Graciano Quadros Fochesatto1; Ailton Rodrigo Petermann2; Astor Grumann Junior4; Geraldo Victor de Oliveira de Andrade5; Ayrton Roberto Branco Ramos6
DOI: 10.1590/S0004-27492002000100022
RESUMO
Os autores descrevem o caso de um paciente que após ter sido submetido a uma cirurgia no cólon apresentou um quadro de endoftalmite no olho direito que levou à evisceração do mesmo. São descritos os procedimentos e infecções não contíguas que também podem levar à endoftalmite endógena.
Descritores: Endoftalmite; Complicações pós-operatórias; Evisceração ocular; Procedimentos cirúrgicos minimamente invasivos; Relato de caso
ABSTRACT
The authors report a case of a patient wich underwent a gastrointestinal surgery. After the procedure he presented with endogenous endophthalmitis in the right eye. This eye had to be eviscerated, despite treatment. The authors describe procedures and several infections that may lead to endogenous endophthalmitis.
Keywords: Endophthalmitis; Postoperative complications; Eye evisceration; Minimally invasive surgical procedures; Case report
INTRODUÇÃO
A endoftalmite bacteriana endógena é uma patologia pouco freqüente, responsável por 2% a 8% das endoftalmites(1). Está associada com doenças como diabetes mellitus, doenças gastrointestinais, hipertensão, cardio-patias, insuficiência renal, alcoolismo, uso de drogas endovenosas, traumas em outras localizações que não o olho.
Aparece com a migração de um êmbolo infeccioso em pacientes com endocardite, infecções do trato urinário, abcesso gastrointestinal, colecistite ou após endoscopia digestiva ou cirurgia abdominal. Também está associada ao abuso de drogas endovenosas.
O prognóstico visual é reservado, porém há relatos de bons resultados se for feito tratamento precoce com antibioticoterapia endovenosa e intravítrea e vitrectomia(1-2).
Este trabalho teve por objetivo chamar a atenção de médicos oftalmologistas e mesmo de outras especialidades para uma possível complicação ocular severa, secundária a patologias e procedimentos invasivos em sítios extra-oculares e que deve ser prontamente diagnosticada e tratada.
RELATO DO CASO
D.C.S, 65 anos, masculino, natural da Paraíba e residente em São José há 30 anos, procurou o Serviço de Oftalmologia do Hospital Regional de São José com queixa de dor e baixa da acuidade visual há 20 dias. Havia procurado outro Serviço e estava recebendo tratamento para toxoplasmose. Usava Sulfadiazina, Pirimetamina e Prednisona via oral. Também, Tropicamica e Prednisona colírio.
Na história patológica pregressa referia cirurgia para revascularização coronariana há 4 anos e hemicolectomia por diverticulite há 45 dias. Referia ser hipertenso, mas negava diabetes melitus.
Ao exame oftalmológico apresentava acuidade visual de SPL (sem percepção luminosa) no olho direito (OD) e 20/20 no olho esquerdo (OE) sem correção.
À ectoscopia apresentava, no OD, edema palpebral ++/++++, quemose ++/++++, hiperemia +++/++++ e hipópio total. O OE não apresentava alterações.
Ao exame biomicroscópico do segmento anterior do OD apresentava hiperemia conjuntival, papilas, quemose e hipópio total. O OE não apresentava alterações.
A medida da pressão ocular não foi possível no OD e o toque bidigital sugeria pressão elevada. No OE foi de 14 mmHg. A fundoscopia não foi possível de ser realizada no OD e era normal no OE.
A ultra-sonografia do OD demonstrava membranas vítreas móveis hipoecóicas e espessamento da coróide.
Para esclarecimento diagnóstico foram solicitados os seguintes exames: TC de órbita, hemograma, glicemia de jejum, coagulograma, provas de função hepática e renal, hemocultura, sorologia para toxoplasmose, VDRL, PPD, biópsia e cultura vítrea. O paciente foi internado e foi realizada injeção intravítrea de vancomicina e amicacina e iniciada antibioticoterapia com ceftazidima 2g EV / dia.
No dia seguinte o paciente apresentou "melting" corneano extenso com drenagem espontânea de secreção purulenta (Figura 1).
Os resultados dos exames foram normais, exceto hemograma: hemoglobina 7,8 mg/dl, hematócrito de 22,6%, 23.000 plaquetas. Fosfatase alcalina: 473 U/I, Gama GT: 404U/I. IgG para toxoplasmose: 49 U/Iml. A TC de órbita indicava celulite pré e pós septal e endoftalmite no OD (Figura 2). Na biópsia vítrea foi identificada Escherichia coli. O antibiograma indicava sensibilidade ao antibiótico usado.
