Ligia Fernanda Bruni1; Silvana Artioli Schellini1; Elisângela Jaqueta1; Amélia Kamegasawa1; Carlos Roberto Padovani2
DOI: 10.1590/S0004-27492001000300006
RESUMO
Objetivo: Avaliar a efetividade do uso da membrana amniótica para o tratamento do pterígio recidivado. Métodos: Foram operados 24 pacientes (27 olhos) portadores de pterígio recidivado, 7 dos quais com simbléfaro associado usando-se enxerto de membrana amniótica preservada. Foram analisados parâmetros como idade, sexo, olho acometido, localização do pterígio, número de cirurgias anteriores, bem como complicações pós-operatórias e recidiva, em período de seguimento de 6 meses. Resultados: 58,3% dos pacientes eram do sexo masculino e 58,3% encontravam-se na faixa etária de 40 a 59 anos. Todos eram portadores de pterígio recidivado e 48,1% deles já tinham feito pelo menos duas cirurgias anteriores. Os pacientes foram acompanhados por 6 meses. Houve recidiva do pterígio em 18,5 % dos casos e em 11,1%, formação de granuloma. Conclusões: O tratamento do pterígio recidivado com transplante de membrana amniótica é um procedimento relativamente simples, com baixo índice de complicações e que traz bons resultados.
Descritores: Curativos biológicos; Pterígio; Âmnio; Recidiva; Procedimentos cirúrgicos oftalmológicos
ABSTRACT
Purpose: To evaluate the effectiveness of amniotic membrane transplantation for recurrent pterygium treatment. Methods: Amniotic membrane transplantation was performed in 27 eyes with recurrent pterygium, 7 with associated symblepharon. We evaluated age, sex, eye, site, number of previous surgeries and postoperative complications with a follow-up period of 6 months. Results: 58.3% of the patients were male and, 58.3% were between 40 and 59 years old. All of them had recurrent pterygium and 47.8% with at least two previous surgeries. We observed recurrence in 18.5% and 11.1% had granulomatous lesions. Conclusion: Amniotic membrane transplantation is a simple procedure and is a good choice to treat recurrent pterygium. However, this technique does not exclude the possibility to present lesion recurrence.
Keywords: Biological dressing; Pterygium; Amnion; Ophthalmic surgical procedures
INTRODUÇÃO
O uso de membrana amniótica (MA) tem conquistado espaço cada vez maior no tratamento das afecções da superfície ocular, como na síndrome de Stevens-Johnson(1), no penfigóide cicatricial(1), nas queimaduras químicas e térmicas(2-3), em simbléfaro de várias etiologias(4), em úlceras corneanas(5) e no pterígio recidivado(6-7).
A MA atua beneficiando a epitelização, uma vez que facilita a migração e a adesão das células epiteliais basais, previne a apoptose e restaura o fenótipo epitelial(8).
Além disso, é considerada imunologicamente inerte, tornando-se uma atraente opção para enxertos(9).
Shimazaki et al.(6), utilizaram o transplante de MA preservada juntamente com auto-transplante de limbo em pacientes com pterígio recidivado associado a simbléfaro em 4 pacientes e observaram recidiva do pterígio em apenas 1 caso.
O presente trabalho teve por objetivo observar a efetividade do uso da MA preservada para o tratamento de pterígios recidivados.
MÉTODOS
Foi realizado estudo prospectivo em 24 pacientes (27 olhos) portadores de pterígio recidivado, associado ou não a simbléfaro, operados na Faculdade de Medicina de Botucatu- UNESP, nos quais se utilizou MA preservada. Os pacientes foram consultados e consentiram com o procedimento.
Técnica de obtenção e preservação da MA
A MA foi obtida de parto cesárea, de gestantes com exames sorológicos negativos para HIV, Lues, Hepatite B e hematológicos normais e sem patologias sistêmicas associadas. Após a dequitação, foi separada a MA do córion, em ambiente estéril. Em seguida, a membrana foi lavada com soro fisiológico e solução contendo cefalosporina (1 g) e gentamicina (40 mg) e mergulhada por alguns segundos em solução de Dulbecco modificado Eagle (Cultilab-Campinas, SP). Após, a MA foi colocada sobre papel de filtro de nitrocelulose (MILIPORE-S-PAK 41-São Paulo, SP), cortados na forma de discos de 47mm de diâmetro, com a face epitelial voltada para cima. Os discos foram dobrados e introduzidos em frascos contendo o meio Dulbecco modificado Eagle e glicerol (1:1) e conservada a -80º C. Antes da utilização, a MA foi reidratada em soro fisiológico até que sua coloração voltasse a ser como antes da preservação.
