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Editorial

Paracoccidioidomicose palpebral: relato de três casos

Palpebral paracoccidioidomycosis: report of three cases

Guilherme José Nunes Marques Rocha1; Lívia Maria Bittencourt Nossa1; Moisés Regadas Pinto1; Roberto Lorens Marback1

DOI: 10.1590/S0004-27492002000500015

RESUMO

Objetivo: Relato clínico-patológico de três casos de paracoccidioidomicose multifocal comprometendo pálpebra e secundariamente a conjuntiva em dois deles. Métodos: Revisão dos prontuários e preparações histopatológicas obtidas das biópsias. Resultado: O estudo histopatológico realizado nos três casos, evidenciou reação inflamatória de tipo granulomatoso. A coloração pelo método de Grocott demonstrou a presença do Paracoccidioides brasiliensis. Conclusão: É importante a inclusão da paracoccidioidomicose no diagnóstico diferencial de lesões tumorais acometendo as pálpebras.

Descritores: Paracoccidioidomicose; Doenças palpebrais; Diagnóstico diferencial; Pálpebras; Conjuntiva; Relato de caso

ABSTRACT

Purpose: Clinicopathological report of three cases of multifocal paracoccidioidomycosis involving the lid and in two of them also the conjunctiva. Methods: Review of clinical charts and of histopathologic sections obtained by biopsy. Results: The histopathologic study of the three cases showed inflammatory reaction of the granulomatous type. A special staining technique (Grocott) revealed the presence of the Paracoccidioides brasiliensis. Conclusion: It is important to include paracoccidioidomycosis in the differential diagnosis of tumoral lesions occurring in the eyelids.

Keywords: Paracoccidioidomycosis; Eyelid diseases; Differential diagnosis; Eyelids; Conjunctiva; Case report

RELATOS DE CASOS

Paracoccidioidomicose palpebral: Relato de três casos

 

Palpebral paracoccidioidomycosis: report of three cases

 

Guilherme José Nunes Marques Rocha1
Lívia Maria Bittencourt Nossa2
Moisés Regadas Pinto3
Roberto Lorens Marback4

 

 


 

 

INTRODUÇÃO

A paracoccidioidomicose ou blastomicose sul-americana, é uma micose sistêmica causada por um fungo dimórfico, o Paracoccidioides brasiliensis. O fungo varia sua morfologia, podendo apresentar brotamentos que lhe conferem aspecto característico em "roda de leme"(1).

O envolvimento palpebral, conjuntival e até mesmo intra-ocular pela doença tem sido relatado esporadicamente na literatura oftalmológica nacional(2-9). O estudo clínico-patológico de três casos de paracoccidioidomicose multifocal comprometendo as pálpebras, e conjuntiva secundariamente em dois deles, motivou o presente relato.

 

RELATO DE CASOS

Caso 1

Paciente masculino, 42 anos, carpinteiro, queixava-se de uma lesão crostosa na pálpebra superior direita há cerca de um ano após ferimento prévio. O exame oftalmológico revelou lesão ulcerativa ocupando a metade externa da pálpebra superior direita envolvendo e espessando sua borda, poupando a pálpebra inferior (Figura 1). Exibia ainda, descamação cutânea da região periorbitária em ambos os olhos e hiperemia conjuntival à direita. O olho esquerdo não evidenciou alterações. Apresentava linfonodos cervicais palpáveis bilateralmente e tosse com expectoração esbranquiçada. Radiografia de tórax demonstrou infiltrados apicais bilaterais. O diagnóstico clínico foi carcinoma basocelular.

 

 

Foi realizada biópsia excisional com reconstrução da pálpebra superior sob anestesia local. O estudo anatomopatológico mostrou hiperplasia pseudo-epiteliomatosa, com infiltrados de mononucleares, e células gigantes multinucleadas. A coloração pelo Grocott evidenciou Paracoccidioides brasiliensis (Figura 2).

 

 

O paciente submeteu-se ao tratamento com sulfadiazina (6g/dia) durante um mês, não retornando mais ao serviço.

Caso 2

Paciente masculino, 45 anos, agricultor, procurou nosso serviço com queixa de chalázios recidivados em pálpebra superior esquerda há três meses, tendo feito uso de tratamento clínico com colírios de antibióticos sem melhora.

O exame oftalmológico do olho direito não apresentava alterações, enquanto que o olho esquerdo exibia tumoração endurecida com ulceração na borda, no nível do terço médio da pálpebra superior (Figura 3). Observava-se ainda, simbléfaro adjacente. O restante do exame não mostrou anormalidades. Não foram palpados linfonodos regionais. Radiografia de tórax mostrou infiltrado intersticial reticulo-nodular disseminado em ambos os pulmões, predominando nos terços médios e poupando, relativamente, ápices e bases.

