Open Access Peer-Reviewed
Editorial

Falência primária pós-transplante de córnea em serviço universitário

Primary corneal graft failure after penetrating keratoplasty in a university service

Flávio Eduardo Hirai1; Stefan Klatte2; Keila Mattos Pacini3; Elcio Hideo Sato3

DOI: 10.1590/S0004-27492002000600011

RESUMO

Objetivo: Analisar os possíveis fatores relacionados à falência primária pós-transplante de córnea no Setor de Doenças Externas Oculares e Córnea da Universidade Federal de São Paulo. Métodos: Realizado estudo retrospectivo de 239 pacientes submetidos à ceratoplastia penetrante no período de julho de 1999 a março de 2001. Casos de falência primária foram selecionados (grupo I) e dados dos doadores foram comparados com doadores de pacientes submetidos ao procedimento cirúrgico no mesmo período (grupo II). Os dados sobre os doadores foram: idade, causa mortis, contagem de células endoteliais, tempo entre óbito e a enucleação (T1), tempo entre a enucleação e a preservação da córnea (T2) e o tempo de preservação do tecido até a cirurgia (T3). Resultados: Foram analisados dados de 164 pacientes, sendo 21 casos de falência primária (12,8%). A média de idade dos doadores do grupo I foi de 43,1 anos (±22,0) e no grupo II foi de 47,9 anos (±18,9). Não houve diferença estatística entre os diferentes intervalos de tempo (T1, T2, T3). As principais causas de morte foram trauma, câncer e doenças cardíacas. Conclusão: Os diversos fatores analisados no presente estudo não apresentaram diferenças estatisticamente significantes entre os dois grupos estudados. Dificuldades em determinar as causas exatas da falência primária de um botão corneano pós-transplante sugerem uma multifatoriedade envolvida na gênese desta entidade. O trabalho das equipes dos Bancos de Olhos e a notificação, por parte dos médicos, das complicações ocorridas no pós-operatório contribuem na diminuição da incidência das falências pós-transplante de córnea.

Descritores: Transplante de córnea; Bancos de olhos; Doenças da córnea; Preservação de tecido

ABSTRACT

Purpose: To analyze the factors related to primary corneal graft failure after penetrating keratoplasty in the Corneal and External Diseases Section of the Federal University of São Paulo, Brazil. Methods: A retrospective study was performed using the charts of patients submitted to penetrating keratoplasty from July 1999 to March 2001. Cases of primary failure (group I) and patients submitted to the surgical procedure at the same period (group II) were selected and compared. Information collected from donors were age, cause of death, endothelial cell count, time between death and enucleation (T1), time between enucleation and preservation of the graft (T2) and time of tissue preservation until surgery (T3). Results: 164 patients were analyzed with 21 cases of primary failure (12.8%). The mean age of the donors of group I was 43.1 years (±22.0) and from group II was 47.9 years (±18.9). There was no statistical difference between the two groups considering the time intervals (T1, T2, T3). Causes of death included trauma, cancer and heart diseases. Conclusion: Differences in all analyzed factors were not significant between both groups. The difficulties in determining the causes of primary corneal graft failure suggests a multifactorial process involved in this problem. Well-trained Eye Bank staff and notifications about postoperative complications are important to decrease the primary failure incidence.

Keywords: Corneal transplantation; Eye banks; Corneal diseases; Tissue preservation

INTRODUÇÃO

A falência primária da córnea doadora é caracterizada por edema irreversível no pós-operatório imediato que não responde à corticoterapia ou ao uso de soluções hipertônicas(1). Ao contrário da rejeição, a falência primária do botão doador não é um fenômeno imunológico. É resultado de uma função inadequada das células endoteliais tendo como principais fatores de risco as doenças endoteliais primárias, a técnica de preservação inadequada do tecido corneano, o tempo prolongado entre a enucleação e a preservação, o tempo de preservação prolongada, o trauma cirúrgico ou a idade avançada do doador(2).

