Open Access Peer-Reviewed
Artigo Original

Membrana amniótica nas cirurgias reconstrutivas da superfície ocular nas ceratoconjuntivites cicatriciais

Amniotic membrane for ocular surface reconstruction in cicatricial keratoconjunctivitis

José Alvaro Pereira Gomes1; Ciro M. Komagome1; Namir Santos1; Alessandra P. Chaves1; Marcelo C. Cunha1; Denise de Freitas1

DOI: 10.1590/S0004-27491999000500004

RESUMO

Objetivo: A membrana amniótica tem se consolidado como útil adjuvante no tratamento de afecções da superfície ocular. Sua utilização baseia-se na capacidade de beneficiar o processo de epitelização, além de reduzir os processos inflamatório, angiogênico e cicatricial. O objetivo deste trabalho foi investigar a utilização da membrana amniótica como adjuvante no tratamento das ceratoconjuntivites cicatriciais. Métodos: A membrana amniótica foi captada a partir de parto cesárea e conservada em meio de preservação de córnea e glicerol 1:1 e conservada à -80ºC. Onze olhos de 10 pacientes portadores de ceratoconjuntivite cicatricial grave foram submetidos à cirurgia reconstrutiva da superfície ocular empregando membrana amniótica associada (8 casos) ou não (3 casos) a transplante de limbo e conjuntiva. Dos 10 pacientes, 3 tinham diagnóstico de síndrome de Stevens-Johnson (SSJ) (4 olhos), 6 queimadura ocular por álcali (6 olhos) e 1 trauma mecânico (1 olho). Resultados: O tempo médio de seguimento foi de 5,22 meses (variação entre 2 e 13 meses). Um caso de SSJ apresentou infecção pós-operatória e foi excluído da análise dos resultados. Dos outros 10 casos, obtivemos êxito na reconstrução da superfície ocular em 8 casos (80%). Insucesso foi observado em 2 casos de SSJ que apresentavam necrose de córnea no momento da cirurgia (20%). Em relação à acuidade visual, observamos que todos os pacientes apresentaram melhora ou manutenção da acuidade visual. Conclusões: O uso de membrana amniótica constitui uma opção alternativa de grande utilidade na reconstrução da superfície ocular dos casos graves de ceratoconjuntivites cicatriciais que não estejam apresentando necrose estromal. Estudos com maior casuística e tempo de seguimento são necessários para melhor avaliar esse procedimento.

Descritores: Ceratoconjuntivite cicatricial; Membrana amniótica; Transplante de limbo

ABSTRACT

Purpose: Amniotic membrane has been consolidated as an useful adjunct in the treatment of ocular surface disorders. Its use is based on the ability to improve epithelial healing and to decrease inflammatory, angiogenic and cicatricial processes. The purpose of this study was to report the surgical outcome of human amniotic membrane use for surface reconstruction in ocular cicatricial diseases. Methods: Amniotic membrane was obtained at the time of cesarean section and was preserved at -80ºC in glycerol and cornea culture media at a ratio of 1:1. Eleven eyes of 10 patients underwent amniotic membrane transplantation, associated (8 eyes) or not (3 eyes) with corneal limbal graft. Ocular surface reconstruction was performed after chemical burns (6 eyes), trauma (1 eye) and Stevens-Johnson's syndrome (SJS) (4 eyes). Results: Mean follow-up time was 5.22 months (range, 2-13 months). One case of SSJ developed early postoperative infection and was excluded from the analysis. Successful ocular surface reconstruction was achieved in 8 eyes (80%). Surgical failure was observed in 2 cases of SJS who presented corneal melting at the time of surgery (20%). Conclusions: This study suggests that amniotic membrane transplantation is an effective alternative for surface reconstruction in stable ocular cicatricial diseases. Larger studies with longer follow-up are necessary to further analyse this procedure.