 

 

Foi realizada biópsia excisional, sob anestesia local, da lesão em pálpebra superior e conjuntiva tarsal superior. O estudo anatomopatológico mostrou processo inflamatório crônico granulomatoso com células gigantes. A coloração pela prata demonstrou elementos leveduriformes redondos de tamanhos variáveis, com esporulação múltipla, identificados como Paracoccidioides brasiliensis. Realizou tratamento ambulatorial com itraconazol (100 mg/dia), apresentando melhora clínica. Quatro anos após a biópsia, o paciente submeteu-se a correção do simbléfaro da pálpebra superior esquerda, com transplante conjuntival da região temporal inferior do mesmo olho, sob anestesia tópica. O resultado estético e funcional foi satisfatório (Figura 4).

 

 

Caso 3

Paciente masculino, 73 anos, agricultor, encaminhado pelo serviço de dermatologia para avaliação oftalmológica, com queixa de lesões descamativas e pruriginosas, deformando a face há 1 ano. Referiu episódio anterior, sendo tratado ambulatorialmente com itraconazol durante 6 anos com melhora do edema e descamação da face, tendo parado o tratamento por conta própria há aproximadamente um ano.

O exame oftalmológico evidenciou acuidade visual no olho direito de conta dedos a 4m, e no olho esquerdo de 0,1. Face ocupada por lesões ulcerativas com crostas comprometendo pálpebra superior, pirâmide nasal e lábios. As pálpebras de ambos olhos estavam deformadas e parcialmente destruídas por lesões ulcerativas e crostosas, diminuindo acentuadamente a fenda palpebral, com destruição parcial das bordas (Figura 5). Apresentava também hiperemia conjuntival difusa sem secreção e córnea transparente. Não foi possível realizar fundoscopia devido ao estreitamento da fenda palpebral.

 

 

Referia tosse com expectoração esbranquiçada e prurido na região labial. Radiografia de tórax foi normal.

Realizou biópsia de lesão cutânea cujo exame anatomopatológico mostrou microabscessos com neutrófilos e intenso infiltrado inflamatório mononuclear com células gigantes multinucleadas. O Grocott revelou positividade para Paracoccidioides brasiliensis.

Realizou tratamento hospitalar com anfotericina B (5 mg/dia) durante dezessete dias recebendo alta com melhora clínica, sob uso de sulfadiazina (6 g/dia) para tratamento ambulatorial, não retornando ao serviço para reavaliação.

 

DISCUSSÃO

A paracoccidioidomicose é endêmica na América Latina, sendo mais prevalente no Brasil, Venezuela e Colômbia. No território nacional se distribui em todas as regiões, sendo mais acometidas as regiões sudeste, sul e centro-oeste(4). O maior número de casos ocorre na zona rural, em adultos do sexo masculino entre 20 e 25 anos(4).

Acredita-se que a porta de entrada seja a mucosa bucofaringeana e a via respiratória(1). A contaminação pela pele é muito rara, com exceção nas formas cutâneas puras ou primárias da doença(3). A disseminação ocorre preferentemente por via linfática, podendo ocorrer ainda, por via hematogênica, por contigüidade ou através de vias aéreas(1).

As manifestações clínicas são bastante variadas, indo desde doença localizada benigna até quadro sistêmico multifocal, de difícil tratamento e de alta letalidade. Pode acometer praticamente todos os órgãos e tecidos, com predileção pelos pulmões e linfonodos(3).

O envolvimento ocular é raro e quando presente está geralmente relacionado à forma sistêmica da doença, acometendo mais freqüentemente as pálpebras e a conjuntiva(3).

Sob o ponto de vista oftalmológico a doença pode acometer variadas porções do globo ocular e anexos, sendo mais envolvidos isoladamente pálpebras (38%) e conjuntiva (12%)(4,6-7). O acometimento associado pálpebro-conjuntival é relatado em 24% dos casos; retiniano isolado ou em associação em 10%; e pálpebro-conjuntivo-corneano em 4%(4,6-7). Foram também relatados casos de uveíte anterior, coroidite e pan-uveíte(4,6-7).

A lesão palpebral se inicia como pápula, em geral próxima ao bordo que cresce e se ulcera no centro. A base da úlcera revela pontos hemorrágicos finos e elevados, e bordas espessas e endurecidas(7). Este aspecto, combinado a pouca freqüência da infecção micótica, pode conduzir ao diagnóstico equivocado de lesão neoplásica palpebral uma vez que, embora diferentes do ponto de vista histológico, clinicamente também o carcinoma basocelular apresenta-se como lesão cutânea de bordas elevadas exibindo freqüentemente ulceração central(9). Foi o que ocorreu nos dois primeiros casos descritos, cuja principal hipótese diagnóstica foi carcinoma basocelular, sendo somente elucidado o diagnóstico final com a realização de exame anatomopatológico.

