Renato Giovedi Filho1
DOI: 10.1590/S0004-27492001000500022
ATUALIZAÇÃO CONTINUADA
SOCIEDADE BRASILEIRA DE LENTES DE CONTATO E CÓRNEA-SOBLEC
Correção do astigmatismo com lentes de contato rígidas
Fitting rigid contact lenses in astigmatic patients
Renato Giovedi Filho*
INTRODUÇÃO
As lentes de contato têm, ao longo dos anos, sido utilizadas como excelentes recursos ópticos para a correção dos defeitos da refração ocular. No princípio, apenas se utilizavam materiais rígidos para sua confecção, desde o vidro, nas primeiras lentes idealizadas, até os modernos polímeros com alto coeficiente de permeabilidade desenvolvidos nos dias de hoje. Em 1963, Otto Wichtterle, apresentou as primeiras lentes hidrofílicas (gelatinosas), o que aumentou consideravelmente o número de usuários de lentes de contato em todo o mundo, devido principalmente ao seu conforto e facilidade de adaptação. Uma das limitações para o emprego do material hidrofílico consistia na sua incapacidade de corrigir o astigmatismo. Atualmente já dispomos, para esse fim, de lentes tóricas gelatinosas. Deveríamos, então, supor que aliado ao fato destas proporcionarem excelente conforto e adaptação, as lentes rígidas seriam abandonadas, fato não comprovado no nosso trabalho diário no consultório. As lentes rígidas continuam sendo ótima opção para a correção do astigmatismo de origem corneal, devido ao seu baixo custo, fácil manutenção e menor probabilidade de causar infecções.
ASTIGMATISMO TOTAL DO OLHO
O astigmatismo pode ser de origem corneal, lenticular ou retiniano, sendo este último de menor importância clínica(1). Para o assunto em questão, podemos classificar o astigmatismo em dois grupos:
1. Externo ou corneal: causado pela diferença de curvatura dos meridianos principais da córnea
2. Interno ou residual: causado por qualquer outro fator que não a córnea (cristalino ou retina).
O astigmatismo total do olho (AT) pode ser obtido através da refração, o corneal (AC) por meio da ceratometria e o residual (AR) pela da subtração deste, do total.
Por exemplo:
refração total = -2,00 DE c/ -3,00 DC a 180o. AT=3,00
ceratometria = 43,00 x 45,00 (0 x 90). AC=2,00
Portanto, o AR = 3,00 -2,00 = 1,00
Teoricamente, o astigmatismo da córnea deveria ser totalmente corrigido com lentes de contato rígidas esféricas. A lente de contato, a lente lacrimal e a córnea formariam um sistema óptico isento de toricidade, mas isso não ocorre nos grandes astigmatismos(2), devido ao movimento de báscula sobre o meridiano mais plano. Portanto, a melhor maneira de calcular o astigmatismo residual é colocar uma lente de contato rígida esférica e fazer a sobre-refração. Astigmatismos residuais pequenos, até 0,75, são bem tolerados(3) e portanto poderemos adaptar, nestes casos, lentes rígidas esféricas.
A) Correção do astigmatismo com lentes rígidas esféricas
Na presença de astigmatismo de córnea moderado, com pequeno astigmatismo residual, podemos, como primeira opção, tentar adaptar lentes rígidas esféricas, de preferência gás-permeáveis, para comprometer o menos possível o metabolismo da córnea.
1) Escolha da curva base
É chamada de curva base (CB) a curvatura central posterior da lente de contato. Existem vários métodos para se calcular a curva base da lente de teste. O método utilizado por nós, no ambulatório de lentes de contato na Santa Casa de São Paulo é o seguinte:
Astigmatismo de córnea até 2,00 D, divide-se o valor do astigmatismo por 4 e soma-se o resultado ao meridiano mais plano.
Por exemplo:
Ceratometria: 42,00 x 43,00 (0/90)
Astigmatismo corneal = 1,00 D
CB= 42,00 + (1,00 ¸ 4) = 42,25 Astigmatismo de córnea entre 2,00 e 4,00 D, divide-se por 3 e soma-se ao meridiano mais plano.
Por exemplo:
Ceratometria: 42,00 x 45,00 (0/90)
Astigmatismo corneal = 3,00 D
CB= 42,00 + (3,00 ¸ 3) = 43,00 Astigmatismo de córnea maior do que 4,00 D, divide-se por 2 e soma-se ao meridiano mais plano.
Por exemplo:
Ceratometria: 42,00 x 47,00 (0/90)
Astigmatismo corneal = 5,00 D
CB= 42,00 + (5,00 ¸ 2) = 44,50
Após a colocação da lente de prova (teste) no olho do paciente, deve-se aguardar no mínimo vinte minutos, para que haja diminuição da sensibilidade e do lacrimejamento, para posterior avaliação da lente.