Técnica cirúrgica
As cirurgias foram realizadas por 2 dos autores (LFB e EJ). Após antissepsia com clorohexexidina alcóolica, colocação de campos estéreis e blefarostato, foi feita anestesia subconjuntival no local da exerese, com agulha de insulina, usando Xylocaína 2,0% com vasoconstrictor. Procedeu-se a excisão da cabeça do pterígio com lâmina 15 e ressecção da cabeça e corpo com tesoura; quando havia simbléfaro associado, o tecido fibrótico foi ressecado.
A conjuntiva foi retrocedida e fixada na episclera com fio de Vycryl 7-0 (Ethicon), deixando o leito escleral próximo ao limbo livre. A membrana já reidratada foi, colocada sobre o leito cruento, com a face epitelial voltada para cima. A membrana não foi suturada, sendo estabilizada no leito com a colocação de lente de simbléfaro com orifício central. Realizou-se tarsorrafia com fio de seda 6-0.
Após o procedimento os pacientes ficaram com curativo oclusivo por 24 horas e iniciou-se o uso de colírio de dexametasona e cloranfenicol (Dexafenicol® - Allergan/Frumtost Ltda) 4x/dia até o 15º dia de pós-operatório (PO).
A tarsorrafia foi removida no 7º PO e a lente de simbléfaro foi mantida até o 15º PO.
Parâmetros avaliados
Relativos aos pacientes: idade, sexo, olho acometido, localização do pterígio, número de cirurgias anteriores.
Relativas ao procedimento efetuado: complicações pós-operatórias e recidiva. Como critério para classificar recidiva consideramos a presença de tecido fibroblástico conjuntival ultrapassando o limbo e invadindo a córnea, com vascularização local.
O tempo de seguimento foi de 6 meses e os pacientes foram avaliados no 7º, 15º, 30º, 60º, 90º e 180º dias de PO. Os dados foram submetidos a análise estatística descritiva envolvendo a distribuição de freqüência dos dados.
RESULTADOS
Os dados relativos às características dos pacientes operados estão apresentados na tabela 1.
A freqüência das alterações oculares observadas no PO encontra-se na tabela 2.
O procedimento cirúrgico foi realizado com facilidade em todos os casos. Observou-se, sempre nos primeiros dias de PO, a presença de secreção esbranquiçada em quantidade moderada, sem sinais infecciosos.
A membrana estava presente no 7º PO na maioria dos pacientes,estando ausente em dois pacientes por ter sido absorvida e em outros dois, por ter sido removida pelo próprio paciente. Na maior parte dos casos a membrana foi absorvida entre o 15 º e o 30º PO.
Houve formação de granuloma em 3 olhos: um logo no 7º PO e outros dois no 15º. Esta complicação foi solucionada com a exerese cirúrgica dos granulomas.
Não houve recidiva de simbléfaro e houve recidiva do pterígio em 5 olhos (18,5%), sendo que uma ocorreu por volta do 30º PO, duas no 90º e os outras duas ocorreram entre o 90º e o 180º PO.
DISCUSSÃO
A MA foi utilizada em cirurgias oculares pela primeira vez em 1940 por De Rotth(10) no tratamento de simbléfaro e defeitos conjuntivais, sem resultados animadores, talvez pelo fato de ter sido usada a fresco e juntamente com o córion.
Foi visto que o córion é que possui atividade antigênica; no âmnion, a ausência de leucócitos facilita a realização de transplantes, não havendo chance de rejeição, sendo por isso indicada a utilização apenas do âmnion(11).
A partir de 1995, os bons resultados com o uso da MA na forma preservada para o tratamento de úlceras corneanas induzidas em coelhos(5), evidenciaram esse material como boa alternativa para tratamento de patologias da superfície ocular.
Quanto às formas de preservação, o meio mais utilizado atualmente é o meio de Eagle modificado por Dulbecco e glicerol (1:1), estocado a -80ºC. Outras alternativas são a conservação com manutenção da membrana em glicerina à temperatura de 5ºC(13), ou ainda, a simples conservação à -80ºC para uso em período de 2 semanas(1).
O uso da MA no tratamento do pterígio recidivado foi explorado poucas vezes, mas os resultados relatados são animadores(6).
Todos os pacientes do presente estudo eram portadores de pterígio recidivado e aproximadamente 50,0% deles já haviam sido submetidos a 2 ou mais cirurgias. O prognóstico quando se opera pterígio recidivado é pior. No entanto, com o uso da MA observamos poucas complicações.
