Flavio Buzalaf1; John Helal Jr1; Yoshitaka Nakashima1
DOI: 10.1590/S0004-27492003000100018
RESUMO
O objetivo deste trabalho é prevenir o oftalmologista, ao se deparar com trauma por projétil de arma de fogo atingindo a órbita, de que é possível estar diante de um quadro de coriorretinite esclopetária. Foram descritos três casos, dois do sexo feminino e um do masculino, com idades variando entre 15 e 25 anos, atendidos no pronto-socorro do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Descritores: Coriorretinite; Corpos estranhos no olho; Coróide; Ferimentos oculares penetrantes; Órbita; Ferimentos por arma de fogo; Retina; Ruptura; Relato de caso
ABSTRACT
The purpose of this paper is to warn the ophthalmologist that he/she may be facing a case of chorioretinitis sclopetaria when a patient presents with trauma due to shotgun reaching the orbit. Three cases, two female and one male, with ages between 15 and 25 years, assisted at the emergency room of the "Hospital das Clínicas" of the University of São Paulo, are described.
Keywords: Chorioretinitis; Eye foreign bodies; Choroid; Penetrating eye injuries; Orbit; Gunshot wounds; Retina; Rupture; Case report
INTRODUÇÃO
Coriorretinite esclopetária é um termo introduzido na literatura alemã por Goldzieher(1-3) e se refere a um trauma da retina e coróide por projétil de arma de fogo. O projétil não penetra o globo, passando adjacente a ele e à parede da órbita, causando roturas da retina e coróide, por sua alta velocidade (2). As duas categorias são: tipo direto (anterior) - ocorre no local do impacto; e o indireto (posterior) - ocorre como um contra-golpe. As roturas diretas, na maior parte das vezes, estão dispostas paralelas à "ora serrata"; já as indiretas, verticais e concêntricas ao disco óptico.
Ao examinarmos o fundo de olho de um paciente com este diagnóstico, iremos nos deparar com hemorragias retiniana e vítrea, roturas de coróide e retina e edema de Berlim. Além disto, é freqüente a proliferação fibrovascular numa fase mais tardia, secundária à neovascularização sub-retiniana, complicação presente em 25 a 50% das roturas de coróide(2).
O descolamento de retina é raro, já que nas bordas da lesão desenvolvem-se firmes adesões coriorretinianas que agem como retinopexia espontânea.
Neste trabalho, descrevemos três casos diagnosticados como coriorretinite esclopetária, atendidos no pronto-socorro do Instituto Central do Hospital das Clínicas de São Paulo.
RELATO DE CASOS
Caso 1
Homem de 25 anos, pardo, admitido no PS-ICHC em 24 de fevereiro de 2000, vítima de ferimento por arma de fogo, transfixando ambas as órbitas. Foi avaliado pela neurocirurgia, apresentando midríase paralítica em ambos os olhos, com o restante do exame neurológico normal.
A acuidade visual era sem percepção luminosa bilateral. O exame ocular externo mostrou ferimento perfurante na região lateral da órbita direita. À direita, as pálpebras mostravam-se edemaciadas e equimóticas. Ao exame da motricidade ocular extrínseca notava-se limitações leves em todas as posições do olhar, bilateralmente. Os reflexos fotomotores direto e consensual estavam ausentes nos dois lados. Havia hiposfagma difuso nos dois olhos e a pressão intra-ocular registrava no olho direito 12 mmHg e no esquerdo 15 mmHg. Ao exame pela biomicroscopia, notamos efeito "Tyndall" intenso no vítreo do olho direito. Com o oftalmoscópio binocular, observou-se hemorragia vítrea bilateral, sendo impossível avaliar estruturas do fundo do olho direito. No olho esquerdo, notou-se rotura de coróide inferior, hemorragia e edema de retina. O nervo óptico, neste olho, tinha um aspecto normal. O exame de ultra-sonografia do olho direito mostrava, opacidades vítreas difusas e uma elevação sugestiva de hemorragia sub-retiniana (Figura 1).
