Eduardo Marback1; Cristine Libório de Melo1
DOI: 10.1590/S0004-27492010000600013
RESUMO
Apresentamos um caso retenção inadvertida de membrana de Descemet durante ceratoplastia penetrante por distrofia endotelial de Fuchs. Comentamos as dificuldades encontradas para sua remoção durante a cirurgia de catarata subsequente, bem como propomos uma nova abordagem cirúrgica.
Descritores: Lâmina limitante posterior da córnea; Lâmina limitante posterior da córnea; Transplante de córnea; Transplante de córnea; Ceratoplastia penetrante; Relatos de casos; Humano; Feminino; Idoso
ABSTRACT
A case of inadvertent retention of Descemet's membrane after penetrating keratoplasty for Fuchs dystrophy is reported. The challenges to remove it during cataract surgery are commented, as well as a proposal of a new surgical approach.
Keywords: Descemet membrane; Descemet membrane; Descemet membrane; Corneal transplantation; Corneal transplantation; Keratoplasty, penetrating; Case reports; Human; Female; Aged
INTRODUÇÃO
A persistência da membrana de Descemet (MD) da córnea receptora é uma complicação conhecida e não intencional em ceratoplastia penetrante(1-3). O aspecto biomicroscópico é de duplicação da câmara anterior, sendo comum ocorrer diminuição na transparência da membrana ao longo do tempo levando à piora na acuidade visual(2,4-5).
Nosso objetivo é relatar um caso de persistência de MD após ceratoplastia penetrante, que foi removida posteriormente durante a facectomia.
RELATO DO CASO
Paciente feminina, 73 anos, com história de distrofia de Fuchs e ceratoplastia penetrante no olho esquerdo (OE) há 10 meses, encaminhada com diagnóstico de catarata e relato de dupla câmara anterior após a ceratoplastia.
Apresentava acuidade visual corrigida de 20/300 em OE. O exame biomicroscópico do OE revelou botão corneano com boa transparência geral, estroma compacto com mínima opacificação paracentral em média profundidade. Além de catarata nuclear densa, havia a presença de câmara anterior dupla pela persistência da MD receptora, a qual exibia algumas dobras, depósitos pigmentares e diminuição de transparência difusamente (Figura 1 A). O olho direito exibia córnea gutata. A pressão intraocular estava dentro do padrão da normalidade em ambos os olhos. À oftalmoscopia do OE notava-se apenas diminuição da transparência dos meios.
Devido à diminuição da transparência da MD, foi proposta sua remoção durante a facectomia. A cirurgia foi realizada com incisão auxiliar temporal superior pelo leito da córnea receptora e incisão principal no limbo nasal superior. A cápsula anterior foi corada com azul de tripano e a porção posterior da dupla câmara anterior foi refeita com substância viscoelástica. Tentamos sem sucesso remover a MD primeiro com o vitreófago, depois fazendo uma abertura central com um cistótomo invertido e tentando manobra de "descemetorrexe" invertida (Figura 2 A) e por último, novamente com o vitreófago após a abertura da MD. A abertura feita com o cistótomo permitiu passagem de bolha de ar para o compartimento anterior da dupla câmara. Ao repor o viscoelástico notamos deslocamento da bolha de ar para fora do olho através de um segundo defeito na MD, afortunadamente próximo da incisão principal (Figura 2 B). Este defeito foi alargado com a cânula do viscoelástico, permitindo a secção da porção superior da MD e realização de "descemetorrexe" com pinça de capsulorrexe no remanescente da membrana (Figura 2 C e D). Foi então realizada facoemulsificação e implante de lente intraocular sem intercorrências.
O pós-operatório transcorreu bem, com botão corneano doador mantendo-se transparente (Figura 1B). Após a adaptação de lente de contacto gás permeável, atingiu acuidade visual de 20/30.
DISCUSSÃO
A presença de espessamento corneano parece ser um fator facilitador à separação lamelar com maior chance de retenção não intencional da MD durante ceratoplastia penetrante(1-2,5). A separação pode ocorrer também por uma injeção inadequada de viscoelástico com viscodissecção não intencional da MD do receptor(6). Em nossa paciente, provavelmente o mecanismo facilitador para a retenção da MD durante a ceratoplastia penetrante foi o edema corneano induzido pela distrofia de Fuchs.