Com outros tratamentos adjuvantes também podem ocorrer problemas. O uso de betaterapia em pterígio recidivado pode levar a afinamento corneano, simbléfaro, catarata e ulceração corneana(12-13). A mitomicina C, também usada para diminuir recidivas, pode levar a "melting" corneano(14).
Com a MA, em todos os casos foi observada a presença de secreção esbranquiçada abundante até o 7º PO. Acreditamos que essa secreção não esteja relacionada à infecção local, uma vez que a MA possui evidente ação antimicrobiana, além de ação anti-inflamatória(15).
Com relação à reabsorção do material transplantado, percebemos que se trata de um processo rápido, tendo ocorrido, em todos os casos onde não houve perda do enxerto (25 olhos), até o 30º PO. Em coelhos com úlcera corneana experimental, tratada com transplante de MA, a reabsorção mostrou-se mais rápida do que em humanos, já que não foi identificada membrana nos cortes histopatológicos da córnea no 7º PO(16).
A MA muitas vezes não se incorpora ao leito cruento mas sim, sofre dissolução, ocorrendo epitelização conjuntival subjacente, conforme já observado(17).
Em nosso estudo observamos a formação de granuloma no local operado em 11,1% dos casos (3 olhos). Na literatura não há referências quanto a presença de granuloma e o uso de membrana amniótica e acreditamos que possam ter ocorrido devido ao fio de sutura utilizado para fixar a conjuntiva.
O índice de recidiva observado neste estudo foi de 18,5% (5 casos). Os índices de recidiva do pterígio citados na literatura são extremamente variáveis e dependem de diversos fatores dentre eles: amostra estudada, localização geográfica, tipo de atividade profissional do paciente, se a lesão é primária ou recidivada, tempo de seguimento, técnica cirúrgica empregada, uso de tratamentos coadjuvantes e mesmo a definição do que seria a recidiva. Todos estes fatores tornam muito difícil a comparação entre os estudos. Mesmo assim, pode-se dizer que os índices de recorrência com a técnica da esclera nua variam de 24 a 89%. Com a aplicação de mitomicina haveria diminuição do número de recidivas de 0 a 38% e usando transplante de conjuntiva, as recidivas estariam entre 2 a 39%(18).
Utilizando-se a MA, Shimazaki et al.(6) tiveram 25,0% de recidiva, embora tenham estudado apenas 4 olhos operados.
Um fato curioso foi a ausência de recidiva nos dois casos em que houve a perda do enxerto de MA, uma vez que é conhecido que quando se utiliza técnica de rotação de retalhos, o índice de recorrência é maior se há retração do "flap"(19).
Comparando-se o transplante de MA com o auto-transplante de conjuntiva, outra técnica para tratamento do pterígio recidivado, percebemos que tecnicamente o transplante de MA é mais fácil de ser executado, com possibilidade de recorrência inferior ao observado com o transplante de conjuntiva(20).
CONCLUSÃO
Apesar das complicações observadas e da possibilidade de nova recidiva da lesão, nossos resultados nos autorizam afirmar que o uso da MA no tratamento do pterígio recidivado é uma terapia efetiva e promissora, sendo uma boa alternativa nos casos onde o transplante conjuntival estaria contra-indicado, por exemplo em portadores de pterígio bilateral, em patologias conjuntivais sinequiantes e nos pacientes que futuramente necessitarão de cirurgia filtrante para tratamento do glaucoma.
REFERÊNCIAS
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Trabalho realizado na Faculdade de Medicina de Botucatu, apresentado como Poster no Congresso Brasileiro de Prevenção de Cegueira - 2000.
1 Residente da Disciplina de Oftalmologia do Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Faculdade de Medicina de Botucatu - Universidade Estadual Paulista.
2 Professor Livre-docente do Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço - Disciplina de Oftalmologia da Faculdade de Medicina de Botucatu - Universidade Estadual Paulista.
3 Ex-Residente da Disciplina de Oftalmologia do Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Faculdade de Medicina de Botucatu - Universidade Estadual Paulista.
4 Professor Assistente Doutor do Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço - Disciplina de Oftalmologia da Faculdade de Medicina de Botucatu - Universidade Estadual Paulista.
5 Professor Titular do Departamento de Bioestatística - Instituto de Biociências - Universidade Estadual Paulista - Botucatu.
Endereço para correspondência: Silvana Artioli Schellini - DEP. OFT/ORL/CCP - Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP - Botucatu (SP) CEP 18618-000. E-mail: [email protected]
Nota Editorial: Pela análise deste trabalho e por sua anuência sobre a divulgação desta nota, agradecemos ao Dr. Hamilton Moreira.