Icaro Soares França1; Juliana Medrado1; Valênio Perez França2; Eduardo Jorge Carneiro Soares3
DOI: 10.1590/S0004-27492011000600009
RESUMO
OBJETIVOS: Estudar os efeitos clínicos da secreção das glândulas salivares labiais na lubrificação das cavidades anoftálmicas secas, avaliar a durabilidade dos resultados e apresentar a técnica do transplante. A aplicação desse procedimento em cavidades anoftálmicas secas é inédita na literatura. MÉTODOS: Estudo prospectivo das cirurgias de enxertos glândulo-mucosos, compostos pela mucosa labial e glândulas salivares subjacentes, colocados no fórnice conjuntival de 5 pacientes com cavidades anoftálmicas que apresentavam grave xeroftalmia e retração dos fórnices conjuntivais. As cirurgias foram realizadas durante o período de julho/00 a janeiro/09. Dois pacientes já haviam sido tratados previamente com enxertos de mucosa ou de pele. A técnica do procedimento é descrita em detalhes. Os parâmetros que serviram para a análise comparativa dos resultados foram o quadro clínico, o aspecto do revestimento da cavidade, o ressecamento da superfície da prótese e a frequência do uso de colírios lubrificantes. RESULTADOS: Em todos os casos foi constatada a integração do enxerto e a melhora dos parâmetros avaliados. A evolução mostrou persistência e estabilidade dos resultados. CONCLUSÕES: A lubrificação da superfície da cavidade produzida pela secreção salivar mostrou ser eficiente, bem tolerada e constante, resultando maior conforto do uso da prótese. Infere-se que essa melhor lubrificação obtida ajuda a prevenir a evolução do processo de retração da cavidade. O transplante das glândulas salivares labiais para o fórnice conjuntival demonstrou ser um procedimento de fácil execução, acessível a qualquer cirurgião oftalmologista.
Descritores: Anoftalmia; Xeroftalmia; Implantes orbitários; Glândulas salivares; Resultado de tratamento
ABSTRACT
PURPOSE: To study the clinical effects of labial salivary glands' secretion used as ocular lubricant in anophthalmic cavities with severe xerophthalmia; to evaluate the evolution of the results; and to present the surgical technique. This procedure application in dry anophthalmic cavities is new in the literature. METHODS: Prospective study of patients presenting anophthalmic cavities with severe xerophthalmia and conjunctival fornix retraction treated with labial salivary glands transplantation to the conjunctival fornices. The surgeries were performed in five patients during the period of July 2000 to January 2009. In two cases the fornix retraction was previously treated with mucosa or skin graft. The surgical procedure technique is described in details. The postoperative comparative analysis was based on the clinical picture, the cavity surface aspect, the dryness of the cavity and prosthesis and the frequency of lubricant eye drops use. RESULTS: In all cases both graft integration and improvement of the evaluated parameters were observed. The evolution proved the persistence and stability of the results. CONCLUSION: The salivary secretion produced by the transplanted labial glands proved to be efficient as conjunctival lubricant, well tolerated and permanent, making the use of the prosthesis more comfortable. This improvement helps to prevent the progression of the cavity retraction process. Labial salivary glands graft into the anophtalmic cavity is a simple procedure and accessible to any ophthalmic surgeon.
Keywords: Anophthalmia; Xerophthalmia; Orbital implants; Salivary glands; Treatment outcome
INTRODUÇÃO
Nas cavidades anoftálmicas a produção lacrimal é significativamente diferente da que acontece nas superfícies oculares normais, existindo uma hiposecreção natural das glândulas lacrimais devido à falta do arco reflexo gerado pela sensibilidade corneana(1). A deficiência na quantidade e/ou qualidade da lágrima nas cavidades anoftálmicas se manifesta por queixas subjetivas de intensidades muito variáveis, como sensação de areia ou de corpo estranho, ardência, prurido e desconforto no uso da prótese que apresenta superfície seca, sem brilho, dificultando o piscar. A estase e a má distribuição da quantidade reduzida de lágrima existente favorece a instalação de uma irritação conjuntival crônica, com produção de secreção constante que muitas vezes apresenta infecção secundária. Essa situação gera um impacto negativo na execução de tarefas da vida diária, afetando a qualidade de vida desses pacientes. Em casos extremos pode ocorrer a desistência do uso da prótese. Diversos produtos lubrificantes substitutivos da lágrima, a ciclosporina tópica, a oclusão do ponto lacrimal e as cantorrafias são recursos que têm sido utilizados para minimizar essa situação, mas são insuficientes nos casos mais graves.
