Open Access Peer-Reviewed
Editorial

Ceratite Herpética

Herpetic keratitis

Denise de Freitas; Lênio Alvarenga; Ana Luísa H. de Lima

DOI: 10.1590/S0004-27492001000100016

INTRODUÇÃO

A família dos herpesvírus inclui os vírus herpes simples (HSV), o vírus varicela zoster (VZV), o citomegalovírus (CMV), o vírus Epstein-Barr (EBV) e os herpesvírus humano 6, 7 e 8. O HSV divide-se em tipo I (causa predominantemente infecção acima da cintura e é transmitido por perdigotos e pelo contato direto - pe. herpes labial) e em tipo II (causa predominantemente infecção abaixo da cintura e é uma doença sexualmente transmitida - pe. herpes genital). O HSV causa uma infecção primária que é, na grande maioria das vezes, assintomática e autolimitada. O vírus dirige-se, então, aos gânglios sensoriais (gânglio trigeminal em relação ao olho) ficando latente. Fatores desencadeantes (infecções febris, sol, trauma etc) por meio de mecanismos fisiopatológicos ainda não bem elucidados, reativam o vírus latente no gânglio que migra, através dos nervos, para os tecidos periféricos (pele, córnea, íris etc) caracterizando a infecção recorrente.

O HSV é um importante agente etiológico das doenças externas oculares dentre estas a ceratite herpética. A doença corneana decorrente da infecção pelo HSV tem múltiplas manifestações, primária e recorrente, infecciosa e imunológica, que requerem tratamentos específicos e diferentes entre si colocando, freqüentemente, o oftalmologista frente a uma doença de difícil diagnóstico e tratamento. O pronto reconhecimento clínico de cada manifestação clínica e o início imediato do tratamento apropriado podem diminuir, em muito, a morbidade da doença. Quando não bem conduzida, a ceratite herpética pode levar a perda da visão devido ao desenvolvimento de opacidade de córnea severa e, em alguns casos mais graves, colocar em risco o olho como um todo quando a infecção e ou inflamação levam a perfuração corneana por necrose do tecido.

 

CLASSIFICAÇÃO DA CERATITE HERPÉTICA

Existem atualmente na literatura muitas classificações da ceratite herpética fato este que acaba dificultando para nós oftalmologistas diagnosticar e tratar a doença. Uma nova classificação da ceratite pelo HSV foi recentemente proposta por Holland & Schwartz. Esses autores também montaram uma tabela bastante interessante mostrando as variações nas denominações das diferentes manifestações da doença herpética ocular (Tabela 1).

A nova classificação proposta por Holland & Schwartz é baseada na anatomia e fisiopatogenia das várias formas de apresentação da ceratite herpética. Consideram quatro categorias maiores de ceratite herpética:

1. Ceratite epitelial infecciosa: observação no epitélio corneano de vesículas, úlceras dendríticas, úlceras geográficas e úlceras marginais. Todas estas manifestações clínicas são decorrentes da replicação viral ativa no epitélio corneano;

2. Ceratopatia neurotrófica: inclui a erosão epitelial ponteada e a úlcera neurotrófica. Ocorre devido à má inervação corneana entre outros fatores como comprometimento do filme lacrimal, toxicidade medicamentosa, alteração e inflamação da membrana basal etc. Na ceratopatia neurotrófica primária (ou isolada) não há infecção epitelial ativa ou reação imunológica associadas;

3. Ceratite estromal: que é dividida em:

3.1. ceratite estromal necrosante: primariamente um processo infeccioso (invasão do estroma por infecção viral ativa) com conseqüente desencadeamento de inflamação estromal severa;

3.2. ceratite estromal imune: primariamente um processo imunológico (reação inflamatória imune no estroma corneano contra o vírus retido ou contra alterações do estroma do hospedeiro reconhecidas como antígenos). Pode haver um possível papel para a replicação viral ativa no processo imunológico da ceratite. A chamada ceratite disciforme herpética, considerada por muitos autores como uma inflamação estromal, é classificada por Holland & Schwartz como uma endotelite que será melhor abordada no próximo item;

4. Endotelite: é considerada uma reação inflamatória primária no endotélio corneano, sendo que um componente infeccioso de replicação viral ativa pode estar implicado na fisiopatogenia da inflamação. Como dito anteriormente, a até então chamada ceratite disciforme é, na verdade, considerada pelos autores como uma inflamação endotelial que leva a descompensação da célula com conseqüente edema do estroma. A justificativa para esta conclusão seriam os achados de precipitados ceráticos na área do edema e ausência de inflamação ou infiltração estromal. Ainda, estes olhos são calmos, sem qualquer sinal inflamatório (hiperemia, lacrimejamento etc) e a córnea freqüentemente não desenvolve neovascularização.