O trabalho desenvolvido nos Bancos de Olhos pode ter influência direta na qualidade final da córnea doada e, conseqüentemente, no resultado cirúrgico do transplante. Pesquisas nesta área são importantes na tentativa de melhorar a qualidade dos tecidos distribuídos, determinando problemas diretamente relacionados às diversas etapas da doação de córneas.

O objetivo deste estudo foi analisar os possíveis fatores relacionados à falência primária do botão pós-transplante de córnea no Setor de Doenças Externas Oculares e Córnea da Universidade Federal de São Paulo ¾ UNIFESP.

 

MÉTODOS

Foram analisados os prontuários de 239 pacientes submetidos à ceratoplastia penetrante no Setor de Doenças Externas Oculares e Córnea da Universidade Federal de São Paulo ¾ UNIFESP no período de julho de 1999 a março de 2000. No grupo da falência primária (grupo I) foram selecionados 21 pacientes. Como grupo controle (grupo II) foram utilizados dados de 143 pacientes submetidos ao procedimento cirúrgico no mesmo período. Foi considerada falência primária a presença de edema no botão doador no pós-operatório imediato sem resposta a qualquer tipo de tratamento clínico. Setenta e cinco pacientes submetidos ao transplante tectônico foram excluídos.

Informações sobre os doadores foram obtidos de registros do Banco de Olhos do Hospital São Paulo. Os dados coletados sobre os doadores foram idade, causa mortis, contagem de células endoteliais, tempo entre o óbito e a enucleação (T1), tempo entre a enucleação e a preservação da córnea (T2) e o tempo de preservação do tecido até a realização da cirurgia (T3).

Um estudo de caso-controle foi realizado com a análise de dados categorizados utilizando o Teste exato de Fisher e partições da tabela de contingência.

 

RESULTADOS

Foram analisados 164 prontuários neste período sendo 21 casos de falência primária (12,8%). A média de idade dos doadores no grupo I foi de 43,1 anos (± 22,0) e no grupo II foi de 47,9 anos (± 18,9), não havendo diferença estatística. A Tabela 1 mostra os diferentes intervalos de tempo médio desde o óbito do doador até a realização da cirurgia nos dois grupos.

 

 

A contagem de células endoteliais no botão doador mostrou uma média de 2.501 células/mm2 (± 399,2) no grupo I e 2.566,03 células/mm2 (± 453,7) no grupo II não havendo diferença significativa.

A Tabela 2 mostra as principais causas de morte dos doadores dos grupos I e II.

 

 

Analisamos também o botão contralateral e em 4 casos (19,04%) observamos falência primária do botão contralateral do mesmo doador.

 

DISCUSSÃO

A incidência de falência primária pós-transplante de córnea no Setor de Doenças Externas Oculares e Córnea da Universidade Federal de São Paulo (12,8%) está acima dos valores descritos na literatura. Estudos recentes(3-4) demonstraram uma incidência de falência primária de até 3,9%.

Diversos fatores podem estar associados à falência primária da córnea após um transplante. A função das células endoteliais está entre os principais fatores sendo a contagem das células e a análise de sua morfologia no Banco de Olhos bastante importante(5). Neste estudo, 131 córneas tiveram a contagem endotelial realizada tendo em média 2.556,6 células/mm2 considerada uma contagem adequada para realização de transplantes.

Todas as córneas foram preservadas no meio Optisol GSâ (Chiron Ophthalmics), meio baseado em sulfato de condroitina capaz de manter a viabilidade do tecido corneano por um período de até 14 dias(6). Entretanto, estudos clínicos e experimentais têm demonstrado perda de células endoteliais após um período de sete a dez dias de preservação neste tipo de meio(7). O tempo de preservação da córnea no meio a 4º C pode ser um fator importante na falência primária(8). Wilhelmus et al. analisando 147 casos de falência primária observou que córneas preservadas por mais de sete dias apresentam maior chance de evoluir para uma falência. Na amostra em estudo, o tempo médio de preservação foi de 4,7 dias (± 2.0) nos casos e no grupo controle foi de 5,5 dias (±2,9), não havendo diferença estatisticamente significativa. Os tempos entre o óbito e a enucleação (T1) e entre a enucleação e a preservação do tecido (T2) também não tiveram influência significativa na falência do botão doador.

