointments. However, these delivery systems currently used present very low corneal bioavailability, systemic exposure because of nasolacrimal drainage and lack of efficiency in the posterior segment of ocular tissue. Recent research efforts have focused on the development of new ophthalmic drug delivery systems. As a result of these efforts, microemulsions are promising dosage forms for ocular use. These delivery systems are dispersions of water and oil that require surfactant and co-surfactant agents in order to stabilize the interfacial area. The microemulsions have a transparent appearance, thermodynamic stability and small droplet size of the dispersed fase (<1,0 mm), providing them with the capacity of being sterilized by filtration. Furthermore, these systems offer additional advantages that include: low viscosity, great ability as drug delivery vehicles, widened properties as absorption promoters and easiness of preparation, which do not require much energy and the use of special equipments. In this review, we present the technology and some preliminary studies of microemulsions in relation to ocular drug delivery systems.

Keywords: Topical administration; Absorption; Drug compounding; Pharmaceutical technology; Ophthalmic solutions; Biological availability; Emulsions; Pharmacokinetics; Solubility; Drug delivery systems; Cornea


 

 

INTRODUÇÃO

A administração tópica de drogas na forma de soluções, suspensões, géis e pomadas é o método mais comum de tratamento de doenças oculares. Entretanto, essa via apresenta alguns problemas como baixa biodisponibilidade, perda da droga pela circulação sistêmica e a baixa, ou praticamente inexistente, penetração da formulação no segmento posterior do olho.

A baixa biodisponibilidade ocular é resultante de barreiras anatômicas e fisiológicas do olho, que incluem o epitélio corneal, a dinâmica das lágrimas, a drenagem nasolacrimal e alta eficiência da barreira ocular sangüínea. Geralmente, apenas 5% da dose administrada atinge os tecidos intra-oculares através da penetração corneal, enquanto que a grande parte é absorvida sistemicamente pela conjuntiva e duto nasolacrimal podendo causar reações adversas em diversas partes do organismo. Para se atingir o nível terapêutico adequado, são necessárias elevadas concentrações e/ou freqüentes administrações, o que pode aumentar o risco de efeitos adversos sistêmicos e interações medicamentosas.

Devido a estas dificuldades, veículos como as microemulsões podem se tornar uma alternativa interessante por apresentarem transparência, estabilidade termodinâmica, baixa viscosidade e facilidade de produção e de esterilização, além do aumento da solubilidade e estabilidade de drogas, podendo proporcionar um aumento da biodisponibilidade, principalmente para drogas pouco solúveis(1).

 

HISTÓRICO

O termo microemulsão foi introduzido na década de 40 por Hoar e Schulman para definir um sistema fluido e translúcido obtido pela titulação até o ponto de clarificação de uma emulsão simples com um álcool de cadeia média como o hexanol ou o pentanol(2). No ponto de clarificação não foi necessária agitação e uma dispersão transparente foi formada espontaneamente. Estes pesquisadores observaram, através de microscopia eletrônica, que as dispersões transparentes formadas eram constituídas de microglóbulos de óleo em água (O/A) ou água em óleo (A/O), cercados por um filme interfacial misto de emulsionante e co-emulsionante (álcool). O tamanho dos glóbulos variava de 100 a 600 nm, significativamente menores que os da emulsão simples inicial, justificando seu aspecto transparente e o termo microemulsão (Figura 1). Este termo foi revisado muitas vezes e a definição de Danielsson e Lindman em 1981 que descreve que "as microemulsões são soluções líquidas, opticamente isotrópicas e termodinamicamente estáveis, compostas de água, óleo e tensoativo" tem sido a mais aceita(3).

Em uma definição mais ampla, as microemulsões são dispersões de água e óleo estabilizadas por um emulsionante e por um co-emulsionante. São sistemas transparentes, termodinamicamente estáveis e apresentam partículas de tamanho menor que 1,0 mm(4). Elas requerem a adição de quantidades elevadas de emulsionantes para estabilizar a grande área interfacial criada pelos nanoglóbulos e a adição de co-emulsionantes para garantir uma viscosidade adequada(5).

