Zélia Maria da Silva Corrêa1; Luciane Cristina Dreher Irion2; Ítalo Mundialino Marcon3; Raquel Goldhardt4; Giovanni Marcos Travi3
DOI: 10.1590/S0004-27492003000200018
RESUMO
OBJETIVO: Relatar o caso de um paciente com carcinoma de pulmão cuja primeira metástase detectada foi em coróide e a abordagem diagnóstica deste caso. MÉTODOS: Um homem de 35 anos, em tratamento devido a uma condensação pulmonar isolada, referiu baixa da acuidade visual súbita, dor, secreção e olho vermelho (olho direito) há 10 dias. Ao exame oftalmológico foi detectada a presença de descolamento não regmatogênico de retina e múltiplos focos tumorais em coróide confirmado pela ultra-sonografia ocular diagnóstica. Foi sugerida biópsia aspirativa com agulha fina (BAAF) para diagnosticar possível doença metastática. A biópsia aspirativa com agulha fina foi realizada sob anestesia peribulbar e sedação. A rota escolhida foi transvítrea através de esclerotomia a 4 mm do limbo. O procedimento foi monitorado via oftalmoscopia binocular indireta. Foram obtidas 2 amostras de focos tumorais diferentes. Após a biópsia aspirativa com agulha fina, as amostras foram encaminhadas para processamento, fixação e coloração pelos métodos Papanicolaou e hematoxilina-eosina. RESULTADOS: A citologia confirmou a suspeita de múltiplos focos metastáticos coroídeos. Os aspirados ocular e pulmonar revelaram ser de mesma origem devido à reação positiva com pan-citoqueratina (AE1/AE3). O paciente evoluiu para óbito 4 meses após diagnóstico citológico de carcinoma metastático ocular. CONCLUSÕES: A biópsia aspirativa com agulha fina foi eficiente em diagnosticar e correlacionar a citologia ocular com o tumor primário por métodos citoquímicos neste caso. A biópsia aspirativa com agulha fina ainda deve ser usada em casos selecionados e pesquisas futuras serão necessárias para que este procedimento diagnóstico seja considerado padrão em oftalmologia.
Descritores: Neoplasias pulmonares; Neoplasias da coróide; Neoplasias da coróide; Imunohistoquímica; Ultra-sonografia; Biopsia por agulha; Olho; Carcinoma; Neoplasias oculares; Hematoxilina; Amarelo de eosina-(YS); Relato de caso
ABSTRACT
PURPOSE: To report a case of a patient with lung carcinoma in which the first detected metastasis was to the choroid, how it was diagnosed and confirmed. METHODS: A 35 year-old white male, while being treated for a solitary pulmonary condensation, reported sudden loss of vision, pain, discharge and red eye (right eye) for 10 days. During the ophthalmic examination a nonregmatogenous retinal detachment as well as multiple choroidal tumors were confirmed by diagnostic ocular ultrasound. Fine-needle aspiration biopsy (FNAB) was suggested to diagnose a possible metastatic disease. Fine-needle aspiration biopsy was performed under peribulbar anesthesia with sedation. A transvitreous route was chosen through a sclerotomy 4 mm from the limbus. The procedure was monitored via binocular indirect ophthalmoscopy. Two sample aspirates were obtained from different tumour foci. After fine-needle aspiration biopsy, the aspirates were sent for processing, fixation and stained with Papanicolaou and HE. RESULTS: Cytology confirmed the diagnosis of multiple metastatic tumors. Immunocytochemistry of ocular and lung aspirates revealed a common cell origin by a pankeratin (AE1/AE3) positive test. Regardless of systemic treatment with chemotherapy and improvement of the ocular status, the patient died 4 months after cytological diagnosis of metastatic carcinoma of the choroid. CONCLUSIONS: Fine-needle aspiration biopsy was efficient to diagnose and correlate ocular cytology with the primary tumor by imunohistochemical methods in this case. Fine-needle aspiration biopsy should still be used only in selected cases and further research will be necessary for it to become a standard diagnostic procedure in ophthalmology.
Keywords: Lung neoplasms; Choroid neoplasms; Choroid neoplasms; Immunohistochemistry; Ultrasonography; Needle biopsy; Eye; Carcinoma; Eye neoplasms; Hematoxylin; Eosine yellowish-(YS); Case report
INTRODUÇÃO
A biópsia aspirativa com agulha fina (BAAF) em lesões intra-oculares tem se mostrado um método confiável e seguro para estabelecer o diagnóstico em casos selecionados(1-7) e tem sido amplamente divulgada para casos duvidosos de tumores intra-oculares(2-3,7), na necessidade de confirmação diagnóstica (3-4) ou para guiar o tratamento adequado(8).