Fatores relacionados ao doador como idade e causa mortis são freqüentemente associados à falência primária da córnea. A idade do doador é um critério empregado nos Bancos de Olhos para doação, havendo preferência pela córnea de pessoas mais jovens. Entretanto, alguns autores têm demonstrado que a idade não parece influenciar no resultado final dos transplantes(9-11), o que foi observado neste estudo. A causa mortis é um fator que influencia no metabolismo corneano(12) e conseqüentemente no resultado final da cirurgia. Estudos experimentais mostraram que o trauma como causa de morte predispõe uma maior perda de células endoteliais durante a cultura do tecido corneano(13). Entretanto, estudos clínicos demonstraram que as córneas de doadores com morte traumática apresentaram melhores resultados quando comparadas às córneas de doadores com doenças crônicas como câncer ou cardiopatias(10-12). Nesta amostra, as principais causas de morte foram os traumas, doenças cardiovasculares, câncer e outras patologias que incluem os acidentes vasculares cerebrais e as doenças pulmonares, entre outras.

A presença de médicos em treinamento em transplante de córnea em serviços universitários também pode contribuir para a alta incidência de falência primária pois há maior trauma do botão doador no intra-operatório e conseqüentemente maior dano endotelial.

Com o advento da reação em cadeia da polimerase (PCR) e a cultura de vírus, foi demonstrada a presença de vírus do herpes simples em botões com falência pós-transplante sugerindo também esse agente como causador da falência primária(14).

Em 4 casos (19,04%) houve a falência do botão contralateral, ou seja, ambos os botões do mesmo doador. Wilhelmus et al. sugerem nestes casos a possibilidade de uma doença endotelial bilateral ou alterações post mortem(4). No presente estudo não houve diferença estatística entre as diferentes variáveis estudadas.

Novas pesquisas têm se concentrado principalmente na tentativa de achar o meio ideal para preservação de córneas. Na Europa, a cultura de células é amplamente utilizada na preservação de tecidos mantendo-os viáveis para transplante por meses(15-16).

 

CONCLUSÃO

As dificuldades em determinar as causas exatas da falência primária de um botão corneano pós-transplante sugerem uma multifatoriedade envolvida na gênese desta entidade. Os trabalhos realizados nos Bancos de Olhos desde a enucleação dos olhos no cadáver à preservação correta e a análise do botão previamente à cirurgia são fatores que podem influenciar na sobrevivência da córnea doadora após a cirurgia. O avanço da tecnologia e o treinamento de equipes especializadas ajudam a melhorar a qualidade final dos transplantes. Outro ponto também importante é a notificação ao Banco de Olhos, por parte dos médicos, das complicações ocorridas no pós-operatório viabilizando assim uma melhor análise de fatores relacionados. É fundamental haver mais estudos sobre causas de falência em diversos serviços visando o aprimoramento das técnicas envolvidas no processo para diminuir ainda mais a incidência deste problema que, na maioria das vezes, é bastante frustrante para o cirurgião e para o paciente.

 

 


 

 

REFERÊNCIAS

1. Scharf BH. Early postoperative complications. In: Krachmer JH, Mannis MJ, Holland EJ (editors). Cornea. St Louis: Mosby; 1997. p.1659-75.        

2. Van Rensburg PD, Raber IM, Laibson PR, Eagle RC. Management of primary corneal graft failure. Cornea 1998;17:208-11.        

3. Mead MD, Hyman L, Grimson R, Schein OD. Primary graft failure: a case control investigation of a purported cluster. Cornea 1994;13:310-6.        

