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Editorial

Dupla fosseta unilateral de disco óptico: relato de caso

Unilateral double optic disc pit: case report

Nikias Alves da Silva1; Maria Fernanda de Sousa Lima Bedran2; Felício Aristóteles da Silva3; Guilherme Mourão Soares da Rocha3

DOI: 10.1590/S0004-27492010000500014

RESUMO

O presente caso refere-se a um paciente do sexo masculino, 72 anos de idade com quadro de baixa acuidade visual no olho esquerdo de longa data, e em uso de maleato de timolol 0,5% em ambos os olhos devido a uma suspeita de glaucoma. Observou-se à oftalmoscopia uma dupla fosseta de disco óptico no olho esquerdo. O colírio hipotensor foi suspenso e a pressão intraocular continuou normal em ambos os olhos. O paciente foi então submetido a uma tomografia de coerência óptica, que se mostrou compatível com o quadro apresentado.

Descritores: Oftalmoscopia; Disco óptico; Glaucoma; Tomografia de coerência óptica; Relatos de casos

ABSTRACT

The patient was a 72-year-old male with a 1 year history of low visual acuity in the left eye. He was in use of 0.5% timolol maleate in both eyes due to glaucoma suspicion. Ophthalmoscopic examination of the left eye revealed a double optic disc pit. The hypotensive agent was discontinued and the intraocular pressure remained in the normal range in both eyes. The patient was submitted to an optical coherence tomography, which was correlated with the presented case.

Keywords: Ophthalmoscopy; Optic disc; Glaucoma; Tomography, optical coherence; Case reports


 

 

INTRODUÇÃO

A fosseta de disco óptico é uma anomalia congênita rara descrita pela primeira vez em 1882 por Wiethe(1). Tal anomalia foi atribuída a um fechamento imperfeito da fissura embrionária(2). Embora congênita em sua grande maioria, a mesma também pode ser adquirida(3-5). Dentre as complicações associadas à fosseta do disco óptico encontra-se o descolamento seroso macular(6), cuja patogênese ainda é desconhecida, apesar de que alterações vítreas são postuladas como as grandes responsáveis pelo mesmo(7). Alterações de campo visual também foram correlacionadas às fossetas do disco óptico, inclusive escotomas arqueados e paracentrais(3-4). Observa-se ainda uma maior prevalência da fosseta do disco óptico em portadores de neuropatia óptica glaucomatosa(3).

O presente caso trata de uma fosseta dupla unilateral do disco óptico, ocorrência esta muito rara na literatura mundial.

 

APRESENTAÇÃO DO CASO

Trata-se de um paciente do sexo masculino, 72 anos de idade, natural e residente em Belo Horizonte, com uma história de baixa acuidade visual no olho esquerdo de longa data. Negava comorbidades, e relatava ter uma irmã com glaucoma. Encontrava-se em acompanhamento na unidade de catarata e glaucoma da Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte há cerca de 1 ano, onde fora prescrito maleato de timolol 0,5% em ambos os olhos, colírio este que o paciente vinha instilando até a presente avaliação. Sua melhor acuidade visual era 20/30 no olho direito (OD) com +2,00~ -0,75x65º, e 20/50 no olho esquerdo (OE) com +0,25~ -0,75x75º. À biomicroscopia, observava-se leve opacificação cristaliniana e câmara anterior profunda em ambos os olhos . A pressão intraocular (PIO) era 11 mmHg no OD e 12 mmHg no OE às 14 horas com maleato de timolol 0,5% nos dois olhos, e a espessura corneana central média ultrassônica 523 µ e 526 µ, respectivamente, no OD e OE. À oftalmoscopia, os discos ópticos eram bem corados e a camada de fibras nervosas da retina exibia estriação normal. As escavações papilares eram ao redor de 0,5 V x 0,5 H no OD, com discreto estreitamento da rima neural superior, e 0,6 V x 0,5 H no OE com uma fosseta nasal e outra temporal, esta maior e mais profunda que a primeira (Figura 1-A). No polo posterior do OE havia ainda uma atrofia do epitélio pigmentar, inclusive na região macular, achados estes confirmados na angiofluoresceinografia. Na campimetria computadorizada, realizada com o Octopus 1-2-3 (estratégia TOP/Normal, 30-2), observou-se no olho esquerdo alguns escotomas relativos paracentrais temporais e outros absolutos mais periféricos, inclusive conectados à mancha cega (Figura 1-B). No olho direito, este exame encontrava-se dentro da normalidade.