Na tomografia computadorizada, havia transecção total de nervo óptico à direita.
O paciente esteve internado por sete dias, quando foi feita pulsoterapia, 1 grama de hidrocortisona por dia durante três dias, no intuito de se tentar melhorar a visão do lado esquerdo, pois se suspeitava apenas de uma compressão do nervo óptico; não houve melhora. Apresentou regressão do edema palpebral e da hemorragia subconjuntival. O exame do fundo de olho manteve-se inalterado e, após a alta, não retornou para acompanhamento ambulatorial
Caso 2
Paciente feminina, 15 anos, branca, deu entrada no PS-ICHC em 17 de agosto de 1999, vítima de ferimento por arma de fogo na face e membro superior esquerdo. Referia não enxergar do olho direito. O exame neurológico detectou apenas, alterações dos reflexos pupilares.
O exame ocular externo mostrou hematoma e edema bipalpebral intensos, em ambos os olhos, o que dificultava a avaliação dos globos oculares. Houve dúvidas na localização da porta de entrada do projétil, pelo quadro palpebral acentuado. A acuidade visual do olho direito era sem percepção luminosa e do esquerdo, contagem de dedos a dois metros. O exame da motricidade ocular extrínseca revelou restrições em todas as posições do olhar de ambos os lados. Ao exame à lâmpada de fenda, o olho direito apresentava hiposfagma difuso, perfuração ocular, hérnia de úvea, hifema total e edema de córnea. No esquerdo, notava-se hiposfagma, a córnea e câmara anterior estavam normais e a pupila em média midríase. As pupilas não respondiam aos estímulos luminosos direto e consensual. A pressão intra-ocular do olho direito não foi medida e a do esquerdo era de 12mmHg. Ao exame com oftalmoscópio indireto, foi impossível avaliar o fundo do olho direito (opacidade dos meios) e o esquerdo apresentava roturas de coróide de aproximadamente três diâmetros do disco, dispostas concentricamente e temporais ao disco óptico (Figura 2). O disco óptico desse olho tinha limite nítido e coloração normal.
A tomografia computadorizada mostrava fratura orbitária bilateral, fragmento ósseo próximo à porção anterior do nervo óptico à esquerda, olho direito perfurado e o esquerdo íntegro.
Durante a internação, foi tratada com hidrocortisona 1 g EV por dia por três dias, depois prednisona 60 mg por dia, por mais três dias, sem melhora da acuidade visual, apenas melhora do quadro ocular externo. A paciente recebeu alta e não retornou para controles.
Caso 3
Paciente feminina, 20 anos, negra, foi admitida no PS-ICHC em 5 de setembro de 1999, vítima de ferimento por arma de fogo na órbita direita e trauma facial por chute. Chegou consciente e ao exame neurológico apresentou índice Glasgow 15. O exame ocular externo mostrava quemose, edema bipalpebral em ambos os olhos e o orifício de entrada do projétil na região maxilar superior direita.
A acuidade visual era sem percepção luminosa e os reflexos pupilares ausentes nos dois olhos. A motricidade ocular extrínseca estava preservada em todas as posições do olhar. Os reflexos pupilares estavam ausentes nos dois olhos. A pressão intra-ocular era de 8 mmHg no olho direito e 12mmHg no esquerdo. Ao exame com oftalmoscópio indireto, observou-se hemorragia vítrea suprapapilar em ambos os olhos, com descolamento de retina inferior no olho direito e hemorragia retiniana no esquerdo (Figura 3).
A tomografia computadorizada demonstrou múltiplas fraturas faciais, fratura do ápice do cone orbitário esquerdo, comprimindo o canal óptico com fragmento ósseo e enfisema com velamento dos seios da face (Figura 4).
