Open Access Peer-Reviewed
Editorial

Avaliação da qualidade de vida relacionada à visão em crianças com catarata congênita bilateral

Assessing vision-related quality of life in children with bilateral congenital cataracts

Marcia Caires Bestilleiro Lopes1; Solange Rios Salomão2; Adriana Berezovsky3; Marcia Beatriz Tartarella4

DOI: 10.1590/S0004-27492009000400008

RESUMO

OBJETIVO: Avaliar a qualidade de vida relacionada à visão em crianças com catarata congênita bilateral, utilizando o Questionário de Função Visual Infantil (QFVI). MÉTODOS: O QFVI possui duas diferentes apresentações: crianças menores e maiores de 3 anos, sendo dividido em seis domínios: saúde geral, saúde geral da visão, competência, personalidade, impacto familiar e tratamento. O QFVI foi aplicado aos pais/cuidadores/responsáveis de crianças com catarata congênita bilateral do Instituto da Visão da Universidade Federal de São Paulo. As notas encontradas nos domínios foram comparadas entre os grupos controle - crianças com visão normal (n=32, média da idade=38 meses; dp=17,3) e experimental - crianças com catarata congênita (menores de 3 anos, n=19, idade média=14,6 meses; dp=10,7 e maiores de 3 anos, n=18, idade média=4,4 anos; dp=1,5, alocados segundo o grau de comprometimento visual em n=16 - sem deficiência visual; n=10 - deficiência visual leve; n=11 - deficiência visual grave). Para a análise estatística foram utilizados os testes t e análise de variância (ANOVA). RESULTADOS: O grupo experimental apresentou redução estatisticamente significativa em todos os domínios do questionário, quando comparado ao grupo controle. O domínio competência apresentou-se com baixa nota havendo redução estatisticamente significante de acordo com a gravidade da deficiência visual (ANOVA F 5,1, p=0,01; teste de Tukey p<0,01), assim como a nota composta total (ANOVA F 5,4, p=0,01; teste de Tukey p=0,01/0,05). CONCLUSÃO: A catarata congênita bilateral influencia na qualidade de vida relacionada à visão em crianças, confirmada pelos baixos valores obtidos nos domínios estudados, mais evidentemente no domínio competência. O QFVI mostrou-se um importante instrumento para avaliar e mensurar o impacto do comprometimento visual causado pela catarata congênita bilateral na qualidade de vida.

Descritores: Qualidade de vida; Catarata; Questionários; Visão; Baixa visão; Criança; Cuidadores

ABSTRACT

PURPOSE: To assess vision-related quality of life in children with bilateral congenital cataracts, using the recently developed Children's Visual Function Questionnaire (CVFQ). METHODS: CVFQ has two presentations, one for children under 3 years of age and the other for older children, and is divided in six subscales - general health; general vision; competence; personality; family impact and treatment. From those, a composite score can also be calculated. The CVFQ was applied in the hospital setting to parents or other caretakers by personal interview. The subscale scores were compared for control group (n=32 - normal vision) versus congenital cataract group (n=16 no visual impairment, n=10 - mild visual impairment and n=11 - severe visual impairment). For analysis, t-tests and analysis of variance (ANOVA) were performed. RESULTS: All quality of life subscales presented low scores for children with bilateral congenital cataracts. Congenital bilateral cataract scores were lower than those of the control group for all subscales. Competence subscale in the experimental group was significantly lower in the comparison with visual impairment severity (F=5.1, p=0.01; Tukey test p<0.01) as well as the composite score (F=5.4, p=0.01; Tukey test p=0.01/0.05). CONCLUSIONS: Bilateral congenital cataracts influence vision-related quality of life of children as confirmed by low scores in all subscales assessed by the CVFQ with emphasis on the competence subscale. This instrument should be incorporated in the clinical assessment of children with bilateral cataracts as a measure of the impact of visual impairment in their quality of life.

