Open Access Peer-Reviewed
Editorial

Paracoccidioidomicose primária de pálpebra e conjuntiva

Primary paracoccidioidomycosis of eyelid and conjunctiva

Ezon Ferraz1; Wener Cella1; Eduardo Rocha; Roberto Caldato2

DOI: 10.1590/S0004-27492001000300019

RESUMO

A paracoccidioidomicose (Pbmicose) é a micose profunda mais freqüente no Brasil, mas o acometimento ocular é raro e, quando presente, geralmente secundário. Os autores relatam caso de Pbmicose pálpebro-conjuntival em que não foi encontrado foco extra-ocular. É feita uma revisão da literatura e discutida a importância da suspeita diagnóstica em população de risco e do tratamento precoce desta condição para o bom prognóstico visual.

Descritores: Paracoccidioidomicose; Pálpebras; Conjuntiva; Doenças palpebrais

ABSTRACT

Paracoccidioidomycosis is the most frequent systemic mycosis in Brazil, but ocular involvement is rare and, if present, often secondary to another site. The authors report a case of paracoccidioidomycosis of eyelid and conjunctiva where no extraocular focus was found. A brief review of the literature is made discussing the importance of diagnostic suspecion in a population at risk and early treatment for a good visual prognosis.

Keywords: Paracoccidioidomycosis; Eyelid; Conjunctiva; Eyelid diseases

INTRODUÇÃO

Paracoccidioidomicose(1-3) (Pbmicose) é doença sistêmica crônica causada pelo fungo dimórfico Paracoccidioides brasiliensis(4-5). Também chamada de blastomicose sul-americana, foi descrita pela primeira vez por Adolfo Lutz em 1908, sendo o Brasil considerado área endêmica, acometendo tipicamente trabalhadores rurais do sexo masculino com faixa etária entre 30 e 60 anos(3-5).

O fungo encontra-se na sua forma esporulada à temperatura ambiente e tem como reservatórios e fontes de contaminação o solo, a madeira e a poeira(3). As portas de entrada aceitas para a infecção são a respiratória, tegumentar, digestiva e amigdaliana, sendo a primeira a mais freqüente e, por isso, o pulmão o órgão mais atingido por esta micose profunda(3-4).

O acometimento ocular é infreqüente, com raras descrições na literatura de casos em topografia palpebral, conjuntival, corneana, uveal, coriorretiniana e orbitária(4). O diagnóstico precoce assume importância por evitar a evolução da infecção para lesões mutilantes e cegueira(5).

 

MÉTODOS

VAS, 49 anos, sexo masculino, pedreiro, procedente de Minas Gerais, procurou o Serviço de Oftalmologia da UNICAMP com queixa de prurido, dor, secreção purulenta e diminuição da acuidade visual no olho esquerdo há 6 meses. O quadro era insidioso e refratário a tratamentos prévios direcionados a uma provável etiologia bacteriana. Negava trauma ocular e alterações sistêmicas. Ao exame oftalmológico, apresentava acuidade visual sem correção de 0,8 no olho direito e 0,3 no esquerdo. A biomicroscopia mostrou olho esquerdo com edema inflamatório bipalpebral, de consistência firme e sem limites precisos que atingia toda a extensão das pálpebras, coloboma em pálpebra superior com margens necróticas e madarose associada, secreção purulenta acumulada em fórnice conjuntival inferior, hiperemia conjuntival difusa moderada com quemose perilimbar e córnea transparente (Figura 1). O restante do exame era normal. A cultura da secreção conjuntival foi positiva para estafilococo coagulase-negativo e negativa para fungos. O anátomo-patológico da pálpebra inferior e conjuntiva evidenciou o processo de cripto-esporulação fúngica (coloração de Grocott), patognomônico de infecção pelo Paracoccidioides brasiliensis (Figura 2). Com o diagnóstico de Paracoccidioidomicose pálpebro-conjuntival, o paciente foi investigado de forma sistêmica para detecção de outros possíveis focos de envolvimento. O exame físico geral mostrou-se normal, assim com os exames laboratoriais, a saber: velocidade de hemossedimentação = 2 mm na 1ª hora, série eritrocítica = 5,37x106, leucócitos totais = 9,31x103, segmentados = 3,16x103, linfócitos = 2,88x103, monócitos = 1,21x103, eosinófilos = 2,04x103, plaquetas = 220x103. A sorologia para paracoccidioidomicose por imunodifusão radial dupla foi reagente, com resultado de 1/1 (normal = não reagente). Radiografia de tórax e ultra-sonografia abdominal não mostraram alterações. Foi iniciado esquema terapêutico com Sulfametoxazol (2,4g/dia) e Trimetoprima (480mg/dia) por via oral, associada a limpeza mecânica ocular com solução fisiológica estéril. Após duas semanas de tratamento o paciente referia melhora importante do edema e negava dor e prurido, apresentando ao exame do olho esquerdo edema bipalpebral discreto, hiperemia conjuntival leve e pequena quantidade de secreção purulenta em fórnice conjuntival inferior. O paciente foi orientado a manter o tratamento por um período de dois meses e retornar para cirurgia palpebral reconstrutora, mas perdeu o seguimento ambulatorial. Após 1 ano voltou ao serviço apresentando entrópio palpebral cicatricial e triquíase no olho previamente acometido. A triquíase resultou em perfuração corneana com intensa desorganização do segmento anterior. Como apresentava visão sem percepção luminosa e olho doloroso, foi indicada evisceração. Pela acentuada degradação tissular, o conteúdo ocular eviscerado não foi encaminhado para exame histopatológico.