Permaneceu internada por sete dias com regressão parcial da equimose e total do edema bipalpebral. Recebeu pulsoterapia com hidrocortisona uma grama por dia por três dias, no entanto sem recuperação visual. Teve alta, mas só retornou um ano após apresentando acuidade visual sem percepção de luz no olho direito e contagem de dedos a três metros no esquerdo. O olho direito estava atrófico e o esquerdo com 10 mmHg, apresentando o reflexo pupilar direto presente e o consensual ausente. No fundo de olho esquerdo, havia uma neovascularização de coróide na área macular e rotura de coróide concêntrica ao disco.
RESULTADOS
Os autores descrevem três casos diagnosticados como Coriorretinite esclopetária, dois do sexo feminino e um do masculino, vítimas de projéteis de arma de fogo, cuja idade variou de 15 a 25 anos.
O exame oftalmológico mostrou-se bastante semelhante, todos chegaram sem percepção luminosa em pelo menos um dos olhos, sendo dois bilaterais. O exame ocular externo demonstrou as pálpebras edemaciadas e equimóticas e somente num caso, não se pode ter certeza da porta de entrada do projétil, pelo quadro palpebral intenso. Nos três, as pupilas estavam em midríase paralítica bilateral, com exceção do caso dois, onde não era observada pelo hifema total no olho direito. Em todos eles via-se pelo menos algum grau de hiposfagma e efeito "Tyndall" no vítreo e dos seis olhos, havia apenas um perfurado. As pressões intra-oculares estavam dentro da faixa de normalidade, exceto o olho perfurado.
O exame do fundo de olho mostrava rotura de coróide nos três casos, hemorragias vítrea e retiniana em dois, descolamento de retina em um e edema de Berlim em outro.
Além do exame clínico, foram feitos exames tomográficos de crânio e órbita e de ultra-som ocular.
DISCUSSÃO
O termo coriorretinite esclopetária foi publicado pela primeira vez por Goldzieher em 1901, o qual descrevia uma lesão ocular por um projétil, passando adjacente ao globo sem perfurá-lo(1-5), mas Kempster et al. citam como sendo de Graefe o primeiro relato em 1854, o qual mostrou dois casos de rotura de coróide secundário a um trauma ocular(6). Os sinônimos encontrados na literatura são, coriorretinite proliferativa(3,5,7), coriorretinite plástica proliferativa ou ainda coriorretinite proliferativa de Lagrange(3,5). Os mecanismos podem ser por trauma direto, no local do impacto ou indireto, contra-golpe à área macular. Liporaci et al. citam como mais um mecanismo a compressão, resultando edema de Berlim ("Commotio retinae") e roturas maculares(8).
Neste relato, os três casos foram vítimas de projétil de arma de fogo atingindo a órbita. No primeiro, houve transecção total do nervo óptico; nos demais, os fragmentos ósseos comprimiram o canal óptico, contribuindo para a baixa de visão. Foi tentada pulsoterapia com corticóide, no intuito de melhorar a acuidade visual nos olhos que apresentaram compressão do nervo, no entanto sem bom sucesso.
Sabe-se que as roturas de coróide estão associadas a trauma contuso, ou por mecanismo indireto ou diretamente no local da aplicação(8). Este último tende a levar a uma maior proliferação do epitélio pigmentar da retina e do tecido glial. Na fase aguda da lesão, pode-se observar hemorragias vítrea, retiniana e sub-retiniana, roturas de coróide e retina. Nas fases mais tardias, ocorre proliferação pigmentada das bordas da rotura(1,3). Em nossos pacientes, a rotura de coróide foi detectada de imediato; apenas no caso três, só pode ser vista posteriormente.