Keywords: Quality of life; Cataract; Questionnaires; Vision; Low vision; Child; Caregivers


 

 

INTRODUÇÃO

A qualidade da visão é parte integral da qualidade de vida de todos os indivíduos(1). A visão é um dos mais importantes sentidos no desenvolvimento normal da criança(2). O comprometimento dessa via pode causar dificuldades nas habilidades de vida diária, no desenvolvimento neuropsicomotor normal e na relação familiar(3-9). A catarata congênita bilateral é uma causa frequente de cegueira na infância, responsável por cerca de 10 a 30% dos casos, variando entre diferentes regiões do mundo(8,10).

Os instrumentos para a avaliação da qualidade de vida relacionada à visão em pacientes adultos são amplamente utilizados para pesquisas em oftalmologia. No entanto, no grupo infantil, seu uso é limitado, pois envolve processos e etapas do crescimento que dependem do desenvolvimento normal da criança(11). Para isto, foi desenvolvido o Questionário de Função Visual Infantil(2) (QFVI). Sua versão no idioma português foi validada durante o estudo original, quando foi traduzido para o português-brasileiro, adaptado para a realidade cultural e econômica, retraduzido para o inglês americano por profissional especializado (tradutor juramentado) e comparado com a versão original em inglês com grande similaridade e finalmente aplicado em crianças de visão normal.

O QFVI apresenta-se em duas versões de acordo com a faixa etária, contendo 35 questões para menores de 3 anos (QFVI - 3) e 40 questões para maiores de 3 anos (QFVI - 7), abordando diversos aspectos sobre a qualidade da função visual infantil, sendo dividido em seis domínios: Saúde Geral; Saúde Geral da Visão; Competência; Personalidade; Impacto familiar e Tratamento (Anexos 1 e 2).

O presente estudo tem como objetivo avaliar a qualidade de vida relacionada à visão pela aplicação do QFVI - 3 e QFVI - 7.

 

MÉTODOS

Este estudo prospectivo observacional transversal foi realizado no período de fevereiro de 2006 a março de 2007, no Departamento de Oftalmologia da UNIFESP. O estudo seguiu os princípios da Declaração de Helsinque e foi analisado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo/Hospital São Paulo, sob o número 1.641/04 em 13 de abril de 2005.

Foram convidados a participar deste estudo pais/responsáveis/cuidadores de 69 crianças alocados em dois grupos: experimental e controle. O grupo experimental teve o seguinte critério de inclusão: diagnóstico de catarata congênita bilateral com ou sem tratamento prévio (cirurgia, óculos, oclusão), com idade inferior a 7 anos, estas eram subdivididas em menores de 3 anos e crianças de 3 a 7 anos, além de ausência de alterações neurológicas ou outras patologias associadas. O grupo controle tem os seguintes critérios de inclusão: idade até 7 anos, boa saúde geral, exame oftalmológico normal, ausência de queixas visuais e ausência de alterações neurológicas ou outras patologias associadas. A composição e característica de cada grupo encontram-se descrita na tabela 1.

 

 

As crianças do grupo experimental foram subdivididas de acordo com a gravidade da deficiência visual. O limite de normalidade da acuidade visual variou de acordo com a idade. Para classificar a acuidade visual e também sua variação, todas as medidas foram convertidas em uma classificação única (logMAR), com a escala variando de sem deficiência visual à deficiência visual grave. A visão foi considerada normal quando constatada a visão adequada e esperada para a idade cronológica da criança, de acordo com o método empregado para medida da AV - cartões de acuidade de Teller ou potencial visual evocado de varredura(12), como, deficiência visual leve para redução de até 0.1 logMAR da visão normal para a idade, até a perda visual leve, para visão que variasse de 0.2 a 0.3 logMAR, abaixo do limite de tolerância normal para a idade. A deficiência visual moderada, para redução de 0.4 a 0.9 logMAR, abaixo do limite de tolerância normal para a idade e deficiência visual grave para redução de 1.0 logMAR, do limite de tolerância normal para a idade(11). A composição e característica de cada grupo encontram-se descrita na tabela 2, sendo leve, os pacientes com deficiência visual limite e leve e o grupo denominado grave as crianças com comprometimento moderado e grave.