O uso da biópsia aspirativa com agulha fina (BAAF) em oftalmologia foi relatado em alguns artigos nos anos 40 e 50(7), mas seu uso mais intenso se deu a partir de 1979 com a publicação do artigo de Jakobiek e colaboradores(4). Após uma série de publicações de Augsburger e colaboradores(1-3,5), a BAAF começou a ser amplamente discutida e usada em vários centros de especializados em oncologia oftalmológica.
A indicação precisa da BAAF é muito importante quando se considera este método diagnóstico, uma vez que a sua utilização ainda não está indicada como rotina em todos os casos de tumores intra-oculares(1). A BAAF tem sido realizada em nosso serviço com a aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa nos seguintes casos: 1- incerteza diagnóstica mesmo após todos os exames não-invasivos que se dispõe, 2- recusa do paciente em aceitar tratamento mediante o diagnóstico clínico de neoplasia maligna intra-ocular e 3- na suspeita de tumor metastático quando se desconhece a neoplasia primária ou o paciente não tem diagnóstico de doença metastática como no caso descrito a seguir.
RELATO DO CASO
Um homem branco com 35 anos, inicialmente avaliado no Departamento de Pneumologia devido à dor em parede lateral do hemi-tórax esquerdo e tosse, foi encaminhado ao Serviço de Oftalmologia com queixa de diminuição súbita da acuidade visual em olho direito acompanhado de dor, hiperemia conjuntival e secreção muco-purulenta há 10 dias. Antes da consulta, usou Terramicina pomada (1 vez ao dia) durante dois dias e gentamicina colírio, sem obter melhora.
Sua história pregressa incluía uma radiografia de tórax realizada há 3 meses que mostrava consolidação em lobo inferior esquerdo. Devido a suspeita de pneumonia, o paciente foi tratado com antibióticos, entretanto sem melhora do quadro. Não foram relatados episódios de febre desde o início do quadro pulmonar apesar dos episódios de sudorese noturna. O paciente negou emagrecimento, dispnéia e tabagismo.
Ao exame físico, o paciente apresentou-se em bom estado geral, lúcido, orientado, eupneico, acianótico, hidratado, anictérico. Sinais vitais estavam estáveis. A ausculta pulmonar revelou diminuição do murmúrio vesicular na metade inferior esquerda. Não foram detectadas quaisquer alterações em outros sistemas.
No exame oftalmológico inicial (03/08/1999), a acuidade visual medida era: OD=MM 30 cm e OE=20/20. Na biomicroscopia do segmento anterior observou-se, no olho direito, uma hiperemia conjuntival 3 a 4+, secreção mucosa abundante e pupilas pouco reagentes à luz. O olho esquerdo apresentou-se dentro dos limites da normalidade. (Fig. 1) A pressão intra-ocular (PO) medida foi: OD=19 mmHg e OE=11 mmHg (13:40h). A oftalmoscopia binocular indireta revelou descolamento de retina não-regmatogênico e coróide elevada irregularmente havendo a suspeita de massa intra-ocular em OD (Fig. 2A). Devido ao extenso descolamento exsudativo da retina não foi possível avaliar com segurança outras características da lesão como coloração, presença de pigmentos em superfície e formato da lesão. OE estava normal. A ultra-sonografia ocular diagnóstica (com sonda de 15 mHz, Mentor Instruments, Bromall, MA, USA) mostrou duas massas elevadas na coróide, localizadas nasal superior e inferior à papila, medindo cerca de 3,65 mm de espessura (lesão superior) e 4,25mm de espessura (lesão inferior) com descolamento não-regmatogênico da retina adjacente (Fig. 2B).
As hipóteses diagnósticas consideradas foram tumor ocular de provável origem metastática versus endoftalmite endógena.
Foi proposta a biópsia aspirativa com agulha fina (BAAF) via transvítrea da lesão ocular e biópsia da lesão pulmonar via broncoscopia uma vez que havia dúvida do clínico quanto à origem metastática da lesão. Devido à citologia obtida na biópsia pulmonar não ter um tipo celular característico (Fig. 3), optou-se por realizar a biópsia aspirativa com agulha fina (BAAF) em OD, 3 dias depois.
A BAAF ocorreu sem intercorrências exceto por uma hemorragia vítrea leve (1+) que reabsorveu em 4 dias. Vinte e quatro horas depois o olho apresentava-se mais calmo e menos doloroso.
Devido ao resultado citológico coincidente da BAAF ocular e a citologia pulmonar (Fig. 3), optou-se pela quimioterapia sistêmica. Quarenta dias após BAAF foi realizada nova avaliação oftalmológica do paciente que já havia realizado 2 sessões de quimioterapia.