 

 

Estes sistemas diferem das emulsões simples por apresentarem tensão interfacial bem menor, já que as moléculas do co-emulsionante se intercalam entre as moléculas do emulsionante na interface óleo-água afetando a curvatura do glóbulo. Esta baixa tensão interfacial promove a formação espontânea desses sistemas monofásicos, não havendo necessidade de imposição de uma força externa, além da formação de glóbulos de tamanho reduzido e a estabilidade termodinâmica do sistema. Já as emulsões simples são dispersões grosseiras bifásicas, turvas ou leitosas, termodinamicamente instáveis e requerem energia externa para sua formação(6).

Em 1973, foram desenvolvidas pesquisas no sentido de aumentar a recuperação do petróleo utilizando as microemulsões. Nestas pesquisas, os sistemas do tipo bicontínuo apresentaram grande interesse na remoção do petróleo preso nos poros dos reservatórios, oferecendo grande potencial econômico e estimulando a pesquisa desses sistemas. Na década de 80 até a atual, têm sido desenvolvidos trabalhos na área de produção de nanopartículas de materiais como metais, semicondutores, supercondutores, materiais magnéticos e fotográficos, látex, entre outros, utilizando as microemulsões como nanoreatores. Além disso, as microemulsões do tipo O/A têm despertado interesse em indústrias de lubrificantes, de metais, agroquímica (formulação de pesticidas), alimentícia (óleos flavorizantes), detergente e tintas(5).

A utilização das microemulsões na tecnologia farmacêutica é relativamente recente e, devido às potenciais vantagens oferecidas, elas têm despertado grande interesse como sistemas de liberação de drogas.

O interesse na aplicação das microemulsões como veículos de preparações farmacêuticas se deve à capacidade desses sistemas de solubilizar substâncias hidrofílicas e lipofílicas ao mesmo tempo, e, também, de melhorar a solubilidade e estabilidade dos fármacos. A presença de emulsionantes aumenta a permeabilidade da membrana celular, o que facilita a absorção do fármaco, possibilitando uma maior biodisponibilidade(5). Além disso, devido à formação espontânea desses sistemas, fatores como intensidade e duração da agitação, temperatura, tempo de emulsificação, entre outros, podem ser evitados, sendo possível, também, a esterilização por filtração devido à baixa viscosidade por elas apresentada. Esses fatores tornam as microemulsões bastante atrativas do ponto de vista da produção farmacêutica(4).

A principal desvantagem das microemulsões se relaciona à utilização de elevadas concentrações de emulsionantes e co-emulsionantes em relação às outras emulsões, possibilitando a ocorrência de irritação local. Assim, esses adjuvantes, além de apresentarem como objetivo principal permitir a formação dos sistemas devem, também, ser atóxicos e ter permissão para emprego em produtos farmacêuticos. Entretanto, esta limitação varia dependendo do uso pretendido para a preparação em questão, havendo maior disponibilidade de substâncias para produtos que visam a administração cutânea, maiores restrições aos que se destinam à via oral e, principalmente, aos que devem ser preparados de forma estéril (parenterais e oftálmicos).

Principais componentes utilizados no preparo de microemulsões destinadas à aplicação ocular(7)

Emulsionantes

São substâncias caracterizadas pela presença de uma região polar e outra apolar em suas estruturas moleculares. Podem formar emulsões do tipo água em óleo (A/O) ou óleo em água (O/A), as quais são definidas, principalmente, pelo equilíbrio apresentado entre a parte polar e a apolar do emulsionante empregado, denominado tecnicamente de Equílibrio-Hidrófilo-Lipófilo (EHL). O EHL é numericamente representado em uma escala com valores que vão de zero a vinte, em função do tamanho da cadeia polar presente nas moléculas do emulsionante. Assim, valores inferiores a dez indicam predominância da parte apolar nessas, tornando-as adequadas para o preparo de emulsões A/O. Ao contrário, valores superiores a dez apontam a prevalência da região polar e o emprego dessas substâncias na obtenção de emulsões O/A.