 

 

O QFVI foi aplicado e respondido por pais/responsáveis/cuidadores, que convivessem e cuidassem das crianças (Tabela 3). A administração do questionário foi feita sempre pelo mesmo entrevistador (MCBL), com perguntas realizadas individualmente, seguindo a sequência do mesmo.

 

 

Na análise do QFVI, nota igual a 100 (cem) indica "melhor", 0 (zero) indica "pior" qualidade de vida. A nota de cada domínio foi então definida como a média das notas dos itens que pertencem a ela. Itens classificados como "não se aplica", assim como itens não respondidos, são simplesmente omitidos da média. Detalhes de como realizar a pontuação para cada subescala e a pontuação total, chamada de nota composta total, são descritos nos quadros 1A e B (http://www.retinafoundation.org).

 

 

 

 

Para a análise estatística, a comparação entre os grupos maiores e menores de três anos foi utilizada o teste t-Student não pareado, já a análise entre os três grupos de deficiência visual, foi utilizada a análise de variância (ANOVA), sendo o valor de significância estabelecido como p<0,05.

 

RESULTADOS

A nota composta total da qualidade de vida relacionada à visão medida pelo QFVI mostrou-se reduzida no grupo experimental, quando comparado ao grupo controle. Todos os domínios foram estatisticamente reduzidos no grupo experimental, quando comparado ao grupo controle (p<0,05 - Figura 1), sendo os domínios de maior comprometimento o impacto da família e competência.

 

 

Na comparação dos grupos de deficiência visual, os domínios com as notas estatisticamente reduzidas foram, competência (F=5,1, p=0,01) e nota composta total (F=5,3, p=0,01).

Quando comparados entre si, o grupo de deficiência visual grave apresentou redução estatisticamente significativa quando comparado ao grupo sem deficiência visual, no domínio competência (p=0,01) e nota composta total (p=0,01) - (Figura 2).

 

 

DISCUSSÃO

As crianças com catarata congênita bilateral em ambas as faixas etárias, menores e maiores de 3 anos, apresentaram déficit em sua qualidade de vida geral relacionada à visão, sendo a maior perda encontrada no domínio de impacto da família perante a deficiência, seguida pela competência na realização das atividades. Nos grupos alocados segundo a gravidade da deficiência visual, o que apresentou a pior nota, por obter baixa nota composta total e, portanto o maior comprometimento da qualidade de vida relacionada à visão foi o grupo composto por crianças com deficiência visual grave.

As crianças do grupo controle apresentaram todas as notas dos domínios acima de 90, com baixo desvio padrão, mostrando a validade do QFVI.

Pesquisa realizada em crianças com catarata congênita bilateral em instituição americana, mostrou ausência na diferença entre grupos etários, menor e maior de 3 anos, o que se confirmou no presente estudo(13). No mesmo levantamento, no entanto, em crianças com retinopatia da prematuridade, a pior nota quanto à qualidade de vida foi observada nas crianças com maior gravidade do comprometimento visual.

Dados semelhantes aos encontrados nesta pesquisa foram descritos em estudo realizado na Alemanha, onde, levantadas informações entre o desempenho de crianças com ambliopia, em tratamento com oclusão e uso de lentes de contato em afácicos, a nota composta total dos grupos (amblíope e afácicos) apresentaram baixa nota na qualidade de vida e estatisticamente inferior se comparados às crianças de visão normal(14). Quanto às subescalas, as diferenças estatisticamente significativas foram observadas em competência e impacto familiar, isso se comparado ao grupo controle(14).

Em contrapartida, no presente estudo, as diferenças estatisticamente significativas foram observadas em todas as subescalas. Cabe ressaltar que ao se comparar os grupos segundo a gravidade do comprometimento visual, o grupo de crianças com perda visual grave se mostrou com baixa nota na subescala competência.