À lâmpada de fenda devemos observar boa centralização, com mobilidade ao piscar, troca do filme lacrimal e distribuição uniforme deste sob a lente. No astigmatismo haverá toque em faixa no meridiano mais plano. A lente será considerada muito curva (apertada), quando ocorrer acúmulo central de fluoresceína, ou muito plana (frouxa), se houver uma grande região de toque central.
2) Cálculo do poder dióptrico
Existem duas formas de se obter o grau final da lente de contato:
Através do cálculo teórico: despreza-se o cilindro na forma negativa e subtrai-se a lente lacrimal do grau esférico do paciente, descontando-se a distância ao vértice.
onde: PLC = poder final da lente de contato
RP = refração do paciente desprezando-se o cilindro negativo e descontada a distância ao vértice.
LL = lente lacrimal
Por exemplo: ceratometria = 43,00 x 45,00
refração = -2,00 DE c/ -2,00 DC a 180o
CB da lente = 43,50
lente lacrimal = 43,50 -43,00 = + 0,50
grau final = -2,00 - (+0,50) = -2,50 através da sobre-refração: realiza-se a refração sobre a lente de contato de prova e soma-se o valor obtido, calculando-se a distância ao vértice, ao poder da lente de teste.
Por exemplo:
LC de prova: CB= 42,00 Grau= -3,00
Sobre-refração = -6,50 DE
Distância ao vértice de -6,50 = -6,00
Portanto o grau da lente pedida deverá ser -9,00
Nota: Distância ao vértice é a distância entre a córnea e a face anterior da lente corretora. Sua variação modifica o poder de correção desta. Como no uso de lentes de contato essa distância é praticamente zero, devemos fazer a compensação do grau obtido no exame de refração sobre a lente de contato. Existem tabelas, fornecidas pelos fabricantes de lentes de contato, que facilitam o procedimento.
Este é o melhor método, pois nos fornece o valor do astigmatismo residual. Se este for pequeno podemos utilizar o equivalente esférico, mas se for muito grande devemos optar por utilizar lentes de contato tóricas.
3) Escolha do diâmetro
Nas lentes fabricadas com materiais gás permeáveis dá-se preferência por diâmetros grandes, 9,2mm ou maiores, para se obter boa estabilidade sobre a córnea. Devemos lembrar que nas córneas mais curvas, adaptam-se melhor lentes com diâmetro menor, ocorrendo o inverso nas córneas mais planas(4).
B) Lentes rígidas tóricas
Quando não conseguimos boa adaptação com lentes rígidas convencionais, seja porque o astigmatismo residual é muito grande ou há muita instabilidade da lente, podemos utilizar lentes tóricas. Astigmatismos residuais maiores do que 0,75 D geralmente causam diminuição da acuidade visual e desconforto, principalmente naqueles pacientes que anteriormente utilizavam óculos, com boa visão.
Existem três tipos de lentes rígidas tóricas:
de face anterior
de face posterior
bitórica
a) Lentes rígidas tóricas de face anterior
São lentes que apresentam a toricidade apenas na face anterior, necessitando para sua estabilização da adição de um prisma de lastro, o qual varia entre 0,75 e 2,50 dioptrias. Este tem a tendência de posicionar-se inferiormente, impedindo que a lente gire. Estão indicadas para astigmatismos residuais pequenos.
Métodos de adaptação
1. Teste com lentes esféricas: escolhe-se a melhor lente esférica e realiza-se a sobre-refração. O pedido da lente de contato definitiva deverá ser feito com a curva base escolhida, o grau da lente de teste acrescido da sobre-refração total obtida, inclusive com o cilindro e o prisma de 1,50 D.
ex. LC de teste: 43,00 -2,00 D 9,2
sobre-refração: -2,00 DE c/ -1,00 DC a 165o
pedido final: 43,00 -4,00 c/ -1,00 DC a 165o com prisma de 1,50D.
Com a lente definitiva, observa-se a rotação e a centralização. Se a lente girou, solicitamos ao laboratório que aumente o prisma para 2,00D. Se a lente ficou posicionada muito inferiormente, devemos pedir a redução do prisma para 1,00D.
2. Teste com lentes esféricas com prisma
Utiliza-se para isso uma caixa de provas com lentes esféricas com prisma de lastro de 1,50 D, marcado, às 6 horas. Escolhida a melhor curva base, realiza-se a sobre-refração e ajusta-se o eixo do cilindro conforme a rotação da lente de prova. Se esta rodar no sentido horário, devemos somar a quantidade da rotação ao eixo do cilindro. Se rodar no sentido anti-horário, devemos subtrair.