Os principais emulsionantes utilizados no preparo de microemulsões são aqueles de natureza não iônica, como os copolímeros dos óxidos de etileno e propileno ("poloxamers"), polissorbatos e polietileno glicóis (PEG) (Figura 2). Os emulsionantes iônicos são geralmente tóxicos para utilização em microemulsões destinadas à aplicação ocular, principalmente se considerarmos a elevada concentração necessária dessas substâncias para a estabilização da grande área de interface formada entre as fases oleosa e aquosa. Entre os principais representantes dos grupos de emulsionantes citados, destacamos a utilização do poloxamer 188, do polissorbato 80 e do PEG 200 devido, principalmente, à baixa viscosidade apresentada por estes, o que contribui com a praticidade do processo de preparação do sistema e não influencia significativamente nas propriedades reológicas do produto obtido.

 

 

Os emulsionantes de natureza anfótera, como as lecitinas, apresentam baixa toxicidade e são substâncias utilizadas de maneira corriqueira na produção de emulsões lipídicas injetáveis como, por exemplo, em formulações destinadas à nutrição parenteral (Figura 2). Elas estão entre os principais emulsionantes utilizados no preparo de microemulsões. Entretanto, na utilização dessas substâncias é necessário observar o grau de pureza por elas apresentado, pois suas propriedades físicas e emulsionantes dependem da composição e da concentração dos fosfolípides e dos ácidos graxos presentes em cada amostra.

A carga dos glóbulos que constituem a fase interna das microemulsões pode influenciar na sua absorção pela via ocular. Como a córnea é carregada negativamente, a carga positiva dos glóbulos, promovida pela utilização de pequenas quantidades de emulsionantes catiônicos, além dos não iônicos já presentes, permitiria um maior tempo de permanência desses sistemas nessa estrutura ocular, influenciando a liberação da droga.

Co-emulsionantes

Os co-emulsionantes são responsáveis pela redução adicional da tensão interfacial necessária para a formação e estabilidade termodinâmica das microemulsões, além de promoverem fluidificação do filme interfacial formado pelo emulsionante, o que impede a elevação significativa da viscosidade do sistema obtido.

Os principais co-emulsionantes utilizados no preparo de microemulsões são álcoois e glicóis de baixa massa molecular e que apresentam uma cadeia carbônica entre dois e dez carbonos. Uma avaliação criteriosa da toxicidade ocular do co-emulsionante a ser empregado no preparo de uma microemulsão é considerada de fundamental importância na elaboração de uma formulação desse tipo de sistema, tendo em vista que essas substâncias podem apresentar efeitos irritantes significativos, como por exemplo, os álcoois de baixa massa molecular.

Fase oleosa

Os principais parâmetros relacionados com a escolha da fase oleosa a ser empregada no preparo de uma microemulsão estão relacionados, principalmente, à possibilidade de obtenção do próprio sistema e das características de solubilidade da droga a ser veiculada. Assim, os óleos de elevada cadeia carbônica não permitem a obtenção de microemulsões e aqueles de natureza polar (triglicérides, principalmente) permitem a dissolução de maiores concentrações de drogas lipossolúveis. Assim, entre os principais óleos estudados, destacamos o miristato de isopropila, o óleo de soja e o Myglyol® 812 (triésteres de glicerol dos ácidos cáprico e caprílico). O grau de pureza destes óleos deve ser elevado, no sentido de prevenir a ocorrência de irritação que pode ser provocada pelos contaminantes presentes em óleos com baixa pureza.

Fase aquosa

Para composição da fase aquosa pode ser necessária a adição de tampões e agentes isotonizantes, no sentido de obter e manter um pH favorável não só à via de administração como também à estabilidade do fármaco empregado. A solução de cloreto de sódio a 0,9% é mais freqüentemente utilizada e, caso seja incompatível com alguma substância da preparação, pode ser substituída por solução de sulfato de sódio, de nitrato de potássio ou de cloreto de potássio. As soluções tampão mais empregadas em produtos oftálmicos são aquelas contendo ácido bórico ou tampões fosfato.

O conservante é um adjuvante indispensável em preparações oftálmicas multi-dose para garantir a manutenção da esterilidade do produto durante o uso. Esses adjuvantes são tóxicos mesmo em concentrações bastante baixas, podendo provocar irritação e ser nocivos para as diferentes camadas da córnea e tecidos que revestem a câmara anterior do olho. Além disso, em olhos inflamados, ulcerados e após cirurgias oftálmicas, eles podem ser altamente tóxicos mesmo em concentrações normais. Os conservantes mais utilizados são o cloreto de benzalcônio, o clorobutanol e os parabenos (nipagin, nipasol).