 

O "HERPETIC EYE DISEASE STUDY (HEDS)"

Em 1990 foi lançado um estudo multicêntrico nos EUA, "Herpetic Eye Disease Study (HEDS)", com o objetivo de avaliar os diferentes aspectos clínicos e de tratamento da ceratite herpética. Várias conclusões foram tiradas dos sete estudos publicados pelo HEDS, conclusões estas que contribuíram, e em muito, para a condução da doença herpética ocular com uma série de novas sugestões e opções em relação ao tratamento e de como conduzir a longo prazo os casos de ceratite herpética.

Em um primeiro estudo foi avaliada a eficácia do uso tópico de corticosteróides no tratamento da ceratite estromal herpética. O estudo encontrou que comparado ao placebo, o corticosteróide reduziu o risco de ceratouveíte herpética persistente ou progressiva em 68%. O tempo de resolução da ceratite estromal e da uveíte foi significativamente menor no grupo que usou esteróides em comparação ao placebo. Concluíram que o uso tópico de corticosteróides no tratamento da ceratite estromal herpética foi significativamente melhor em reduzir a inflamação estromal e o tempo de duração da doença. O estudo também conclui que adiar o uso do corticóide, mantendo-se o paciente sob cuidadosa observação caso haja necessidade da indicação do mesmo, retarda em algumas semanas a resolução da inflamação estromal mas não afeta a acuidade visual final.

Sempre foi temido o uso de corticosteróides na ceratite herpética, não somente pelo fato de poder agravar a infecção epitelial ativa pelo vírus mas, também, porque se acreditava que a introdução do corticóide no curso da ceratite herpética, mesmo nos casos de inflamação estromal, poderia agravar o caso, predispor a um número maior de recorrências além de desencadear a dependência de corticóide. O HEDS mostrou que os esteróides nos casos de inflamação estromal são efetivos, reduzem o tempo de curso da doença e a intensidade da cicatrização, sem outros efeitos notados estatisticamente. É sempre bom ressaltar que corticóide tópico não deve ser administrado na vigência de infecção epitelial ativa.

Numa Segunda fase do estudo, avaliou-se o uso de antiviral oral (400 mg de aciclovir 5x/dia) no tratamento da ceratite estromal herpética. Os resultados revelaram que não houve diferença estatisticamente ou clinicamente significante no benefício do uso de aciclovir oral em comparação ao placebo em relação ao tempo de resolução da doença ou acuidade visual final. No entanto, encontrou-se que a melhora da acuidade visual após seis meses de acompanhamento foi maior em pacientes que receberam o antiviral oral.

No estudo da avaliação do uso do aciclovir oral para o tratamento da iridociclite herpética o número de pacientes recrutados foi pequeno e não suficiente para análise e conclusão estatisticamente significativa. Mas, notou-se nos resultados que, os pacientes tratados com antiviral oral tiveram uma tendência a se beneficiarem mais com o tratamento antiviral oral em comparação ao placebo.

O HEDS também avaliou os fatores de risco para a recorrência de ceratite epitelial viral ativa durante o tratamento da ceratite estromal e da iridociclite. Encontrou que pacientes com história prévia de ceratite epitelial viral e pacientes não-brancos eram mais predispostos a recorrência da infecção viral epitelial.

Também, o uso do antiviral oral foi avaliado em relação à prevenção do desenvolvimento de ceratite estromal e irite em pacientes com ceratite epitelial infecciosa. Concluiu-se que em pacientes que estão sendo tratados com antiviral tópico (no estudo, em especial, foi utilizada a trifluridina) para a ceratite epitelial infecciosa não são beneficiados pelo uso de antiviral oral quando comparados ao placebo para evitar o desenvolvimento de ceratite estromal ou irite.