Keywords: Cicatricial keratoconjunctivitis; Amniotic membrane; Limbal transplantation

INTRODUÇÃO

A membrana amniótica, parte interna da placenta, é composta por uma membrana basal espessa, formada basicamente de colágeno tipo IV e laminina, e uma matriz estromal avascular 1-3. Na área cirúrgica, tem sido utilizada como enxerto nas queimaduras de pele, na reparação de onfalocele e na prevenção de adesão tecidual em cirurgias da cabeça, abdômen, pelvis, vagina e de laringe 1-3.

Sua utilização baseia-se na capacidade de beneficiar o processo de epitelização por facilitar a adesão e migração das células epiteliais basais, prevenir a apoptose e restaurar o fenotipo epitelial 3. Além disso, reduz os processos inflamatório, angiogênico e cicatricial e possui documentada ação antimicrobiana 1-5. Por não expressar os antígenos de histocompatibilidade HLA-A, B ou DR, a membrana amniótica preservada é considerada imunologicamente inerte, o que a torna uma excelente opção de enxerto 1, 4, 6.

No olho, foi utilizada pela primeira vez em 1940 por De Rotth, na reparação de simbléfaro e defeitos conjuntivais 7. Os resultados observados pelo autor, entretanto, não foram animadores, o que foi atribuído ao fato dele ter utilizado membrana amniótica fresca juntamente com o âmnio, sem um método de preservação mais adequado. Em 1946, Sorsby et al. relataram bons resultados com a utilização de membrana amniótica no tratamento de queimadura química aguda 8. Por razões desconhecidas, o uso da membrana amniótica desapareceu da literatura por décadas. Mais recentemente, o transplante da membrana amniótica foi reintroduzido na reconstrução da superfície ocular nos casos de doenças cicatriciais da córnea e conjuntiva, tais como queimadura, penfigóide cicatricial, eritema multiforme 4, 9, 10; na promoção da cicatrização nos defeitos epiteliais persistentes 11; como enxerto após a remoção cirúrgica de pterígio e tumores 12, 13; no tratamento de bolhas filtrantes com vazamento 14; redução da opacidade corneal pós ceratectomia fototerapêutica 15; como procedimento inicial antes de transplante de limbo nos casos de deficiência de células germinativas limbares 9; e nas reconstruções palpebrais 13.

Devido à fácil obtenção e documentada utilidade em oftalmologia, a membrana amniótica representa uma opção alternativa a ser melhor estudada para o tratamento de afecções da superfície ocular. O objetivo deste trabalho é investigar a utilização da membrana amniótica como adjuvante no tratamento das ceratoconjuntivites cicatriciais.

 

MATERIAL E MÉTODOS

1. Obtenção e preparação da membrana amniótica

A obtenção, preparação e preservação da membrana amniótica foram realizadas de acordo com as normas do protocolo aprovado pela Comissão de Ética da UNIFESP/EPM. Essas normas foram baseadas no protocolo proposto por Tseng et al. 3, 9, seguindo as premissas impostas pela "United States Food and Drug Administration (FDA)" e "The American Association of Tissue Banking (AATB)" 16-18.

A membrana amniótica foi obtida a partir de placentas provenientes de cesáreas eletivas de pacientes do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia da UNIFESP e Hospital Amparo Maternal, após consentimento assinado pelas gestantes. Todas essas pacientes tinham exames sorológicos negativos para HIV-1, Hepatite B (HBsAg) e sífilis (VDRL), que foram re-confirmados pela realização de sorologia do sangue do cordão umbilical após o parto.

Após a obtenção da placenta no centro cirúrgico obstétrico, procedeu-se à sua lavagem com soro fisiológico 0,9% em ambiente estéril. Utilizando-se tesoura e pinça estéreis, separou-se o âmnio do córion, estendendo-o sobre um filtro de nitrocelulose estéril (Millipore, Bedfort, MA, EUA) com a face epitelial para cima (Figura 1). A membrana amniótica e o filtro foram lavados com solução tampão fosfato contendo 1000 U/ml de penicilina, 20 mcg/ml de estreptomicina e 2,5 mcg/ml de anfotericina B, cortados em fragmentos de aproximadamente 10X10 cm, colocados em um recipiente estéril contendo glicerol (Baxter Healthcare Corporation, Stone Mountain, GA, EUA) e meio de preservação de córnea (Ophthalmos, São Paulo/SP, Brasil) na proporção de 1:1 e congelados à -80oC. Amostras de cada membrana obtida foram enviadas para estudo anátomo-patológico e microbiológico (bacterioscopia e cultura) para controle de qualidade. O tempo máximo para utilização das membranas foi de 4 meses após a congelação.