Murube(2), descreveu a técnica de implantar um enxerto glândulo-mucoso composto pela mucosa labial e glândulas salivares subjacentes no fórnice conjuntival de pacientes com olho seco grave, refratário aos tratamentos convencionais. Soares(3) observou que a melhora clínica do olho seco grave observada após o enxerto das glândulas salivares labiais foi significativa em casos com olhos com xeroftalmia grave. Vardizer(1) descreveu os efeitos favoráveis de plugs lacrimais em pacientes com cavidade anoftálmica. Não encontramos na literatura nenhuma publicação sobre o uso do transplante de glândulas salivares labiais em cavidades anoftálmicas.
O objetivo deste estudo é examinar os efeitos das cirurgias de enxerto de glândula salivar labial sobre os sinais e sintomas de xeroftalmia em pacientes anoftálmicos, e avaliar os resultados a longo prazo.
MÉTODOS
Os pacientes incluídos neste estudo foram atendidos na Policlínica Oftalmológica de Belo Horizonte. A cirurgia foi realizada em 5 pacientes entre julho de 2000 e janeiro de 2009. As causas da anoftalmia foram: queimadura com soda cáustica (2 pacientes), buftalmia (1 paciente), trauma (1 paciente) e retinoblastoma (1 paciente). Todos os pacientes possuíam cavidade anoftálmica seca grave, sendo que dois tinham história de já terem sido submetidos anteriormente a algum procedimento cirúrgico na cavidade (Tabela 1): enxerto dermo-adiposo e reconstrução de um ou mais fórnices, o que constitui um indicador de que existia retração nessas cavidades. Outras cirurgias realizadas foram também referidas pelos pacientes, tais como cantoplastias, correção de entrópio e de retração de pálpebra inferior.
Os dados relevantes na análise pré e pós-operátoria desses pacientes incluíram o quadro sintomatológico, o exame da cavidade, a frequência do uso de lubrificantes oculares e a presença de retração de fórnices.
a) As queixas relatadas por todos os pacientes, além do desconfortável uso da prótese, foram de sensação de ressecamento da cavidade, com ardor, areia, coceira e secreção constante, sem alívio com a medicação anti-inflamatória convencional. O quadro sintomatológico foi classificado, segundo a sua intensidade, em leve (+), moderado (++) e intenso (+++). Todos os pacientes apresentaram grau intenso (+++).
b) A avaliação da superfície de revestimento da cavidade mostrou graus variados de edema, congestão, irregularidades nos fórnices e presença de enxertos de mucosa ou de pele previamente realizados (2 casos). Todas as cavidades apresentavam o revestimento sem brilho, com dificuldade de piscar por sobre a prótese e lagoftalmo (2 casos).
c) Todos os pacientes faziam uso de lubrificantes (colírios ou óleos minerais) de maneira muito frequente, ou seja, em intervalos que variavam de 5 em 5 a 15 em 15 minutos.
d) O processo irritativo-inflamatório dos fórnices conjuntivais estava presente em todos os pacientes e a retração dos fórnices era presente nos cinco pacientes, sendo essas cavidades classificadas no grupo III da classificação descrita por Soares(4).
Em dois pacientes (40%) a área receptora escolhida foi o fórnice superior; em dois outros (40%) o enxerto foi colocado no fórnice inferior e em um caso (20%), o enxerto foi colocado em ambos os fórnices. A escolha da área receptora depende do exame da cavidade, pois quando não há retração conjuntival, a nossa preferência é a metade medial do fórnice superior. Nos outros casos, situa-se na própria área retraída.
Todos os pacientes consentiram por escrito em se submeterem à cirurgia proposta, após terem sido esclarecidos a respeito do procedimento.
O procedimento foi executado em todos os pacientes sob anestesia local com sedação monitorizada por anestesista, em regime ambulatorial.
TÉCNICA
Inicialmente é feita a preparação do leito receptor no fórnice conjuntival previamente escolhido. A pálpebra deve ser evertida com o retrator de Desmarres, fixando-a em posição adequada com uma rédea de fio 5.0 (Nylon ou Seda) passada na margem palpebral. Em seguida injeta-se anestésico xilocaína 2% sem vasoconstritor no espaço subconjuntival para separar a mucosa do plano muscular subjacente (músculo de Müller), o que facilita a sua dissecção. A incisão da conjuntiva deve ser preferencialmente feita a meio caminho entre a borda superior do tarso e o fundo do fórnice, no sentido horizontal, estendendo por cerca de 2 cm a partir do canto medial, paralela à curva da borda superior do tarso (Figura 1). Nos casos que apresentam sequelas cicatriciais da conjuntiva, a simples incisão da mucosa provoca a exposição do leito, que fica aberto em forma de elipse, necessitando apenas da dissecção das margens da ferida para que sejam depois suturadas ao enxerto. O objetivo é criar uma área cruenta fusiforme na face posterior da pálpebra superior, de aproximadamente 2 cm de comprimento por 1 cm de altura, com o leito receptor constituído pelo músculo de Müller, caracterizado por sua rica vascularização. Quando o enxerto é colocado no fórnice inferior, o leito é formado pelo plano do sistema retrator da pálpebra.