O último estudo publicado pelo HEDS foi a avaliação do uso do aciclovir oral (400 mg 2x/dia) para a prevenção da recorrência da doença herpética ocular. Os resultados demonstraram que o uso do aciclovir oral reduz a porcentagem de recorrência de qualquer forma de doença herpética ocular. Estes achados são particularmente interessantes em relação à ceratite estromal que, até então, por se achar que se tratava de uma manifestação mais imunológica do que infecciosa da ceratite herpética, não seria beneficiada com o uso sistêmico profilático de antiviral. Já era de conhecimento médico notório a eficácia da profilaxia antiviral oral no controle da recorrência do herpes orofacial e genital. Este último estudo do HEDS é o primeiro a comprovar esta eficácia também em relação a profilaxia da recorrência na ceratite herpética. É importante ressaltar aqui que o uso de antiviral oral tem seu papel na profilaxia da recorrência da ceratite estromal herpética e não no tratamento, na fase aguda de inflamação, como foi comprovado no segundo estudo realizado pelo HEDS. Ainda, neste estudo, os pacientes foram seguidos por um período de seis meses após a suspensão da medicação oral para a avaliação quanto a recorrência neste período. Os resultados demonstraram que os pacientes que fizeram uso do antiviral profilático tiveram menos recorrências pelo período de seis meses após a suspensão do antiviral em relação aos que fizeram uso do placebo.

Aqui é importante ressaltar que uma vez suspensa a profilaxia antiviral oral o paciente fica sempre a mercê da recorrência da doença. O que os resultados do HEDS sugerem é que talvez os pacientes que fazem uso de profilaxia oral antiviral por período prolongado (um ano) vão ter menos recorrências após a suspensão da profilaxia em comparação àqueles que não fazem. Baseados nestes achados, alguns oftalmologistas prescrevem aciclovir oral 400 mg 2x/dia a todos os pacientes que tiveram mais do que um ataque de doença herpética ocular no passado.

 

OUTRAS AVANÇOS E COMPROVAÇÕES EM CERATITE HERPÉTICA

Em relação ao diagnóstico, este ainda continua sendo principalmente clínico. Pesquisa laboratorial tem sido reservada para os casos mais complicados e complexos ou para estudos científicos. Os resultados avaliando-se a detecção do DNA do vírus herpes simples na lágrima de pacientes portadores de ceratite estromal através do uso da reação em cadeia da polimerase (PCR) mostram que este teste pode ajudar no diagnóstico da ceratite estromal herpética. Da mesma maneira, o PCR pode ser de valor no diagnóstico diferencial de infecção pelo adenovírus e herpes. A citologia de impressão associada ao uso de testes de imunodetecção (imunoperoxidase e imunofluorescência) mostrou-se um método prático e rápido (1 a 4 horas para o resultado) para o diagnóstico da infecção viral superficial do olho.

Com o advento dos novos antivirais, com a correta indicação e uso dos corticosteróides, com o melhor reconhecimento e pronta e correta condução das diferentes apresentações clínicas da doença e suas recorrências, acredita-se que a indicação para transplante de córnea nos casos de ceratite herpética tenda a diminuir. O transplante de córnea só deve ser indicado quando a doença ocular herpética estiver totalmente inativa, salvo os casos de transplante tectônico e, mesmo nestes, deve-se tentar todas as outras opções terapêuticas (uso de lente de contato terapêutica, tarsorrafia, tecido adesivo, recobrimento conjuntival etc) antes da indicação do transplante "à quente".

Acredita-se que a etiologia herpética predispõe o transplante de córnea eletivo ao insucesso. A recorrência da doença aumenta as chances de falência do transplante. Também, a rejeição levando a falência do transplante tem uma maior incidência em pacientes portadores de ceratite herpética. Com a introdução da profilaxia antiviral oral (aciclovir, 800 a 1000mg/dia, dividido em duas doses, por um período mínimo de um ano), tem se encontrado uma diminuição significativa na incidência da recorrência da doença no enxerto, aumentando a sua sobrevivência e o sucesso do transplante para a ceratite herpética. É importante lembrar que em pacientes transplantados por ceratite herpética o diagnóstico diferencial de rejeição e recorrência, na forma de ceratouveíte, pode ser difícil. Ainda, é cogitado se estes pacientes, quando desenvolvem rejeição, teria uma maior chance de sofrer recorrência da infecção viral. Em nossa experiência, nós acreditamos que pacientes transplantados por ceratite herpética que apresentam inflamação de câmara anterior e/ou córnea de origem questionada (rejeição x recorrência) devem ser considerados de alto risco e tratados agressivamente tanto para rejeição (corticóide tópico em alta freqüência) como para recidiva de infecção herpética (aciclovir oral 400 mg 5x/dia ou valaciclovir 500 mg 2x/dia, 10 dias) e devem, também, ser mantidos em profilaxia antiviral oral prolongada (aciclovir oral 400 mg 2x/dia ou valaciclovir 500 mg 1x/dia).