A acuidade visual medida foi: OD=20/400 com janela nasal e OE=20/20. A PO medida foi OD= 9 mmHg e OE=10 mmHg (15:35h). A biomicroscopia do segmento anterior revelou OD calmo, com hiperemia 1+, sem secreção e reflexo pupilar amarelado. OE apresentou-se dentro dos limites da normalidade. A oftalmoscopia binocular indireta do olho direito revelou regressão da massa superior e retina colada nesta região, um dos pontos biopsiados (superior) foi visualizado, e a retina adjacente estava aplicada (Fig. 5-esquerda). Entretanto ainda havia massa inferior com descolamento de retina nesta área. OE apresentou-se normal. A ultra-sonografia diagnóstica revelou massa intra-ocular inferior com algumas lacunas hiperecogênicas sugerindo necrose intratumoral. A espessura média desta lesão pelo ultra-som foi 3,25 mm e descolamento da retina persistente sobre a mesma (Fig. 5-direita). Na região superior observou-se apenas um espessamento da coróide sugerindo uma regressão tumoral satisfatória.
Dois meses depois, durante o tratamento com quimioterápicos, o paciente foi re-internado com dor torácica intensa e epistaxe, na investigação laboratorial foi detectada anemia severa. O quadro ocular permaneceu inalterado. O paciente evoluiu para óbito aproximadamente 4 meses após o diagnóstico do câncer metastático em coróide.
MÉTODOS
A técnica usada para a BAAF já foi previamente descrita(1-2). Este procedimento tem sido realizado em ambiente cirúrgico sob cuidados de assepsia semelhantes àqueles usados em cirurgias intra-oculares. Foi usada uma agulha de gauge 23 e comprimento de 30 mm, conectada a um segmento de equipo de soro com cerca de 40 cm que, por sua vez, estava conectado a uma seringa descartável de 10 ml com a qual se realiza a aspiração. O procedimento foi monitorado via oftalmoscopia binocular indireta. A rota escolhida foi transvítrea através de uma esclerotomia a 4 mm do limbo nasal superior. Após bloqueio anestésico retrobulbar e sedação leve, a BAAF foi realizada em 2 pontos diferentes pela perfuração da retina nas áreas com menor quantidade de descolamento. A aspiração manual do conteúdo tumoral foi realizada pelo auxiliar. Após a aspiração, a agulha foi retirada num movimento contínuo seguindo trajeto semelhante ao que a mesma foi introduzida no olho seguido de suave compressão digital por cerca de 60 segundos para aumentar a pressão intra-ocular e diminuir o sangramento vítreo.
A seguir a agulha foi desconectada do tubo de silicone e conectada a uma seringa descartável de 5 ml usada para aspirar 1-2 ml de solução salina balanceada com objetivo de lavar o conteúdo celular contido no lúmen da agulha.
O mesmo procedimento foi então repetido para colher material de outra região do tumor. O material obtido nas 2 amostras foi encaminhado imediatamente para processamento, cito-centrifugado, fixação e coloração tipo Papanicolau e hematoxilina-eosina no laboratório de patologia.
Além destes, foram usados anticorpos para citoqueratina (AE1/AE3) para confirmar a presença de células tumorais tipo carcinoma (neoplasia maligna de origem epitelial) metastático e o HMB-45 para afastar a possibilidade de ser um melanoma maligno primário da coróide.
RESULTADOS
Descrição Cito-patológica (Fig. 3)
Broncoscopia
Biópsia endobrônquica mostra neoplasia maligna não-pequenas células (escasso tecido neoplásico com necrose e distorções artefaturais), provável adenocarcinoma.
Linfonodos subcarinais, paratraqueais, inferiores direitos apresentam linfadenite crônica com antracose.
Laudo da BAAF do olho direito
Em um dos dois esfregaços identifica-se um grupamento de células pleomórficas com núcleo hipercromático e características sugestivas de malignidade. Diagnóstico: neoplasia maligna indiferenciada, compatível com carcinoma metastático.
Imuno-citoquímica (Fig. 4)
Foram realizados testes HMB-45 e pan-queratina (AE1/AE3) sendo que ambos aspirados ocular e pulmonar apresentaram-se AE1/AE3 positivos e HMB-45 negativos.
Considerando estes achados, o diagnóstico final foi carcinoma broncogênico não-pequenas células e metástase ocular direita.