O enxerto glândulo-mucoso é obtido do lábio superior ou inferior, ou mesmo de ambos, nas áreas próximas à prega labial, onde a população glandular é mais numerosa a meio caminho entre a borda do lábio e o sulco gengival. O acesso cirúrgico é feito com uma incisão em elipse da mucosa labial, com 2 a 3 cm de comprimento por 1cm de largura, que deve ser aprofundada até o plano muscular. Em seguida, com uma tesoura de pontas rombas e pinça absolutamente atraumática (colibri), retira-se o enxerto fazendo a dissecção seguindo o folheto areolar que separa o manto glandular do plano muscular subjacente. O enxerto é assim retirado em um conjunto único, constituído pela mucosa e glândulas salivares, com seus microscópicos condutos excretórios intactos (Figura 2). Essas pequenas glândulas, engastadas na lâmina própria da mucosa, umas maiores outras menores, apresentam-se aglomeradas como cacho de uvas.
O enxerto glândulo-mucoso assim retirado da área doadora deve ser então colocado no leito receptor com a face glandular em contato com a superfície cruenta. A conjuntiva é suturada à mucosa do enxerto, de forma contínua, com fio de nylon 6.0 (Figura 3), com as extremidades do fio transfixando a pálpebra para serem anodadas na pele sobre um pequeno chumaço de algodão.
A área doadora é fechada com uma sutura contínua de nylon 6.0, deixando também as extremidades do fio fixadas externamente sobre a pele do lábio. Assim se evita a presença de nós na face interna da pálpebra ou do lábio, que podem causar sensação de corpo estranho e desconforto no pós-operatório.
A medicação pós-operatória consistiu apenas na prescrição de um colírio anti-inflamatório com antibiótico (uma gota 4 a 6 vezes ao dia) e de um antiséptico oral. Uma prótese conformadora foi colocada ao completar a segunda semana de pós-operatório, após a retirada das suturas.
RESULTADOS
O seguimento dos pacientes foi feito por 13 a 84 meses, com média de 44,4 meses (Tabela 2).
O aspecto pós-operatório imediato apresentou discreto a moderado edema e congestão das pálpebras e da conjuntiva, que desapareceram após oito a dez dias. As queixas relativas ao desconforto pós-operatório imediato foram mínimas, relatadas como sensação de pálpebra mais pesada e dolorida.
Os enxertos apresentaram-se com aspecto pálido nas primeiras 24 horas, mas sem nenhum sinal de sofrimento vascular, sendo sua incorporação vital à área receptora processada naturalmente, readquirindo progressivamente a sua coloração rosada original a partir do segundo dia do pós-operatório (Figura 4).
A área doadora no lábio mostrou aparência semelhante à de um leve trauma cirúrgico, sem dor ou incômodos importantes. A ferida resultou em uma cicatriz linear quase inaparente.
O alívio dos sintomas foi observado logo nos primeiros dias, traduzido pela sensação de umidade e maior conforto no piscar. Também foi observado que no pós-operatório houve recuperação do brilho da superfície da cavidade e da prótese, acompanhado de grande diminuição do quadro inflamatório.
Todos os pacientes apresentaram no pós-operatório tardio sintomas de olho seco leve, processo inflamatório leve, ausência de infecção secundária, lubrificação presente, com brilho natural da superfície de revestimento da cavidade. O aspecto tardio da cavidade se apresentava melhorado em todos os casos, com oclusão voluntária completa por sobre a prótese e aparência estética e funcional satisfatória (Figura 5).
O grau de contentamento dos pacientes variou de ++ (2 pacientes, 40%) a +++ (3 pacientes, 60%). Um paciente (20%) referiu que não precisou mais usar lubrificante ocular desde que foi feita a cirurgia. Os restantes (80%) tiveram necessidade de usar colírio lubrificante, porém com menor frequência que no pré-operatório, diminuindo significativamente para 3 ou 4 vezes ao dia. Nenhum paciente relatou lacrimejamento após o procedimento. Nenhuma complicação decorrente da cirurgia foi observada.