 

MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS E TRATAMENTO DAS DIFERENTES FORMAS DE CERATITE HERPÉTICA

As manifestações clínicas da doença herpética ocular no segmento anterior do olho podem ser didaticamente divididas em:

1. Doença ocular primária: manifesta-se mais freqüentemente como vesículas ao redor do olho, com ou sem concomitante envolvimento da conjuntiva e da córnea. Estas vesículas ulceram e evoluem para crostas em um prazo médio de sete dias. Quando ocorre a rotura das bolhas o quadro clínico pode ser confundido com blefarite bacteriana. Podem também ser observados quadros clínicos de conjuntivite folicular aguda, ceratite ponteada e dendritos. Nos casos de blefaroceratoconjuntivite podemos observar a presença de gânglio pré-auricular, achado este não encontrado na doença recorrente. A doença estromal na infecção primária é possível mas é mais raramente observada. Vale a pena lembrar que pacientes com quadros de atopias (bronquite, rinite, dermatite atópica, etc) podem apresentar uma manifestação clínica da infecção herpética primária e recorrente mais severa ou com múltiplos sítios de acometimento (olho, nariz, boca etc).

O tratamento da infecção primária é controverso por tratar-se de uma infecção autolimitada e benigna na grande maioria dos casos. Nós recomendamos que o tratamento das lesões de pele próximas ao olho, principalmente aquelas com acometimento das pálpebras, seja feito com antiviral tópico local na pele e no olho, com dosagem terapêutica. Na tabela 2 podemos observar os antivirais de uso tópico utilizados no tratamento da infecção ocular pelo herpes simples e respectivas posologias terapêuticas e profiláticas. Lesões extensas de pele ou múltiplos focos de acometimento podem ser tratados com antiviral sistêmico (Tabela 3). Orientamos, também, a limpeza das lesões de pele com sabonete neutro.

2. Doença ocular recorrente: Pode manifestar-se na forma de blefarite, conjutivite, ceratite e uveíte. O acometimento corneano pode ser classificado em: 2.1. ceratite epitelial, 2.2. ceratopatia neurotrófica, 2.3. ceratite estromal (dividida em: ceratite estromal necrosante e ceratite estromal imune) e 2.4. endotelite. Acredita-se que a grande maioria dos casos de doença herpética ocular seja unilateral.

2.1. ceratite epitelial: causada pela ação direta do vírus vivo replicando no epitélio da córnea. Pode iniciar-se com uma ceratite ponteada que evolui para formação de linhas e figuras clássicas de dendritos e úlceras em formato de mapas geográficos. Estas lesões são melhor observadas com o uso de rosa bengala. O dendrito da infecção pelo herpes simples é geralmente central, único (mas podendo ser múltiplo), apresenta ramificações e, classicamente, bulbo terminal nestas ramificações. A lesão epitelial geográfica é o dendrito que perdeu seu padrão linear estendendo-se na forma de úlcera. Tem as bordas da úlcera geralmente edemaciadas que coram com rosa bengala. Úlceras geográficas podem estar associadas ao uso prévio ou concomitante de corticóide tópico.

O diagnóstico diferencial das lesões epiteliais herpéticas deve ser feito com ceratite pelo herpes zoster, infecção pela Acanthamoeba, Adenovírus, Epstein-Barr, linha de cicatrização epitelial, ceratite secundária ao uso de lentes de contato gelatinosa, ceratite superficial de Thygeson e alterações corneanas da tirosinemia.

O tratamento da ceratite epitelial pode incluir o debridamento (com um cotonete seco retiram-se todas as células que coram com a rosa bengala) e a introdução do antiviral tópico (Tabela 2).