O QFVI é um importante instrumento válido para mensurar o impacto da deficiência visual em crianças e em seus familiares, mostrando que a qualidade de vida relacionada à visão está reduzida em crianças com catarata congênita bilateral e pode direcionar tratamentos e condutas terapêuticas e de reabilitação.

 

CONCLUSÃO

A qualidade de vida relacionada à visão em crianças com catarata congênita bilateral, avaliada pelo QFVI mostraram que: os grupos de crianças com catarata congênita bilateral, menores e maiores de 3 anos, apresentaram maior comprometimento nos domínios de impacto familiar, seguido por competência; o grupo de crianças com catarata congênita bilateral, maiores de 3 anos, apresentou maior comprometimento nos domínios de impacto familiar, seguido por competência; em crianças com catarata congênita bilateral e deficiência visual grave e com catarata congênita bilateral sem deficiência visual, o domínio tratamento foi o de valor mais baixo; nas crianças com catarata congênita bilateral com deficiência visual leve, o domínio impacto familiar foi o de valor mais baixo; na comparação das crianças com catarata congênita bilateral com o grupo controle, a competência foi o domínio estatisticamente com o menor valor.

 

AGRADECIMENTOS

Bolsa CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior do Ministério da Educação - Governo Federal.

 

REFERÊNCIAS

1. Stelmack J. Quality of life of low-vision patients and outcomes of low-vision rehabilitation. Optom Vis Sci. 2001;78(5):335-42.         

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3. Graziano RM, Leone CR. Problemas oftalmológicos mais frequentes e desenvolvimento visual do pré-termo extremo. J Pediatr (Rio J). 2005;81(1 Supl): S95-100.         

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5. Cruz CB, Endriss D, Ventura B, Ventura L. Catarata na infância: perfil socioeconômico, gestacional e desenvolvimento neuropsicomotor. Arq Bras Oftalmol. 2005;68(1):9-13.         

6. Preisler G. Social and emotional development of blind children: a longitudinal study. In: Lewis V, Collins GM, organizers. Blindness and psychological development in young children. Londres: The British Psychological Society; 1997. p.69-85.         

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10. Muhit MA. Childhood cataract: home to hospital. Community Eye Health. 2004;17(50):19-22.         

11. Felius J, Stager DR Sr, Berry PM, Fawcett SL, Stager DR Jr, Salomão SR, et al. Development of an instrument to assess vision-related quality of life in young children. Am J Ophthalmol. 2004;138(3):362-72.         

12. Salomão SR, Ventura DF. Large sample population age norms for visual acuities obtained with Vistech-Teller Acuity Cards. Invest Ophthalmol Vis Sci. 1995;36(3):657-70.         

13. Birch EE, Cheng CS, Felius J. Validity and reliability of the Children's Visual Function Questionnaire (CVFQ). J AAPOS. 2007;11(5):473-9.         

14. Pieh C, Fronius M, Chopovska Y, Pepler L, Klein M, Lüchtenberg M, et al. ["Fragebogen zum Kindlichen Sehvermögen (FKS)": Assessment of quality of life with the German version of the Children's Visual Function Questionnaire]. Ophthalmologe. 2008 Aug 2. [Epub ahead of print]. German.         

 

 

Endereço para correspondência:
Marcia Caires Bestilleiro Lopes
Avenida Paulista, 2.001 - Cj. 1.001
São Paulo (SP) CEP 01311-931
E-mail: [email protected]

Recebido para publicação em 11.09.2008
Última versão recebida em 04.05.2009
Aprovação em 20.05.2009
Bolsa CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior do Ministério da Educação - Governo Federal / (33009015024P-0 Medicina/Oftalmologia - UNIFESP), 2006.

 

 

Trabalho realizado no Departamento de Oftalmologia da Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP - São Paulo (SP) - Brasil - Instituto da Catarata Congênita.
Nota Editorial: Depois de concluída a análise do artigo sob sigilo editorial e com a anuência do Dr. Mauro Waiswol sobre a divulgação de seu nome como revisor, agradecemos sua participação neste processo.

 

 


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