 

 

2. Pacientes

O grupo em estudo incluiu 11 olhos de 10 pacientes consecutivos portadores de ceratoconjuntivite cicatricial, que apresentavam comprometimento visual importante (acuidade visual corrigida igual ou pior que 20/200) e que foram submetidos à cirurgia reconstrutiva da superfície ocular empregando membrana amniótica nos anos de 1998 e 1999. Oito pacientes (80%) eram do sexo masculino e 2 (20%), do sexo feminino. A idade média era 44 anos (variação entre 9 e 75 anos). Dos 10 pacientes, 3 (4 olhos) tinham diagnóstico de síndrome de Stevens-Johnson (SSJ), 6 (6 olhos) queimadura ocular por álcali e 1 (1 olho), trauma mecânico. Os detalhes das características dos pacientes encontram-se especificados na tabela I.

Todos os pacientes foram devidamente instruídos e assinaram um detalhado termo de consentimento sobre o tratamento a que seriam submetidos.

3. Pré-operatório

Os pacientes foram submetidos a exame oftalmológico completo, composto de avaliação da melhor acuidade visual corrigida, biomicroscopia, fundoscopia sob midríase ou ultra-sonografia nos casos de opacidade dos meios e tonometria (aplanação ou Tonopen). A avaliação da superfície ocular obedeceu critérios de exame biomicroscópico detalhado, com e sem coloração por fluoresceína sódica 1%. Avaliou-se o padrão da superfície ocular (transparência, regularidade, presença de queratinização), presença de neovascularização e o tipo de coloração por fluoresceína. Para melhor documentar o exame pré-operatório, foram realizados desenhos detalhados e fotografias na lâmpada de fenda. A propedêutica do filme lacrimal foi feita pelos testes de Schirmer I, Schirmer II, teste de secreção basal e pela determinação do tempo de ruptura do filme lacrimal (BUT) 4, 19.

Os pacientes com indicação de transplante de córnea e limbo alógeno que necessitaram imunossupressão sistêmica com ciclosporina-A foram submetidos a uma avaliação clínica completa. Nos casos de inflamação e neovascularização corneal, foi considerado o uso de corticóide tópico (acetato de prednisolona 1% ou dexametasona 0,1%, conforme a gravidade do caso). Os casos de olho seco foram tratados com lubrificantes sem preservativo. Nos casos de olho seco severo, foi também realizada a oclusão dos pontos lacrimais. Os casos de blefarite e/ou meibomite foram tratados com higiene local com xampú neutro diluído, pomada de antibiótico (nos casos de infecção), corticóide e, quando necessário, doxiciclina oral 100 mg 2x/dia.

Todos os casos que necessitaram foram submetidos às correções oculoplásticas (lagoftalmo, triquíase, entrópio) e de reconstrução do fundo de saco previamente ao transplante de membrana amniótica e limbo.

4. Técnica cirúrgica e pós-operatório

A técnica cirúrgica utilizada foi a mesma daquela descrita por Tsubota et. al. 4, 10. Procedeu-se a peritomia 360o (3 mm do limbo) e dissecou-se centripetamente o pannus cicatricial que cobria a córnea. Nos casos de lesões que acometiam apenas 1, 2 ou 3 quadrantes da superfície ocular, procedeu-se a peritomia e dissecção do pannus apenas dos quadrantes acometidos, procurando-se preservar qualquer área com limbo íntegro. Quando a córnea apresentava opacidade estromal importante, procedia-se ao transplante de córnea lamelar (nas opacidades superficiais) ou penetrante (nas opacidades profundas). Nos casos de presença de catarata, realizou-se facectomia extra-capsular com ou sem implante de lente intra-ocular no mesmo ato cirúrgico.