No terceiro caso, destaca-se o aspecto mutilante que a doença pode apresentar, com destruição quase completa das pálpebras, deformidade importante de face, comprometendo também pirâmide nasal e lábios. Este aspecto assemelha-se ao de outras doenças como a leishmaniose tegumentar americana, que apresenta na sua forma cutâneo-mucosa, lesões ulceradas com bordas regulares, salientes, intensa e largamente infiltradas, com fundo vermelho vivo e com granulações finas, podendo gerar formas mutilantes graves(10).

Deve-se atentar, na descrição dos casos, para o fato de que os três pacientes lidavam com materiais vegetais em suas profissões; dois eram agricultores e um, carpinteiro. Este fato destaca a contaminação através do contato acidental com o fungo no seu microambiente, já que os vegetais são o reservatório natural do mesmo(1). Ressalta-se o fato de que não só os pacientes que residem em áreas rurais estão expostos à contaminação, mas também os que lidam diretamente com materiais vegetais.

As drogas comumente utilizadas no tratamento da paracoccidioidomicose são os derivados sulfamídicos, os imidazólicos e a anfotericina B. Esta última, em virtude de sua maior toxicidade, tem sido reservada aos casos mais graves ou àqueles que se mostram resistentes aos demais medicamentos(1).

Apesar da eficiência do tratamento, a doença tem um curso crônico recidivante, e o processo de cura pode estar associado a algum grau de cicatrização fibrosante, o que freqüentemente resulta em comprometimento funcional do tecido acometido(1). A longa duração do tratamento clínico muitas vezes resulta em abandono do mesmo pelos pacientes; fato ocorrido em dois casos.

 

CONCLUSÃO

O presente relato destaca o comprometimento palpebral pelo P. brasiliensis em pacientes com a forma multifocal da doença, e ressalta a importância de se pensar nesta doença apesar de sua baixa incidência, mesmo nas áreas endêmicas. A semelhança das manifestações da paracoccidioidomicose com outras entidades como chalázio, blefarites, carcinoma basocelular e leishmaniose tegumentar americana torna imprescindível o estudo anatomopatológico, a fim de instituir terapêutica adequada.

 

 


 

 

REFERÊNCIAS

1. Barbosa W, Daher RR. Blastomicose sul-americana (Paracoccidioidomicose). In: Veronesi, R. Doenças infecciosas e parasitárias. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 1991. p.634-45.         

2. Bonomo PP, Belfort Jr. R, Tsunechiro JY, Giannotti OP. Choroidal granuloma caused by Paracoccidioides brasiliensis. A clinical and angiographic study. Mycopathologia 1982;77:37-41.         

3. Pinheiro SRAA, Oréfice F, Mason EM. Blastomicose sul-americana: descrição de um caso com lesões cutâneas, nasais e envolvimento do trato uveal posterior. Arq Bras Oftalmol 1987;50:66-9.         

4. Dantas AM, Curi R, Silva JBG, Paiva LM. Blastomicose sul-americana. Relato de um caso com uveíte granulomatosa e oftalmoplegia externa incompleta. Rev Bras Oftalmol 1973;32:61-8.         

5. Lottemberg C, Neves RA, Belfort Jr. R, Lowen MS, Colombo A, Rehder JR, et al. Paracoccidiodomicose causadora de coriorretinite num paciente com AIDS. Arq Bras Oftalmol 1992;55:13-4.         

6. Farah ME, Bonomo PPO, Kruger E. Doenças inflamatórias e infecciosas da retina. In: Abujamra S, Ávila M, Barsante C, Farah ME, Gonçalves JOR, Lavinsky J, et al. Retina e vítreo. Clínica e cirurgia. São Paulo: Roca; 2000. p.669-79.         

7. Belfort JrR, Fischman O, Camargo ZP, Almada A. Paracoccidioidomycosis with palpebral and conjuntival involvement. Mycopathologia 1975;56:21-4.         

8. Ferraz E, Cella W, Rocha E, Caldato R. Paracoccidioidomicose primária de pálpebra e conjuntiva. Arq Bras Oftalmol 2001;64:259-61.         

9. Font, RL. Eyelids and lacrimal drainage system. In: Spencer, WH. Ophthalmic pathology: an atlas and textbook. 4th ed. Philadelphia: WB Saunders; 1996. p.2218-407.         

10. Marback H. Lesões oculares da leishmaniose tegumentar americana . Salvador: Universidade Federal da Bahia; 1953.         

 

 

1Aluno do primeiro ano do Curso de Especialização em Oftalmologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia.
2
Aluna do terceiro ano do Curso de Especialização em Oftalmologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia.
3
Aluno do segundo ano do Curso de Especialização em Oftalmologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia.
4
Professor Titular de Oftalmologia. Doutor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia. Chefe do Serviço de Oftalmologia do Hospital São Rafael e da Fundação Monte Tabor - BA.

Endereço para correspondência: Av. Garibaldi, 1987, sala 304 - Salvador (BA) CEP 40210-070.
E-mail: [email protected]

Recebido para publicação em 18.04.2001
Aceito para publicação em 04.03.2002


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