E, finalmente, para proteger substâncias ativas passíveis de oxidação, um agente antioxidante pode ser necessário. Embora vários adjuvantes desta classe tenham sido aprovados para utilização em produtos oftálmicos, os mais empregados são o bissulfito de sódio, o metabissulfito de sódio e o EDTA dissódico; podendo ser necessária, inclusive, a utilização de mais de um antioxidante.

Estrutura e preparo das microemulsões

As microemulsões podem ser de três tipos: O/A, A/O ou bicontínua (Figura 3). Geralmente, os sistemas do tipo O/A são formados na presença de baixa concentração de fase oleosa e com emulsionantes que apresentam equilíbrio hidrófilo-lipófilo (EHL) na faixa de 8-18; os do tipo A/O são formados quando a concentração de fase aquosa é baixa e com emulsionantes com EHL na faixa de 3-8; e, os do tipo bicontínuo se formam quando as concentrações de fase aquosa e fase oleosa são similares e tanto o óleo quanto à água existem como uma fase contínua(6, 8).

 

 

A presença de emulsionantes nesses sistemas promove uma interação da formulação com a córnea, desestruturando a camada lipídica desta estrutura e, conseqüentemente, aumentando a permeabilidade corneana.

Na preparação das microemulsões, devem ser construídos diagramas de fase pseudoternários para definir a extensão e a natureza das regiões de formação destes sistemas. Para isto, após a seleção dos constituintes da formulação, um diagrama é construído, assumindo-se que as microemulsões são sistemas formados por três componentes: fase aquosa, fase oleosa e uma mistura de emulsionantes (emulsionante/co-emulsionante), sendo que cada vértice do diagrama indica um destes componentes. Qualquer combinação dos constituintes pode ser representada como porcentagem no diagrama(6).

Entretanto, devido à complexidade e ao longo tempo investido no preparo desses diagramas, o método da titulação com co-emulsionante tem sido comumente utilizado (Figura 4). Neste método, pela adição da fase aquosa, fase oleosa e emulsionante é formada uma emulsão inicial de aspecto leitoso. Esse sistema é então titulado com o co-emulsionante até obtenção da microemulsão, caracterizada pelo aspecto transparente ou translúcido.

 

 

Contrária a facilidade de preparação, a caracterização da microestrutura desses sistemas requer a aplicação de técnicas sofisticadas de análise, diferentes das utilizadas rotineiramente(8). Algumas propriedades são de obtenção relativamente simples, em que se utilizam medidas de viscosidade, condutividade e tensão superficial. Entretanto, para caracterização da natureza isotrópica, são utilizadas técnicas de ressonância magnética nuclear (RMN), dispersão dinâmica, estática e eletroforética da luz, raios-X e microscopia eletrônica, técnicas nem sempre disponíveis com facilidade.

Potencialidades que justificam a administração oftálmica

Diversos estudos têm sido realizados com relação ao desenvolvimento de microemulsões destinadas à administração ocular.

Historicamente, o estudo da aplicação ocular de microemulsões parece ter sido iniciado por um grupo de pesquisadores italianos que investigou primeiramente, em 1988, a permeabilidade do timolol, incorporado em microemulsões O/A contendo 28,7% de lecitina de ovo como emulsionante, através de uma membrana lipídica artificial(9-10). Os resultados obtidos demonstraram que a permeabilidade do timolol dependia da concentração de ácido octanóico (que aumentava a lipofilia da droga por formação de par iônico) na microemulsão. Experimentos posteriores, realizando teste in vivo, em coelhos, mostraram que as microemulsões são adequadas como veículos para administração oftálmica do timolol.