DISCUSSÃO
O carcinoma metastático no olho é a neoplasia intra-ocular mais prevalente entre os adultos. O sítio primário mais comum é mama nas mulheres e o pulmão entre os homens(9), como ocorreu no caso descrito. A maioria dos tumores metastáticos intra-oculares envolve a coróide na proporção 8:1 em relação às metástases orbitárias(10). Aproximadamente 80% das pessoas afetadas apresentam-se com tumor único em um olho, enquanto que os 20% restantes têm tumores múltiplos, bilaterais ou os dois(1). As metástases oculares na coróide evoluem em 75% dos casos com descolamento seroso da retina sensorial muito mais extenso que a massa tumoral. O comprometimento macular depende da localização tumoral(9). Alguns casos de metástases oculares de carcinoma broncogênico foram descritas(10-13), cada uma com suas particularidades de apresentação e evolução que salienta a multiplicidade de apresentações deste tumor. Nesse caso, o paciente apresentou múltiplos focos tumorais e descolamento de retina não-regmatogênico (exsudativo) exuberante comprometendo parcialmente a mácula. Na oftalmoscopia binocular indireta, as metástases de coróide costumam se apresentar como uma infiltração difusa com características semelhantes àquelas da neoplasia primária. Apesar disto, o grau de diferenciação celular torna a identificação do sítio primário da neoplasia difícil ou por vezes, impossível(1). A ultra-sonografia do carcinoma metastático de coróide(9) caracteriza-se por ecos de alta amplitude e intensa refletividade da lesão que geralmente não é muito espessa quando comparada ao exuberante descolamento de retina associado. Apesar da presença de dois focos tumorais em um olho ser um achado altamente sugestível de metástase ocular; a dificuldade de avaliar características tumorais pelo descolamento exsudativo da retina, o quadro clínico sistêmico não compatível com doença metastática e a importância deste diagnóstico na terapia sistêmica do paciente levaram à indicação da BAAF para elucidação diagnóstica.
Vários fatores devem ser considerados no planejamento da biópsia aspirativa com agulha fina como: tipo de tumor, tamanho, localização, extensão do descolamento de retina associado e a transparência dos meios(1). Os tumores metastáticos do segmento posterior (coróide) podem ser biopsiados via transescleral ou transvítrea(1-2), sendo a segunda mais utilizada. A observação da lesão durante o procedimento pode ser direta (microscópica) ou indireta (oftalmoscópio binocular indireto)(1). A escolha do local de entrada se deu com o objetivo de propiciar a melhor observação do trajeto da agulha durante a BAAF, não somente pela localização do tumor, mas também pelas condições sistêmicas do paciente que foi submetido ao procedimento sentado à frente da cirurgiã. Não é obrigatório que o local de entrada da agulha seja oposto à lesão uma vez que já foram descritos procedimentos trans-esclerais(1), entretanto um ângulo mínimo de 30 a 45 graus entre a lesão e o sítio de entrada da agulha tem dado bons resultados na experiência dos autores. Portanto a opção foi pela via transvítrea com observação indireta. O número de amostras colhidas varia de acordo com o cirurgião e costuma ser no mínimo duas(3,5). O preparo e coloração dos aspirados segue a mesma rotina dos preparos citológicos usados em amostras de outros órgãos. O uso da imuno-citoquímica no diagnóstico e diferenciação de células neoplásicas tem sido amplamente explorado e deve ser considerado em casos semelhantes a esse.
Alguns aspectos devem ser citados quando se considera biopsiar uma lesão intra-ocular suspeita de malignidade: 1- as complicações potenciais deste procedimento como hemorragia vítrea, descolamento de retina, endoftalmite e catarata traumática, 2- a possível (mas ainda não comprovada) disseminação de células tumorais, 3- a experiência do oftalmologista que realizará o procedimento e o patologista que interpretará o material aspirado e 4- a repercussão da quantidade insuficiente de material para diagnóstico citológico. Cada um destes aspectos merece uma infindável discussão que não cabe neste artigo.
A biópsia aspirativa com agulha fina (BAAF) foi eficiente em diagnosticar e correlacionar a citologia ocular com o tumor primário por métodos citoquímicos neste caso. A BAAF ainda deve ser usada em casos selecionados e pesquisas futuras serão necessárias para que este procedimento diagnóstico seja considerado padrão em oftalmologia.
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Endereço para correspondência
Zélia Maria da Silva Corrêa
Av. Nilo Peçanha, 2421
Porto Alegre (RS) CEP 91330-001
E-mail: [email protected]
Recebido para publicação em 28.09.2001
Aceito para publicação em 04.03.2002
Nota Editorial: Pela análise deste trabalho e por sua anuência na divulgação desta nota, agradecemos à Dra. Clélia Maria Erwenne