Kempster et al. relatam a incidência de roturas de coróide como relativamente infreqüentes e, quando presentes, geralmente são únicas(6). Descrevemos um caso atípico com três roturas e dois apresentando pelo menos uma. Quanto à orientação, a rotura geralmente é concêntrica ao disco e disposta vertical e temporalmente(5) a ele, como ocorreu em dois casos. Quando múltiplas, freqüentemente são paralelas, com a maior ocorrendo centralmente e a menor, mais periférica(9). Outro fato descrito na literatura, é que as roturas de coróide podem evoluir com membrana neovascular sub-retiniana em 25 a 50% dos casos, como ocorreu no terceiro caso, um ano após o acidente.
Apesar de o descolamento de retina ser uma complicação rara após a rotura coriorretiniana, apareceu em um dos casos. A sua pequena freqüência, provavelmente, ocorre pelo fato de a retina e a coróide retraírem-se como uma só unidade, permanecendo a hialóide posterior intacta sobre a rotura, prevenindo a entrada do vítreo no espaço sub-retiniano(1).
Richards et al. acham que a força do projétil é transferida ao globo, causando roturas e hemorragias de coróide e retina(3); no entanto, não atribuem apenas a este fato o surgimento de tecido cicatrizado proliferativo, devendo para isto ter a presença de outros mecanismos como lesão dos vasos e nervos ciliares. A extensão da lesão varia de acordo com o tipo de arma, calibre do projétil, distância da arma ao alvo, trajeto e interação com diversas estruturas oculares que têm resistências teciduais variadas. Pode-se encontrar desde pequenas lesões periféricas retinianas até avulsão do nervo óptico(6).
Deve-se observar também, que embora classicamente associada a projéteis de arma de fogo, um quadro bastante similar é visto com projéteis de ar comprimido e até com material para pesca(2).
O prognóstico visual após roturas de coróide varia de acordo com sua localização, podendo manter-se preservado em casos que não atingem a área macular.
CONCLUSÃO
Frente a um paciente atingido por um projétil de arma de fogo ou outro corpo estranho em alta velocidade, acometendo a órbita, o oftalmologista deve estar atento para este possível diagnóstico.
REFERÊNCIAS
1. Dubovy SR, Guyton DL, Green WR. Clinicopathologic correlation of chorioretinitis sclopetaria. Retina1997;17:510-20.
2. Katsumata S, Takahashi J, Tamai M. Chorioretinits sclopetaria caused by fishing line sinker. Jpn J Ophthalmol 1984;28:69-74.
3. Richards RD, West CE, Meisels AA. Chorioretinitis sclopetaria. Am J Ophthalmol1968;66:852-9.
4. Bezerra Jr. FI, Abreu M. Retinite esclopetária ou escopetária. Arq Instituto Penido Burnier 1998;40:38-40.
5. Martin DF, Awh CC, McCuen BW, Jaffe GJ, Slott JH, Machemer, R. Treatment and pathogenesis of traumatic chorioretinal rupture (sclopetaria). Am J Ophtalmol 1994;117:190-200.
6. Kempster RC, Green WR, Finkelstein D. Choroidal rupture. Clinicopathologic correlation of an unusual case. Retina 1996;16:57-63.
7. Duke-Elder S, MacPaul PA. Injuries, mechanical injuries. In: Duke Elder S, editor. System of ophthalmology. St. Louis: C V Mosby; 1972. v.14. p.158-60.
8. Liporaci JMD, Liporaci FA, Liporaci SD, Vianna RNG. Maculopatia traumática secundária a corpo estranho intra-orbitário. Rev Bras Oftalmol 2000;59:335-9.
9. Neame H. Multiple ruptures of the choroid with retention of good vision. Br J Ophthalmol 1940;24:399-400.
Endereço para correspondência
Flavio Buzalaf
Av. Bernardino de Campos, 210/31, São Paulo - SP
CEP 04004-040.
Email: [email protected]
Recebido para publicação em 28.05.2001
Aceito para publicação em 12.08.2002
Trabalho realizado no Serviço de Retina e Vítreo da Divisão de Clínica Oftalmológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
1 Residente da Clínica Oftalmológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
2 Assistente-Doutor da Clínica Oftalmológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.