Após ser descongelada, a membrana amniótica foi lavada com solução salina balanceada (BSS) por 5 minutos e colocada sobre o olho, mantendo a orientação da face da membrana basal para cima. O tecido foi fixado na episclera com 8 pontos separados de fio de Vicryl 8.0 ou sutura contínua com Vicryl 8.0 ou mononylon 9.0. Sobre a membrana, foram colocados, quando possível, 2 a 4 fragmentos de limbo autólogo do olho contra-lateral, ou de limbo alógeno de doador vivo com histocompatibilidade HLA ou de cadáver (Figura 2a). Esse tecido foi fixado na membrana amniótica e episclera com suturas de fio de nylon 10.0. Nos casos em que se realizou transplante de córnea concomitante, confeccionou-se um orifício de aproximadamente 3 mm na membrana amniótica que cobria a área pupilar. Nos casos mais severos, foi realizada tarsorrafia temporal ou total utilizando-se fio de seda 4.0.

 

 

Avaliação oftalmológica completa foi repetida semanalmente nos primeiros 2 meses e depois quinzenalmente até o 6º mês de pós-operatório.

Acetato de prednisolona 1% e ofloxacina 0,3% foram instilados a cada 3 horas nas primeiras 2 semanas de pós-operatório, com diminuição progressiva conforme melhora do quadro clínico. Nos casos de transplante alógeno, foi administrada Ciclosporina-A sistêmica na dose de 5 mg/kg/dia associada a 1 mg/kg/dia de metilprednisolona. Nos casos de olho seco severo, a tarsorrafia total foi aberta parcialmente após 15 dias da cirurgia e iniciou-se uso de colírio lubrificante sem preservativo. O casos severos foram tratados com colírio de soro autólogo.

5. Critérios de avaliação dos resultados

Considerou-se apenas os resultados dos pacientes com mais de 1 mês de seguimento. Para fins didáticos, classificou-se os resultados em 3 categorias: 1) Sucesso: reconstrução da superfície ocular bem-sucedida, com restituição do epitélio com características de epitélio corneal (regular, transparente, sem vascularização e sem defeito epitelial); 2) Sucesso parcial: reconstituição da superfície ocular, com cicatrização de defeito epitelial corneal prévio e controle da inflamação corneal, porém sem reconstituir superfície ocular com características de epitélio corneal; 3) Insucesso: reconstrução da superfície ocular mal-sucedida, com recorrência de defeito epitelial, vascularização e inflamação corneal. Esses pacientes necessitaram de outro procedimento cirúrgico para conter processo inflamatório.

 

RESULTADOS

O tempo médio de seguimento foi de 5,22 meses (variação entre 2 e 13 meses). Um caso de SSJ apresentou infecção pós-operatória relacionada ao uso de colírio lubrificante caseiro comprovadamente contaminado e foi excluído da análise dos resultados (caso 3). Dos outros 10 casos, obtivemos êxito na reconstrução da superfície ocular em 8 (80%).

Cinco casos (50%) apresentaram sucesso total na restituição da estabilidade epitelial da córnea. Em todos eles, houve integração da membrana amniótica ao estroma subjacente. Quatro eram secundários a trauma (3 queimaduras químicas e 1 trauma mecânico) e apresentavam teste de Schirmer I normal (Figura 2b). Um caso era secundário a SSJ e apresentava teste de Schirmer com e sem estimulação nasal iguais a 0 (caso 1) (Figuras 3a e 3b). Dois desses 5 casos apresentavam deficiência limbar parcial e os outros 3 apresentavam deficiência limbar total.