Trabalhos realizados por Muchtar et al proporcionaram contribuições significativas no campo das microemulsões para aplicação ocular(11). Em uma primeira investigação, o D-8-THC, um composto lipofílico e ativo contra glaucoma, foi incorporado em uma microemulsão constituída de um emulsionante não iônico (poloxamer 188) e fosfolípides da gema do ovo como co-emulsionante. Os resultados obtidos mostraram uma intensa e duradoura redução da pressão intra-ocular após administração da formulação em coelhos com hipertensão ocular. Além disso, também foi demonstrado que, tanto a microemulsão contendo D-8-THC quanto a microemulsão sem a droga (veículo) não apresentaram efeitos oculares irritantes nos animais.

Em um outro estudo, foram avaliadas a permeabilidade através de diferentes membranas (membrana lipídica artificial e pele de camundongo glabro) e a irritação ocular em coelhos, de microemulsões contendo levobunolol. Estas formulações continham fosfatidilcolina de soja (SPC) e colato de sódio como emulsionantes, e hexanoato de sódio ou monobutirilglicerol como co-emulsionante (12). Este estudo confirmou a capacidade da microemulsão em aumentar a permeabilidade das drogas através de membranas que simulam o epitélio corneal. Os resultados obtidos mostraram, ainda, que a microemulsão proporcionou liberação controlada da droga, além de não apresentar efeito ocular irritante.

As microemulsões, como veículos para aplicação oftálmica, também foram estudadas por Siebenbrodt e Keipert(13). Estes pesquisadores solubilizaram, em microemulsões contendo lecitina e Tween® 80, três drogas geralmente utilizadas na terapia ocular tópica: atropina, cloranfenicol e indometacina. As microemulsões foram otimizadas e caracterizadas físico-químicamente. Em um segundo estudo, microemulsões contendo lecitina e diferentes "poloxamers", foram analisadas como possíveis veículos para indometacina, diclofenaco de sódio e cloranfenicol. Os estudos de liberação das drogas, realizados em membrana hidrofílica e em comparação com veículos aquosos ou oleosos padrões; e os estudos de tolerância fisiológica, de- monstraram que as microemulsões obtidas possibilitaram a liberação prolongada das drogas, além de produzirem baixa irritação ocular.

Anselem et al.(14) e Melamed et al.(15) desenvolveram microemulsões contendo maleato de adaprolol. Estes sistemas apresentavam glóbulos da fase interna com tamanho de 100 ± 30 nm, e os parâmetros físico-químicos, a temperatura ambiente e 45°C, não se alteraram por mais de 6 meses. De acordo com os autores, não foi observada irritação ocular após a administração da formulação a um grupo composto de 40 voluntários sadios. Além disso, o efeito promovido pela droga foi prolongado com a administração das microemulsões.

Em um estudo aleatório, do tipo duplo-cego, realizado por Naveh et al, a pilocarpina incorporada em uma microemulsão preparada com um emulsionante anfotérico (Miranol® MHT) e fosfolípides de gema de ovo (Lipoid® E-80), foi aplicada, em dose única, a coelhos com pressão normal, produzindo uma diminuição progressiva e prolongada da pressão ocular(16). O efeito foi mais prolongado e intenso que o induzido pela dose correspondente do colírio padrão de cloridrato de pilocarpina.

A toxicidade de uma microemulsão catiônica, descrita como um veículo para administração intravenosa ou ocular, foi avaliada em um outro estudo realizado pelo grupo de Klang et al.(17). Este veículo foi formulado com uma combinação de emulsionantes compreendendo fosfolípides da gema de ovo, "poloxamer 188" e estearilamina. Os resultados obtidos após estudos de tolerância ocular em coelhos e estudos de microscopia eletrônica das córneas tratadas, indicaram que o veículo foi bem tolerado e isento de efeitos tóxicos.

Um estudo clínico foi desenvolvido, em 1994, com o objetivo de comparar a atividade de uma microemulsão com a de um colírio comercial, ambos à base de pilocarpina(18). Durante sete dias, os pacientes receberam, ao acaso, a administração, duas vezes ao dia, da microemulsão ou a aplicação, quatro vezes ao dia, do colírio convencional. Não foi observado nenhum efeito adverso nos dois tratamentos e a pressão reduziu-se em 25% nos dois grupos durante esse período. Os resultados mostraram que as microemulsões são capazes de prolongar a ação da droga, de forma que a sua administração duas vezes ao dia apresentou o mesmo efeito da administração quatro vezes ao dia do colírio convencional.