Embora a persistência da MD do receptor possa ocasionalmente levar a toque endotelial e comprometer o botão doador, quando existe perfuração da mesma que permita a livre passagem de aquoso é possível manter a transparência do botão(1-6). Com base neste achado, a persistência da MD já foi inclusive utilizada como forma de proteger o endotélio do botão doador na presença de óleo de silicone em olho afácico(3). A indicação para a remoção da MD residual quando existe dupla câmara anterior sem compromisso para o botão receptor, baseia-se então na diminuição da transparência da MD levando a consequente piora na acuidade visual que tem ocorrido entre 3 meses a 1 ano de pós-operatório, ou pela possibilidade da MD servir como suporte para possível crescimento e manutenção de membranas inflamatórias(1,3,6).
Para restabelecer a visão em pacientes com diminuição da transparência da MD residual, já foi relatada a abertura de orifício central pela aplicação de YAG laser(4,6). Entretanto, tal procedimento nem sempre é possível, supostamente pela diminuição na tensão superficial da membrana que ocorre pelas microperfurações existentes em casos com dupla câmara anterior(2-3). Nesta situação a única opção é a remoção cirúrgica. Esta já foi realizada em conjunto com a facectomia, bem como através da remoção de duas suturas da ceratoplastia e introdução de pinça de capsulorrexe na porção anterior da dupla câmara, através da junção entre botão doador e receptor(2,5).
Em nosso caso, não queríamos reabrir a incisão na interface entre a córnea receptora e o botão doador. Alguns autores, relataram caso semelhante ao nosso no qual utilizaram um bisturi 15º para abrir a MD próximo a incisão principal e depois realizar "descemetorrexe" com agulha para remover a MD(2). Não sabemos explicar porque não foi possível a remoção da MD com o vitreófago, especulamos que tenha sido pela consistência do tecido. Por medo de possível lesão no endotélio do botão doador, não usamos a técnica proposta por Chen et al. optando ao invés por realizar punção na porção central da MD onde a profundidade da porção anterior da dupla câmara usualmente é maior(2). Analisando de forma retrospectiva, acreditamos que tecnicamente talvez fosse mais fácil realizar abertura na região central da MD onde esta está mais distante do endotélio doador, colocar viscoelástico coesivo entre a MD residual e este, então realizar abertura da MD próxima da incisão principal com lâmina ou agulha, talvez com o apoio de segundo instrumento pela incisão auxiliar.
Em suma, apresentamos um caso raro de retenção da MD pós ceratoplastia penetrante, salientando os fatores facilitadores desta complicação e propondo uma nova abordagem cirúrgica quando a remoção da mesma for realizada durante a cirurgia de facoemulsificação.
AGRADECIMENTO
Ao Dr. Eduardo Sone Soriano, pelas valiosas sugestões ao discutir o caso.
REFERÊNCIAS
1. Henderson JW, Wolter JR. Separation of Descemet's membrane in keratoplasty. Am J Ophthalmol. 1968;65(3):375-8.
2. Chen YP, Chai PC, Chen PY, Lin KK, Hsiao CH. Retained Descemet's membrane after penetrating keratoplasty. J Cataract Refract Surg. 2003;29(9):1842-4.
3. Thyagarajan S, Mearza AA, Falcon MG. Inadvertent retention of Descemet membrane in penetrating keratoplasty. Cornea. 2006;25(6):748-9.
4. Lazar M, Loewenstein A, Geyer O. Intentional retention of Descemet's membrane during keratoplasty. Acta Ophthalmol (Copenh). 1991;69(1):111-2.
5. Sinha R, Vajpayee B, Sharma N, Titiyal JS, Tandon R. Trypan blue assisted descemetorhexis for inadvertently retained Descemet's membranes after penetrating keratoplasty. Br J Ophthalmol.. 2003;87(5):654-5.
6. Masket S, Tennen DG. Neodymium:YAG laser optical opening for retained Descemet's membrane after penetrating keratoplasty. J Cataract Refract Surg. 1996;22(1): 139-41. Comment in: J Cataract Refract Surg. 1996;22(6):652.
Endereço para correspondência:
Eduardo Marback
Rua Eduardo José dos Santos, 147
Sala 808 - Salvador (BA)
CEP 41940-455
E-mail: [email protected]
Recebido para publicação em 26.07.2009
Aprovação em 28.02.2010
Trabalho realizado no Instituto de Olhos Freitas, Salvador, Bahia.