 

 

 

 

Três casos (30%) apresentaram sucesso parcial, com resolução do defeito epitelial e inflamação corneal, porém sem apresentar restauração epitelial corneal. Nesses 3 casos, não foi realizado transplante de limbo concomitante por falta de indicação (2 casos de queimadura severa bilateral, sendo 1 caso de acuidade visual (AV) nula em ambos os olhos (AO) e 1 caso de glaucoma AO com AV de percepção luminosa (PL); e 1 caso unilateral em que o paciente recusava-se a operar o olho são). Nos 3 casos, houve dissolução da membrana amniótica após, aproximadamente, 10 dias.

Os 2 casos de insucesso referiam-se a pacientes com SSJ severo (casos 2 e 4), que já tinham sido submetidos a várias cirurgias prévias e apresentavam teste de Schirmer com e sem estimulação nasal iguais a zero. Os dois casos apresentavam deficiência limbar total, instabilidade epitelial e necrose estromal. Nos dois casos foi associado transplante de limbo alógeno, sendo que em um dos casos o limbo foi obtido da mesma córnea que foi utilizada no transplante concomitante e no outro caso o limbo foi retirado de parente com HLA compatível. Os dois casos evoluíram com defeito epitelial crônico e recidiva do melting corneal, necessitando de novas cirurgias.

Se forem considerados apenas os casos em que foram realizadas cirurgias de reconstrução da superfície ocular associando transplante de membrana amniótica e transplante de limbo, o número total de olhos para analisar seriam 7 (6 pacientes, excluindo o caso de SSJ que apresentou infecção). Desses casos, obtivémos sucesso na reconstrução da superfície ocular em 5 olhos (71,43%).

Em relação a acuidade visual, observamos que todos os pacientes que tiveram sucesso na reconstrução da superfície ocular melhoraram 2 ou mais linhas de visão. Os casos de sucesso parcial mantiveram a mesma AV. Nenhum caso apresentou piora da AV.

 

DISCUSSÃO

Várias técnicas cirúrgicas têm sido empregadas na reconstrução da superfície ocular nos casos de cerato-conjuntivites cicatriciais com deficiência limbar parcial ou total. A maioria dos autores concorda que a simples remoção do pannus fibro-vascular ou ceratoplastia convencional não impedem a recorrência das alterações cicatriciais 4, 9. Após os estudos iniciados por Thoft & Friend, e mais tarde aprofundados por outros autores, sobre a importância das células epiteliais germinativas limbares na fisiopatologia das afecções da superfíce ocular, diferentes autores propuseram técnicas que empregavam o transplante de limbo corneal nesses casos 20-26. A porcentagem de sucesso nesses casos varia de 70 a 90% num período de seguimento de 1 a 2 anos 24-27. No entanto, quando o seguimento é estendido a 5 anos, a porcentagem de sucesso cai para 50% 9. Essa queda pode ser explicada em parte pela falência do transplante alogênico limbar, causada pela inflamação crônica que persiste ou recorre no estroma perilimbar 9.

Tabela 2

Em 1995, Kim & Tseng reintroduziram o uso de membrana amniótica em cirurgia oftalmológica 3. Em um modelo experimental de deficiência total de limbo em olhos de coelhos, os autores observaram que 77% dos animais que foram submetidos ao transplante de membrana amniótica apresentaram recuperação total ou parcial da superfície ocular 3. O grupo controle, que não recebeu membrana amniótica, desenvolveu vascularização e opacidade corneal em 100% dos casos 3. Esses excelentes resultados podem ser explicados pelas características inatas da membrana amniótica, que possui uma membrana basal espessa e propriedades antinflamatórias, antiapoptóticas e inibitórias da cicatrização, provavelmente relacionadas à presença e/ou inibição de fatores de crescimento, tais como TGF-beta 1 e 2, bFGF e HGF 3, 4, 9, 10, 13, 22. Estudos recentes demonstraram que o uso da membrana amniótica possibilita a restauração de um meio-ambiente estromal perilimbar sem inflamação 9, 28. Esse meio-ambiente representaria o substrato ideal para suportar o tecido limbar transplantado e manter o sucesso da reconstrução da superfície corneal subseqüente. Essa noção foi mais tarde comprovada pelos achados de citologia de impressão que demonstraram que a densidade da população de células epiteliais basais dobra nas superfícies oculares reconstruídas com membrana amniótica 9, 28.