O desenvolvimento de uma microemulsão contendo anfotericina B para o tratamento de micose ocular foi descrito em 1996 por Cohen et al.(19). O veículo foi preparado com Intralipid 20% (emulsão lipídica injetável contendo óleo de soja e fosfolípides da gema de ovo). A microemulsão, contendo 0,5% p/v da droga, foi melhor tolerada em olhos de coelhos quando comparada com os colírios de referência preparados extemporaneamente. Entretanto, a penetração ocular de anfotericina B não foi melhorada. Os autores atribuem esse efeito à presença de desoxicolato de sódio, que atua como promotor de absorção, nos colírios de referência.

Uma microemulsão constituída de um emulsionante não iônico ("poloxamer 188") e fosfolípides da gema do ovo como co-emulsionante, contendo indometacina, foi submetida a estudos de irritação ocular em coelhos e a testes de permeabilidade através de córneas de coelhos recém coletadas(20). Novamente, nenhum efeito irritante, inflamatório ou tóxico foi detectado após administração do veículo, em intervalos de uma hora, durante cinco dias. O coeficiente de partição aparente da droga incorporada na microemulsão foi 3,8 vezes maior que o da indometacina em solução aquosa. Uma menor ionização da droga na microemulsão que na solução pode também indicar uma possível razão para o aumento do coeficiente de partição.

A biodisponibilidade ocular tópica da indometacina veiculada em microemulsões também foi estudada por Muchtar et al.(21). Estas microemulsões, preparadas com "poloxamer 188" e lecitina de soja, continham 0,1% p/v de indometacina. Os resultados obtidos demonstraram que as microemulsões foram capazes de aumentar em três vezes a concentração de indometacina na córnea, humor aquoso e corpo ciliar da íris uma hora após administração da preparação. Além disso, segundo os pesquisadores, os componentes do veículo podem atuar como promotores de penetração ou como estimuladores de endocitose.

Finalmente, Hasse e Keipert estudaram microemulsões contendo pilocarpina e formuladas com lecitina como emulsionante, propilenoglicol e polietilenoglicol como co-emulsionantes e miristato de isopropila como fase oleosa(22). Estas formulações apresentaram baixa viscosidade e um valor de índice de refração adequados para administração oftálmica. Após estudos in vivo, foi observado um efeito farmacológico mais prolongado destas preparações, em coelhos, quando comparado com o de uma solução aquosa da droga.

Embora existam trabalhos utilizando as microemulsões desde a década de 40, apenas nos últimos dez anos tem sido estudado o potencial desses sistemas como veículos para a administração oftálmica de drogas.

As formulações convencionais utilizadas em oftalmologia apresentam baixa biodisponibilidade das drogas nelas veiculadas, que é causada, principalmente, pela drenagem lacrimal e pela barreira corneal, necessitando, portanto, de administrações freqüentes para garantir a eficácia do tratamento.

Devido a estes motivos as microemulsões se tornam adequadas como sistemas de administração ocular tópica de drogas. Elas apresentam facilidade de formulação e esterilização, são sistemas estáveis, transparentes e de baixa viscosidade, tornando-as adequadas para a preparação na forma de colírios. Como foi observado nos diversos estudos apresentados, as microemulsões são capazes de aumentar a solubilidade e estabilidade de drogas, promovendo, dessa forma, uma maior biodisponibilidade ocular.

Ainda é crescente o número de estudos utilizando esses sistemas que visam a utilização de emulsionantes, co-emulsionantes e óleos aceitáveis do ponto de vista farmacêutico. A utilização de microemulsões em formulações farmacêuticas de uso oftálmico tem sido uma área de pesquisa bastante atrativa, oferecendo possibilidades de contornar as dificuldades com relação à administração de drogas por essa via, e também benefícios potenciais.

Estudos visando a obtenção de microemulsões contendo antiinflamatórios esteróides para o tratamento de uveítes estão, atualmente, sendo realizados na Faculdade de Farmácia da Universidade Federal de Minas Gerais, em colaboração com o Serviço de Uveítes do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido para publicação em 19.09.2002
Aceito para publicação em 16.01.2003


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