O colírio hipotensor (maleato de timolol 0,5%) foi então suspenso em ambos os olhos, e o paciente submetido a uma tomografia de coerência óptica (Stratus OCT 3), que demonstrou um leve aumento da espessura da camada de fibras nervosas no setor de 3 h no olho esquerdo, e diâmetro horizontal aumentado do disco óptico deste mesmo olho (2,01 mm) em relação ao OD (1,5 mm) (Figura 2). A PIO era de 10 mmHg nos dois olhos sem medicação.

 

 

DISCUSSÃO

A fosseta de disco óptico foi descrita como uma anomalia congênita rara e de patogenia parcialmente conhecida, possivelmente secundária a defeitos no fechamento da fissura fetal(2). Mais recentemente alguns estudos demonstraram que, embora em sua grande maioria as fossetas de disco óptico sejam congênitas, nem sempre isso ocorre. Fossetas adquiridas foram descritas em indivíduos glaucomatosos(3-5). Alguns autores demonstraram uma maior prevalência da fosseta de disco óptico em portadores de glaucoma(3), mormente no glaucoma de pressão normal(5). Healey(3) avaliou a prevalência da fosseta de disco óptico e sua correlação com o glaucoma numa população de 3.654 indivíduos por um período de 48 anos, e observou uma prevalência maior que a esperada tanto na população geral (0,19%), quanto nos portadores de glaucoma primário de ângulo aberto (2,8%). Neste mesmo estudo, 9 olhos apresentaram fosseta de disco óptico: 4 centrais, 4 no polo inferior e 1 temporal, de maneira que dos 4 olhos com fosseta no polo inferior, 3 eram portadores de glaucoma primário de ângulo aberto, enquanto naqueles com fosseta central apenas 1 apresentava a doença. Diferenças estruturais na arquitetura da lâmina crivosa nos polos superior e inferior do disco óptico poderiam explicar uma maior susceptibilidade de tais regiões aos efeitos da pressão intraocular, e consequentemente a preferência por estas localizações pelas fossetas adquiridas(8).

Dentre as complicações associadas à fosseta de disco óptico, a principal delas é o descolamento seroso macular da retina, presente em aproximadamente 25% a 75% dos casos(6). A patogênese do descolamento seroso macular ainda é desconhecida. Embora as alterações vítreas sejam consideradas como as grandes responsáveis pelo mesmo, outras teorias foram postuladas, como por exemplo alterações vasculares(6-7). No presente caso, a retina do polo posterior do OE mostrava uma atrofia do epitélio pigmentar na região macular, possivelmente sequela de um descolamento seroso. Alterações campimétricas também podem estar correlacionadas às fossetas de disco óptico, como escotomas arqueados e paracentrais, que não tendem a progredir nos exames subsequentes(3-4). Exames de imagem, como a tomografia de coerência óptica, têm sido utilizados, não só no diagnóstico, como também no acompanhamento do descolamento seroso macular(9). Além de alterações retinianas, é possível observar na tomografia de coerência óptica algumas alterações estruturais no nervo óptico compatíveis com fosseta. Dentre estas alterações, pode-se observar um aumento no tamanho do disco óptico, seja no sentido horizontal ou vertical, o que depende da localização da fosseta, e diminuição da espessura da camada de fibras nervosas no local correspondente à fosseta(10).