 

 

 

DISCUSSÃO

A Pbmicose atinge principalmente os pulmões, o tegumento e os órgãos linfáticos(1, 5). Encontra-se diretamente relacionada ao fator ocupacional, sendo mais freqüentemente encontrada nos pacientes que trabalham em íntimo contato com o solo ou poeira, especialmente em áreas rurais, fato que reflete sua maior prevalência no sexo masculino(3, 5).

O acometimento ocular pela Pbmicose é raro mas, quando presente, pode causar lesões mutilantes e mesmo cegueira(5) Belfort Jr. e col. (1975) descreveram as alterações pálpebro-conjuntivais mais encontradas, consistindo de lesões ulceradas granulomatosas com fundo hemorrágico nas pálpebras, podendo atingir os ductos lacrimais; associam-se edema palpebral, hiperemia e, por vezes, um coloboma secundário à destruição tissular local. A conjuntiva apresenta-se difusamente hiperemiada e a presença de secreção purulenta devido à infecção secundária é observada com certa freqüência; lesões granulomatosas e hemorrágicas com estruturas foliculares também podem ser encontradas na conjuntiva(1, 4). Linfadenomegalias indolores cervicais, pré-auriculares e submandibulares também podem fazer parte do quadro(3, 6-7). Mais raramente, o trato uveal posterior é acometido, com lesões granulomatosas exsudativas, vascularização e periflebite. A coroidite pelo P. brasiliensis é descrita em pacientes imunocomprometidos, sendo este fungo um dos responsáveis pelas micoses oculares oportunistas(2).

As lesões oculares por Pbmicose geralmente são secundárias, regredindo com a terapêutica sistêmica instituída para o foco primário(1). Os esquemas terapêuticos não são unificados, observando-se na literatura casos de cura com sulfonamidas, cetoconazol e anfotericina B(5-6). As hipóteses de envolvimento ocular compreendem a disseminação hematogênica do fungo e, mais raramente, inoculação direta no olho, quando limitada a este e geralmente precedida de trauma(1, 5).

O diagnóstico definitivo é feito através de pesquisa direta do fungo, exame de cultura ou biópsia da região afetada(3, 5-6).

O presente caso mostra um envolvimento primário da pálpebra e conjuntiva, já que o exame geral do paciente não localizou focos extra-oculares da micose. O tratamento instituído, à base de sulfonamida sistêmica e limpeza mecânica local, mostrou-se eficiente imediatamente após sua instituição, mas deve ser complementado com a correção estética e funcional da pálpebra acometida. A cirurgia plástica reconstrutora se impõe com o objetivo de evitar o desenvolvimento de alterações secundárias a triquíase ou exposição excessiva do globo ocular. A perpetuação destas alterações, como aqui exemplificado, pode resultar em dano visual irreversível.

Por ser o Brasil região endêmica de Pbmicose, deve-se sempre suspeitar do envolvimento ocular por esta infecção em pacientes com evolução crônica que apresentam as características previamente descritas, principalmente se apresentarem risco ocupacional, idade superior a 30 anos e história pregressa desta infecção(5).

 

 


 

 

REFERÊNCIAS

1. Belfort Jr R, Fischman O, de Camargo ZP, Almada A. Paracoccidioidomycosis with palpebral and conjunctival involvement. Mycopathologia 1975; 56:21-4.         

2. Hadmdan J, Guimarães IS, Oréfice F. Uveítes fúngicas. In: Oréfice F. Uveíte clínica e cirúrgica, Rio de Janeiro: Cultura Médica; 2000. p. 571-92.         

3. Jannke HA, Lopez FS, Abrahão MC, Thofem P, Duarte AL, Holthausen ET. Blastomicose sulamericana palpebral. Rev Bras Oftalmol 1983;42:157-60.         

4. Kamegasawa A, Moraes-Silva MRB, Franco M, Heimbeck FJ. Paracoccidioidomicose ocular: revisão. Arq Bras Oftalmol 1988;51:183-5.         

5. Silva MR, Mendes RP, Lastória JC, Barravieira B, Marques AS, Kamegasawa A. Paracoccidioidomycosis: study of six cases with ocular involvement. Mycopathologia 1988;102:87-96.         

6. Queiroz S. Blastomicose palpebral. Bol Soc Med Cir (Campinas) 1943:130         

7. Sales M, Queiroz S. Blastomicose ocular (palpebral). Arq Inst Penido Burnier 1945;7:260-1.         

 

 

Hospital das Clínicas da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - Faculdade de Ciências Médicas - Disciplina de Oftalmologia, Setor de Plástica Ocular.

1 Residente de Oftalmologia da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP (SP).
2 Médico voluntário da Disciplina de Oftalmologia da Universidade Estadual de Campinas UNICAMP (SP).
3 Chefe do Setor de Plástica Ocular da Disciplina de Oftalmologia da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP (SP).

Endereço para correspondência: Ezon Ferraz, R. Hermantino Coelho, 77/71, BL. 1 - Mansões Santo Antônio - Campinas (SP) CEP 13087-500. E-mail: [email protected]


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