Por exemplo: LC de prova = CB: 43,00
Poder: plano
Prisma: 1,50 D
Sobre-refração: -2,00 DE c/ -1,00 DC a 180o
Rotação: 10o no sentido horário.
LC pedida: 43,00 -2,00 DE c/ -1,00 DC a 10o
b) Lentes rígidas tóricas de face posterior
Esta lente possui a curva base tórica e a face anterior esférica. Não há necessidade de prisma de lastro, pois a própria curva posterior da lente ajusta-se à toricidade da face anterior da córnea. Devido a isto, a lente perde parte da sua movimentação, diminuindo a troca do filme lacrimal e, consequentemente, a oxigenação da córnea. É, portanto, necessário que se confeccionem estas lentes com material gás-permeável(5).
Devido ao fato de que o índice de refração do plástico é de aproximadamente 1,490 e o da córnea é 1,3375, devemos corrigir apenas 2/3 do astigmatismo total.
Por exemplo: Refração: -2,00 DE c/ -3,00 DC a 180o
Ceratometria: 43,00 x 46,00 (0/90)
LC: 1a curva: 43,50
2a curva: 44,50
poder: -2,00 - (+0,50 da lente lacrimal)= -2,50 DE
Se houver necessidade de aumentar a toricidade posterior para melhorar a estabilidade rotacional da lente, isto induzirá um astigmatismo perpendicular ao astigmatismo original, o que exigirá sua compensação por meio da colocação de um cilindro na face anterior da lente, tornando-a, portanto, uma lente bitórica.
c) Lentes rígidas bitóricas
Estão indicadas nos casos de astigmatismos altos, quando a toricidade posterior da lente não é suficiente para a sua correção total, ou quando, como no exemplo anterior, existe indução de astigmatismo. A face posterior da lente corrige o astigmatismo da córnea, enquanto sua face anterior compensa o astigmatismo residual ou induzido.
1. Adaptação das lentes rígidas bitóricas
Sem teste com lentes de prova
exemplo: ceratometria = 42,00 x 47,00 (0 / 90)
refração = -3,00 DE c/ - 5,00 DC a 180o
portanto o eixo horizontal (42,00) possui -3,00 D e o eixo vertical (47,00), -8,00 D, como este é maior do que 4, devemos compensar a distância ao vértice, resultando -7,25 D. Para melhorar a relação lente/córnea, devemos aplanar o meridiano mais curvo em 0,50 D e compensar isto no grau final. A lente de contato pedida deverá ser: 42,00 - 3,00 / 46,50 - 6,75
Por meio de teste com lente esférica
Utilizado apenas para confirmar, pela sobre-refração, o grau final de cada meridiano, uma vez que as curvas base deverão seguir o cálculo teórico anterior.
2. Lente bitórica com prisma de lastro
Utilizada nos casos com toricidade de córnea insuficiente para estabilizar a lente e com considerável astigmatismo residual. Há, portanto necessidade de um prisma de lastro, geralmente de 1,00 D, para estabilizar a lente no eixo desejado.
CONCLUSÃO
Existem várias alternativas para a correção do astigmatismo com lentes de contato rígidas, que podem resultar em boa correção óptica, conforto e menor incidência de complicações, principalmente as infecciosas, comuns na utilização das lentes hidrofílicas. Além disso, são lentes fabricadas no nosso meio, o que diminui custos e agiliza a reposição, no caso de perda.
Keywords: Astigmatism/therapy; Contact lenses; Corneal pathology; Visual acuity; Optometric methods; Accomodation/ocular
REFERÊNCIAS
1. Gil Del Rio E, Baronet P. Lentes de contacto. Barcelona: Jims, 1980. p. 398-9.
2. Pena AS. Adaptações especiais: lentes convencionais Tóricas. In: Pena AS. Clínica de lente de contato. Rio de Janeiro: Cultura Médica, 1989. p. 153-5.
3. Polse KA, Kenyon E. Special refractive problems. In: Aquavella JV, Rao GN. Contact lenses. Philadelphia: J B Lippincott, 1987. p. 164-87.
4. Moreira SMB, Moreira H. Lentes rígidas gás-permeáveis. In: Moreira SMB, Moreira H. Lentes de Contato. Rio de Janeiro: Cultura Médica, 1998. p. 116-28.
5. Moreira SMB, Moreira H. Correção de astigmatismo com lentes de contato. In: Moreira SMB, Moreira H. Lentes de contato. Rio de Janeiro: Cultura Médica, 1998. p. 259-70.
* Chefe do Setor de Refração da Santa Casa de São Paulo.
Assistente do setor de Lentes de Contato da Santa Casa de São Paulo.
Aluno da pós-graduação, nível doutorado, da Universidade de São Paulo.
Editor do Jornal da Sociedade Brasileira de Lentes de Contato e Córnea.