2.2. ceratopatia neurotrófica: são ulcerações rasas do epitélio corneano, de fundo transparente (sem infiltração), de formato ovóide ou arredondado, localizadas geralmente no centro da córnea e que apresentam as bordas elevadas devido ao empilhamento do epitélio que fica impossibilitado de se deslizar para promover a cicatrização da úlcera. Quando crônicas, podem apresentar um estroma mais opaco, de coloração acizentada, assim como neovascularização superficial em formato de coroa ao redor da úlcera (pannus que tenta cicatrizar a lesão). Nestas úlceras mais crônicas é importante afastar a suspeita de infecção secundária através da pesquisa laboratorial.

A ceratopatia neurotrófica herpética é secundária a má inervação corneana entre outros fatores como comprometimento do filme lacrimal, toxicidade medicamentosa, alteração e inflamação da membrana basal etc.

A escolha do tratamento mais apropriado vai depender do tamanho, gravidade, tempo de aparecimento da ulceração e das outras tentativas de tratamento já efetuadas. Pode variar desde tratamentos clínicos não intervencionistas como lubrificação intensa, curativo oclusivo e lente de contato terapêutica, até procedimentos cirúrgicos como tarsorrafia (ou provocação de ptose pela aplicação de toxina botulínica), obstrução de pontos lacrimais e recobrimento conjuntival. O uso de membrana amniótica como tecido para recobrimento tem sido avaliado em nosso Serviço em caracter experimental.

2.3. ceratite estromal: são controversas em relação a fisiopatogenia (manifestação de cunho imunológico e ou inflamatório não específico e/ou infeccioso viral ativo). Didática e clinicamente as ceratites estromais podem ser divididas em:

2.3.1. ceratite estromal necrosante: como já dito anteriormente, provável invasão do estroma por infecção viral ativa e conseqüente desencadeamento de inflamação estromal severa. Clinicamente apresenta-se com ulceração, necrose do tecido corneano e densa infiltração estromal. Estes casos tendem a evoluir com afinamento, formação de descemetocele e perfuração. O diagnóstico diferencial com infecção bacteriana e fúngica devem sempre ser cogitado.

2.3.2. ceratite estromal imune: como também já foi dito, provavelmente um processo imunológico primário, podendo haver um possível papel para a replicação viral ativa no processo imunológico da ceratite. Clinicamente o estroma pode apresentar-se com inflamação na forma de infiltração focal, multifocal ou difusa. A infiltração pode variar de leve até severa, com infiltrado denso esbranquiçado. O edema é variável e em acordo com a severidade da inflamação. O epitélio é geralmente íntegro com exceção nos casos de associação de ceratite epitelial (infecção viral ativa) ou ceratopatia neurotrófica. Uma outra manifestação da ceratite estromal imune é o anel imunológico que pode apresentar-se na forma de anel único ou múltiplo, completo ou incompleto, de infiltrado e edema de intensidade variável. Outro achado freqüente desta ceratite é a neovascularização que pode ocorrer em qualquer nível da córnea e nos casos de infiltração severa desenvolve-se com maior rapidez. A neovascularização também pode se desenvolver às custas de inflamação crônica de baixa intensidade.

2.4. endotelite: como já dito, é considerada uma reação inflamatória primária no endotélio corneano, sendo que um componente infeccioso de replicação viral ativa pode estar implicado na fisiopatogenia da inflamação. Pode apresentar-se na forma difusa, linear ou de disco, com precipitados ceráticos atrás da lesão ou em forma de linha, com edema estromal e algumas vezes epitelial e, em algumas casos, irite. Estes olhos são geralmente calmos, sem qualquer sinal inflamatório (hiperemia, lacrimejamento etc) e a córnea freqüentemente não desenvolve neovascularização.