4. Wilhelmus KR, Stulting RD, Sugar J, Khan MM. Primary corneal graft failure. A national reporting system. Comment On: Arch Ophthalmol 1995; 113:1497-502.         Arch Ophthalmol 1995;113:1497-502.

5. Wiffen SJ, Nelson LR, Ali AF, Bourne WM. Morphologic assessment of corneal endothelium by specular microscopy in evaluation of donor corneas for transplantation. Cornea 1995;14:554-61.        

6. Lindstrom RL, Kaufman HE, Skelnik DL, Laing RA, Lass JH et al. Optisol corneal storage medium. Am J Ophthalmol 1992;114:345-56.        

7. Bourne WM. Endothelial cell survival on transplanted human corneas preserved at 4 C in 2.5% chondroitin sulfate for one to 13 days. Am J Ophthalmol 1986;102:382-6.        

8. Lass JH, Bourne WM, Musch DC, Sugar A, Gordon JF, Reinhart WJ et al. A randomized, prospective, double-masked clinical trial of Optisol vs DexSol corneal storage media. Arch Ophthalmol 1992;110:1404-8.        

9. Forster RK, Fine M. Relation of donor age to success in penetrating keratoplasty. Arch Ophthalmol 1971;85:42-7.        

10. Chipman ML, Basu PK, Willet PJ, Cherry PM, Slomovic AR. The effects of donor age and cause of death on corneal graft survival. Acta Ophthalmol (Copenh) 1990;68:537-42.        

11. Halliday BL, Ritten SA. Effect of donor parameters on primary graft failure and the recovery of acuity after keratoplasty. Br J Ophthalmol 1990;74:7-11.        

12. Redbrake C, Becker J, Salla S, Stollenwerk R, Reim M. The influence of the cause of death and age on human corneal metabolism. Invest Ophthalmol Vis Sci 1994;35:3553-6.        

13. Sobottka Ventura AC, Rodokanak-von Schrenk A, Hollstein K, Hagenah M, Bohnke M, Engelmann K. Endothelial cell death in organ-cultured donor corneae: the influence of traumatic versus nontraumatic cause of death. Graefes Arch Clin Exp Ophthalmol 1997;235:230-3.        

14. Cockerham GC, Kraft AE, McLean IW. Herpes simplex virus in primary graft failure. Arch Ophthalmol 1997;115:586-9.        

15. Borderie VM, Scheer S, Touzeau O, Vedie F, Carvajal-Gonzales S, Laroche L. Donor organ cultured corneal tissue selection before penetrating keratoplasty. Br J Ophthalmol 1998;82:382-8.        

16. Borderie VM, Touzeau O, Allouch C, Scheer S, Carvajal-Gonzales S, Laroche L. The results of successful penetrating keratoplasty using donor organ-cultured corneal tissue. Transplantation 1999;67:1433-8.        

 

 

1 Médico Residente do Departamento de Oftalmologia da Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP.
2 Acadêmico do 6º ano da Faculdade de Medicina da Universidade de Hamburgo - Alemanha.
3 Tecnóloga do Banco de Olhos do Hospital São Paulo - UNIFESP, Especialista pela Associação Panamericana de Banco de Olhos - APABO.
4 Doutor-Chefe de Ambulatório do Setor de Doenças Externas Oculares e Córnea da Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP. Diretor Clínico do Banco de Olhos do Hospital São Paulo - UNIFESP. Presidente da Associação Panamericana de Banco de Olhos - APABO - Brasil.

Endereço para correspondência: Rua Dr Diogo de Faria, 1077/112 ¾ São Paulo (SP) CEP 04037-003.
E-mail: [email protected]

Recebido para publicação em 14.11.2001
Aceito para publicação em 02.04.2002

Nota Editorial: Pela análise deste trabalho e por sua anuência na divulgação desta nota, agradecemos à Dra. Denise Fornazari de Oliveira.


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