Os primeiros resultados cirúrgicos em humanos foram publicados logo em seguida. Tsubota et al. apresentaram bons resultados na reconstrução da superfície ocular em 86% de pacientes com penfigóide cicatricial e síndrome de Stevens-Johnson que foram submetidos a transplante de membrana amniótica e de limbo autólogo ou alógeno 4. Um ano mais tarde, Shimazaki, Yang e Tsubota utilizaram a mesma técnica na reconstrução da superfície ocular de 7 olhos com queimaduras químicas e térmicas, com resultados animadores 10. Tseng et al. relataram bons resultados com o uso de membrana amniótica na reconstrução da superfície conjuntival após remoção de lesões conjuntivais e simbléfaro 13. Em 1998, Tseng et al. estudaram o transplante de membrana amniótica em 31 olhos de 26 pacientes com deficiência limbar leve, moderada e severa 9. A epitelização completa ocorreu em 93,5% dos pacientes (2 a 4 semanas), sendo que 83% dos pacientes apresentaram melhora da acuidade visual 9.

No presente trabalho, foram realizadas cirurgias de reconstrução da superfície ocular empregando membrana amniótica em 11 casos de ceratoconjuntivites cicatriciais (10 pacientes). Em 8 casos, havia indicação de transplante de limbo concomitante. Preferimos optar pela cirurgia múltipla simultânea (transplante de membrana amniótica e limbo/conjuntiva ou mucosa), combinada com transplante de córnea e facectomia, quando necessário. Achávamos que essa abordagem, proposta por Tsubota et al., parecia ser a mais racional, pois restaura a transparência dos meios, repõe a membrana basal e as células germinativas em um só tempo 4, 10. Apesar do tempo cirúrgico ser mais prolongado, o paciente é poupado da necessidade de outra cirurgia. Além disso, preservamos a superfície ocular, extremamente sensível nesses casos, de outra manipulação cirúrgica. Observamos resultados satisfatórios em 5 casos (71,43%). Desses, 4 eram queimaduras e tinham função lacrimal normal. Apenas 1 caso era de SSJ e tinha função lacrimal anormal. Todos os 5 casos apresentavam-se estáveis em relação a inflamação e não apresentavam inflamação corneal. Os casos que tiveram insucesso (2 casos graves de SSJ) tinham algumas características em comum: Schirmer com e sem estimulação nasal iguais a 0 e encontravam-se em processo ativo de necrose corneal quando foram realizados os procedimentos. Aparentemente, devemos aguardar uma maior estabilidade do quadro agudo inflamatório antes de iniciarmos a reconstrução da superfície ocular. Nesses casos, concordamos com Tseng et al. que preconiza a utilização da membrana amniótica, com ou sem limbo, num primeiro tempo para estabilizar o quadro inflamatório antes da realização da cirurgia definitiva com fins ópticos 9. Além disso, devemos atentar ao fato de que pacientes com olho seco severo, em particular os casos de SSJ, têm pior prognóstico 4. Mesmo com uma abordagem abrangente no tratamento desses pacientes, com utilização de colírio de soro autólogo, lubrificantes sem preservativos e tarsorrafia, notamos maior instabilidade epitelial deles em relação aos pacientes sem olho seco severo.

Defeitos epiteliais crônicos constituem complicações freqüentes nas ceratoconjuntivites cicatriciais, que podem evoluir para inflamação estromal e infecção. A fisiopatologia associa aspectos não-inflamatórios, como olho seco, exposição, triquíase e condições corneais neurotróficas, a aspectos inflamatórios, com a presença de leucócitos polimorfonucleares ou seus produtos inibindo o processo de cicatrização epitelial 11, 29. Diversos tratamentos são relacionados na literatura, como o uso de medicação tópica (lubrificantes sem preservativos, esteróides tópicos, antibióticos), lente de contato terapêutica, tarsorrafia e recobrimento conjuntival 29. Lee & Tseng relataram bons resultados com transplante de membrana amniótica em 10 de 11 casos de defeito epitelial crônico de diferentes etiologias 11. Em 4 olhos houve dissolução da membrana amniótica, o que não impediu que ocorresse cicatrização epitelial da mesma maneira do que nos casos em que a membrana amniótica foi incorporada no estroma.11 Esse achado sugere que a membrana possui diferentes mecanismos de ação que estimulam a epitelização 11.