No presente caso o paciente foi inicialmente diagnosticado como glaucomatoso, e prescrito maleato de timolol 0,5% em ambos os olhos, colírio este que o paciente usou até a presente consulta. Possivelmente o aspecto do nervo óptico à oftalmoscopia associado às alterações observadas no campo visual computadorizado, embora não caracterizando um defeito tipicamente glaucomatoso, induziram o colega ao diagnóstico de glaucoma. No segundo exame (consulta atual) após o diagnóstico de dupla fosseta de disco óptico no OE, e realização da tomografia de coerência óptica, chegou-se à conclusão que não se tratava de glaucoma, e o colírio hipotensor foi, então, suspenso. É importante salientar que a localização das fossetas também foi um fator contribuinte para suspeitar que as mesmas seriam congênitas e não adquiridas, já que estas últimas ocorrem principalmente nos polos superior e inferior(3-4). Krivoy(9) descreveu caso semelhante em uma paciente de 63 anos com história de glaucoma em ambos os olhos há cerca de 20 anos tratado com pilocarpina. A PIO era 18 mmHg em ambos os olhos. A mesma apresentava dupla fosseta bilateral de disco óptico, sendo uma ínfero-nasal e outra temporal. Observou-se ainda uma atrofia do epitélio pigmentar na região macular, principalmente no OD, possivelmente sequela de um descolamento seroso. A campimetria computadorizada mostrou um defeito arqueado superior no OD, e um degrau nasal no OE. A tomografia de coerência óptica (protótipo) demonstrou uma escavação profunda e ampla correspondente à dupla fosseta.

Este caso ilustra a dificuldade em se fazer o diagnóstico diferencial entre fossetas adquiridas e congênitas. Deve-se lembrar que as fossetas adquiridas têm preferência pelos polos do disco óptico, enquanto as congênitas são geralmente temporais, e frequentemente acompanhadas por um descolamento seroso macular. O reconhecimento desta alteração é fundamental para que a mesma não seja equivocadamente associada a uma neuropatia óptica glaucomatosa, como ocorreu neste caso.

 

REFERÊNCIAS

1. Wiethe T. [Ein fall von angeborener]. Difformitat der Sehnervenpapille. Arch Augenh. 1882;11:14-9. German.         

2. Sugar HS. Congenital pits of the optic disc and their equivalents (congenital colobomas and colobomalike excavations) associated with submacular fluid. Am J Opththalmol. 1967;63(2):298-307.         

3. Healey PR, Mitchell P. The prevalence of optic disc pits and their relationship to glaucoma. J Glaucoma. 2008;17(1):11-4. Comment in: J Glaucoma. 2008;17(8):702.         

4. Cashwell LF, Ford JG. Central visual field changes associated with acquired pits of the optic nerve. Ophthalmology. 1995;102(9):1270-8.         

5. Javitt JC, Spaeth GL, Katz LJ, Poryzees E, Addiego R. Acquired pits of the optic nerve. Increased prevalence in patients with low-tension glaucoma. Ophthalmology. 1990;97(8):1038-43; discussion 1043-4.         

6. Brown GC, Shields JA, Goldberg RE. Congenital pits of the optic nerve head. II. Clinical studies in humans. Ophthalmology. 1980;87(1):51-65.         

7. Sugar HS. An explanation for the acquired macular pathology associated with congenital pits of the optic disc. Am J Ophthalmol. 1964;57:833-5.         

8. Quigley HA, Addicks EM. Regional differences in the structure of the lamina cribrosa and their relation to glaucomatous optic nerve damage. Arch Ophthalmol. 1981; 99(1):137-43.         

9. Krivoy D, Gentile R, Liebman JM, Stegman Z, Rosen R, Walsh JB, Ritch R. Imaging congenital optic disc pits and associated maculopathy using optical coherence tomography. Arch Ophthalmol. 1996;114(2):165-70. Erratum in: Arch Ophthalmol. 1996;114(7):840.         

10. Meyer CH, Rodrigues EB, Schmidt JC. Congenital optic nerve head pit associated with reduced retinal nerve fibre thickness at the papillomacular bundle. Br J Ophthalmol. 2003;87(10):1300-1.         

 

 

Endereço para correspondência:
Nikias Alves da Silva
Rua Júlio Vidal, 11- Apto 1.201
Belo Horizonte (MG) - CEP 30310-440
E-mail: [email protected]

Recebido para publicação em 29.06.2009
Última versão recebida em 12.01.2010
Aprovação em 30.01.2010

 

 

Trabalho realizado na Clínica de Olhos da Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte - Belo Horizonte (MG), Brasil.


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