A cirurgia foi contra-indicada pelo médico hematologista devido aos resultados do hemograma, sendo realizada 14 dias após a internação, já com aumento do hematócrito e plaquetas. Foi realizada uma evisceração e colocado implante de Mülles.
DISCUSSÃO
Embora não tenha uma incidência elevada(3) a endoftalmite constitui uma das complicações mais graves e de pior resultado funcional entre as afecções oftalmológicas(4).
Cerca de 90% dos pacientes têm patologias sistêmicas associadas, como diabetes melitus, desordens gastrointestinais, cardíacas, infecções do trato urinário, abcesso hepático e malignidades(1,5) cirurgia ou trauma em outra localização, uso de drogas endovenosas e endoscopia gastrointestinal prévias também têm sido relatadas(5-7). A patologia mais comumente associada é o diabetes melitus.
Também chamada endoftalmite bacteriana metastática, é uma complicação ocular devastadora da sepse bacteriana. Os êmbolos atingem o olho pela artéria central da retina ou pela artéria ciliar(2). Septicemia ou bacteremia de foco abdominal com peritonite são comumente causadas por bacilos gram-negativos aeróbios (Escherichia coli e outros). Neste caso, a manipulação cirúrgica intestinal - local onde a Escherichia coli é comumente encontrada(8) - foi a origem de uma bacteremia transitória e conseqüente infecção ocular metastática.
Okada et al, em uma série de 28 pacientes, relataram como sendo os agentes gram positivos mais comuns os Estreptococos (20 pacientes), principalmente o Streptococcus pneumoniae e gram negativos (9 pacientes) a Escherichia coli e a Klebsiella pneumoniae. A Escherichia coli é considerada como causa rara de endoftalmite endógena(2).
Na série de 27 pacientes com endoftalmite, no estudo de Wong et al, 19 (70%) eram causados por germes gram negativos, sendo a Klebsiella responsável por 16 (60%) e a Escherichia coli apenas um paciente(9).
Os sintomas oculares incluem hiperemia, quemose, edema periorbitário, moscas volantes, baixa da acuidade visual e dor(10). Deve-se ter alto índice de suspeição e o tratamento deve ser agressivo e prontamente iniciado. O diagnóstico é confirmado pela cultura vítrea e hemocultura. Numa série de 13 olhos com endoftalmite por Escherichia coli, 10 olhos foram removidos e nove dos dez pacientes eram diabéticos(11).
No tratamento utilizamos antibióticos intravítreo e endovenosos. Antes do resultado da cultura, podemos utilizar Vancomicina intravítrea e endovenosa ou Amicacina intravítrea com Gentamicina endovenosa ou Ceftazidima endovenosa com aminoglicosídeo intravítreo. Os melhores resultados têm sido obtidos em pacientes com diagnóstico precoce e com tratamento clínico e cirúrgico (vitrectomia) precoce(1,12-13). A vitrectomia é indicada em casos selecionados, principalmente quando há embaçamento suficiente para obscurecer detalhes do fundus(14-15). No caso de dor intratável ou persistência da infecção incontrolada, a evisceração ou enucleação do globo infectado deve ser realizada. Este procedimento previne a disseminação intracraniana da infecção(12-16).
O oftalmologista deve sempre estar atento ao examinar pacientes debilitados, em pós-operatórios ou submetidos a exames invasivos ou traumas, pois o diagnóstico de endoftalmite endógena muitas vezes passa desapercebido inicialmente, levando a um retardo no tratamento, o que piora o prognóstico visual destes pacientes, que já é muito reservado.
AGRADECIMENTO
Dr. Eduardo Rodrigues
REFERÊNCIAS
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1 Ex Médico Residente do Serviço de Oftalmologia do Hospital Regional de São José - Dr. Homero de Miranda Gomes (HRSJ-HMG). Fellow em Retina e Vítreo do Centro Brasileiro de Cirurgia Ocular - Centro de Referência em Oftalmologia.
2 Acadêmico da Universidade Federal de Santa Catarina e estagiário do Serviço de Oftalmologia do Hospital Regional de São José-Dr. Homero de Miranda Gomes.
3 Chefe do Departamento de Plástica Ocular do Hospital Regional de São José - Dr. Homero de Miranda Gomes Doutor em Oftalmologia pela Universidade Federal de Minas Gerais.
4 Médico Assistente do Departamento de Glaucoma do Hospital Regional de São José - Dr. Homero de Miranda Gomes.
5 Doutor em Oftalmologia pela Universidade Federal de São Paulo. Escola Paulista de Medicina. UNIFESP-EPM. Retinólogo do Centro Catarinense de Retina e Vítreo.
Endereço para correspondência: Av. T-9, no. 1082/302 - Setor Bueno - Goiânia (GO) CEP 74215-020. E-mail: [email protected]
Recebido para publicação em: 18.04.2001
Aceito para publicação em 20.08.2001