No presente trabalho, realizamos transplante de membrana amniótica como função terapêutica para auxiliar a cicatrização de defeito epitelial persistente e conter processo de afinamento e inflamação estromal corneal em 3 casos. Em todos eles, o objetivo final foi obtido e os defeitos epiteliais cicatrizaram. No entanto, não observamos a incorporação da membrana amniótica e epitelização sobrejacente, mas sim a dissolução da mesma e epitelização conjuntival subjacente após alguns dias da sua colocação. Aparentemente, o efeito da membrana amniótica nesses casos foi, além da proteção mecânica, o de diminuir o processo inflamatório e estimular o epitélio por suas propriedades bioquímicas já descritas anteriormente.

Apesar dos resultados promissores do uso da membrana amniótica associado ou não ao transplante de limbo como coadjuvante no tratamento das ceratoconjuntivites cicatriciais, dúvidas ainda persistem em relação as suas indicações e se realmente esse procedimento é superior ao transplante de limbo e conjuntiva isolado. No entanto, deve-se levar em consideração a gravidade de alguns casos apresentados. Além disso, há casos em que somente o transplante de membrana amniótica pode ser suficiente para a reconstrução da superfície ocular, o que poupa a necessidade de se utilizar limbo autólogo ou alógeno, diminuindo o risco induzir deficiência límbica no olho doador e de rejeição nos transplantes alógenos. Nos casos de associação com transplante de limbo, a necessidade de menor quantidade de células germinativas é também vantajosa, pois sabe-se que essas células mantêm a capacidade mitótica no substrato amniótico. A membrana amniótica possui propriedades antinflamatórias, anti-angiogênicas e moduladoras da cicatrização, o que pôde ser constatado nesse trabalho pelo bom aspecto clínico pós-operatório dos casos realizados.

Todos esses argumentos indicam que a membrana amniótica constitui uma opção alternativa de grande utilidade na reconstrução da superfície ocular dos casos severos de ceratoconjuntivites cicatriciais. A associação com transplante de limbo deverá ocorrer, preferencialmente, quando a córnea não estiver em processo ativo de necrose. Estudos com maior casuística, prospectivos e randomizados serão necessários para melhor avaliar esse procedimento.

 

AGRADECIMENTO

Nestor Schor, Laboratório de Biologia Celular do Depto. de Nefrologia, UNIFESP; Ophthalmos, São Paulo/SP; Hospital Maternidade Amparo Maternal, São Paulo/SP.

 

 


 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Este trabalho foi realizado no Setor de Córnea e Doenças Externas do Depto. de Oftalmologia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
Apresentado no XXX Congresso Brasileiro de Oftalmologia em Recife/PE no dia 06 de setembro de 1999 - prêmio "Oftalmologia cirúrgica - Dr. Altino Ventura"

(1) Mestre e pós-graduando nível doutorado, Setor de Córnea e Doenças Externas do Depto. de Oftalmologia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
(2) Residente de 3º ano do Depto. de Oftalmologia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)
(3) Estagiária do Setor de Córnea e Doenças Externas do Depto. de Oftalmologia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
(4) Doutor em oftalmologia e colaborador do Setor de Córnea e Doenças Externas do Depto. de Oftalmologia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)
(5) Doutora em oftalmologia e chefe do Setor de Córnea e Doenças Externas do Depto. de Oftalmologia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)

Endereço para correspondência: José Alvaro Pereira Gomes. R. Sabará, 566. apto. 212. São Paulo (SP) CEP 01239-010. Tel.: (011) 255-1603; Fax: (011) 255-0223. e-mail: [email protected]


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