DISCUSSÃO
Todos os pacientes estudados apresentavam cavidades anoftálmicas com grave deficiência de produção lacrimal, com intensas queixas de ressecamento na cavidade, desconforto no uso da prótese e usavam lágrimas artificiais ou óleo lubrificante muito frequentemente. A eficácia do enxerto de glândulas salivares labiais foi analisada nos cinco pacientes apresentados nesse estudo.
As glândulas salivares labiais são mais numerosas que as outras glândulas produtoras de saliva e são de mais fácil acesso cirúrgico. A sua secreção é constante, do tipo basal, independente de reflexos, é aquo-serosa e mucosa, com características biofísicas e bioquímicas não muito diferentes da lágrima(3). Contém elementos muito bem tolerados pela superfície ocular, conservando-a e protegendo-a, principalmente através da mucina produzida em maior quantidade, que aumenta a viscosidade da "lágrima salivar". Essa secreção mais consistente diminui a evaporação e forma uma camada umidificante mais duradoura e estável(3).
A área de nossa preferência para colocar o enxerto ocupa os dois terços mediais do fórnice superior, preservando-se o terço lateral onde se localizam os ductos da glândula lacrimal principal por onde pode ainda fluir alguma produção lacrimal, por menor que seja deve ser preservada. Quando existe simbléfaro ou retração no fórnice inferior, o enxerto pode ser colocado nessa área após serem desfeitas as aderências, corrigindo concomitantemente o defeito.
É importante ressaltar que o enxerto precisa de um leito bem vascularizado para sobreviver, motivo pelo qual a vasoconstrição local e a cauterização excessiva devem ser evitadas.
A técnica do procedimento é simples e apresenta mínima morbidade. A integração do enxerto ao leito receptor se processa nas primeiras 48 horas, evidenciada pela rápida recuperação da sua coloração normal.
Foi comprovada a melhora dos parâmetros objetivos e subjetivos estudados, como a recuperação da lubrificação e do brilho da superfície conjuntival e da prótese, assim como pelo alívio dos sintomas e diminuição na frequência do uso de colírios lubrificantes. A melhor lubrificação é produzida pela secreção das glândulas enxertadas, pois esses pacientes apresentavam xeroftalmia grave antes do transplante.
A repetição do enxerto das glândulas salivares labiais constitui outra vantagem do procedimento, apesar de não ter sido necessário em nenhum desses pacientes.
A ausência do grupo controle é justificada pela dificuldade de se encontrar pacientes com cavidades anoftálmicas com xeroftalmia e também pelo fato de não haver possibilidade de melhora espontânea nesses casos.
CONCLUSÕES
A indicação desse procedimento é um recurso complementar no tratamento das cavidades anoftálmicas que se apresentam ressecadas pela falta de lubrificação.
O acompanhamento dos casos mostrou que os resultados persistiram ao longo do período de tempo estudado (média de três anos e meio) demonstrando que a produção da "lágrima salivar" é constante e estável. A melhor lubrificação é um fator importante na prevenção do processo de retração da cavidade.
A técnica de transplante das glândulas salivares labiais para o fórnice conjuntival em cavidades anoftálmicas é um procedimento de fácil execução, acessível a qualquer cirurgião oftalmologista.
REFERÊNCIAS
1. Vardizer Y, Lang Y, Mourits MP, Briscoe MD. Favorable effects of lacrimal plugs in patients with an anophthalmic socket. Orbit. 2007;26(4):263-6.
2. Murube J, Manyari A, ChenZhuo L, Rivas L, Murbue I. Labial salivary gland transplantation in severe dry eye. Oper Techn Oculoplast Orbit Reconstr Surg. 1998;1:104-10.
3. Soares EJ, Franca VP. Transplante de glândulas salivares labiais no tratamento do olho seco grave. Arq Bras Oftalmol. 2005;68(4):481-9.
4. Soares EJ. Treatment of the anophthalmic cavities: twenty years of experience. Orbit. 1991;10(2):77-88.
Correspondence address:
Eduardo J. C. Soares
Rua Timbiras, 3468 - Barro Preto
Belo Horizonte (MG) - 30140-062 - Brazil
E-mail: [email protected]
Submitted for publication: December 22, 2010
Accepted for publication: October 31, 2011
Study carried out at the Setor de Plástica Ocular do Centro Oftalmológico de Minas Gerais; Clínica de Olhos do Hospital Mater-Dei; Policlínica Oftalmológica - Belo Horizonte (MG), Brazil.
Funding: No specific financial support was available for this study.
Disclosure of potential conflicts of interest: I.C.França, None; J.Medrado, None; V.P.França, None; E.J.C.Soares, None.