As ceratites estromais herpéticas são tratadas dependendo da severidade e localização da inflamação na córnea e da perda de tecido. Se a ceratite não envolve o eixo visual, não há neovascularização corneana e o olho encontra-se calmo opta-se pela observação prescrevendo-se lubrificantes e ou cicloplégicos para promover um melhor conforto para o paciente. Se a reação inflamatória é severa, localizada próxima ao ou no eixo visual e a neovascularização é presente ou mostra sinais de desenvolvimento, opta-se pelo uso de corticóide. O tipo e freqüência do corticóide vão depender da severidade da inflamação. Deve-se fazer a profilaxia antiviral quando se usa corticóide no tratamento da ceratite herpética para evitar a recorrência da infecção epitelial viral ativa. Esta profilaxia fica na dependência do tipo e freqüência do corticóide utilizado. A redução do corticóide deve ser feita lentamente e na dependência da resposta clínica, recorrência da inflamação, tolerância e efeitos colaterais em relação ao colírio. Não se deve diminuir em mais do que 50% a freqüência de uso do corticosteróide tópico para evitar-se o efeito rebote da inflamação (termo em inglês conhecido como "flare dose").

É importante lembrar que os corticosteróides são totalmente contra-indicados na vigência de infecção epitelial herpética ativa. Eles não aumentam a incidência de recorrência da ceratite epitelial viral mas, se esta ocorrer, será agravada pelo seu uso uma vez que o corticosteróide promove a replicação viral.

Existem autores que preferem iniciar o tratamento da ceratite estromal herpética com uma dosagem baixa de corticosteróide tópico que é aumentada conforme a necessidade. Outros preferem iniciar com uma dosagem mais alta reduzindo-a conforme a melhora clínica. A Tabela 4 exemplifica o nosso sistema de uso do corticosteróide tópico, com a respectiva profilaxia antiviral, no tratamento das ceratites estromais herpéticas.

 

 

Casos onde há infecção epitelial viral e inflamação estromal associadas, deve-se tratar primeiro a infecção epitelial e somente após o controle desta iniciar-se o uso do corticosteróide tópico. Quando há a associação de ceratopatia neurotrófica e inflamação estromal, deve-se tentar fechar rapidamente o defeito epitelial e, com critério e especial atenção e cuidado, desinflamar o estroma com o uso do corticosteróide uma vez que este pode influenciar na cicatrização estromal, podendo levar a uma necrose com perda de tecido. Algumas vezes, nestes casos, damos preferência para o uso sistêmico do corticosteróide. Outras indicações de uso sistêmico são os casos de ceratite estromal intensa e de endotelite e trabeculite severas.

As ceratites estromais herpéticas devem ser diferenciadas das ceratites bacterianas, parasitárias (principalmente ceratite por Acanthamoeba), fúngicas e tóxicas (pe., abuso em uso de colírio anestésico).

A indicação do uso de antiviral oral ainda é controversa em algumas manifestações da doença ocular herpética. Existe uma tendência de concordância em se prescrever o antiviral oral nos casos de infecção primária extensa e severa, selecionados de ceratouveíte, endotelite, iridociclite e trabeculite, de pacientes imunocomprometidos, de crianças refratárias ao uso de antiviral tópico, e nas profilaxias de pacientes com doença ocular herpética com alta freqüência de recorrência e nos pacientes submetidos a transplante de córnea. Novos antivirais para uso sistêmico no tratamento das infecções herpéticas são o valaciclovir (Valtrex®, apresentação em comprimidos de 500 mg) e o penciclovir (Famvir®, apresentação em comprimidos de 125 e 250 mg) (Tabela 3).

 

REFERÊNCIAS

1. Pavan-Langston D. Herpetic infections, in the cornea. In: Smolin G, Thof RA editors. The cornea. Boston: Little Brown; 1994. p. 183-215.

2. Dawson CR, Jones DB, Kaufman HE, Barron BA, Hauck WW, Wilhelmus KR. Design and organization of the herpetic eye disease study (HEDS). Curr Eye Res 1991;10 Suppl:105-10.

3. Dawson CR, Beck R, Wilhelmus KR, Cohen EJ. Herpetic eye disease study. You can help . Arch Ophthalmol 1996;114:89-90.

4. Wilhelmus KR, Gee L, Hauck WW, Kurinij N, Dawson CR, Jones DB, Barron BA, Kaufman HE, Sugar J, Hyndiuk RA et al. Herpetic Eye Disease Study. A controlled trial of topical corticosteroids for herpes simplex stromal keratitis. Ophthalmology 1994; 101:1883-95; discussion 1895-6.

5. Barron BA, Gee L, Hauck WW, Kurinij N, Dawson CR, Jones DB, Wilhelmus KR, Kaufman HE, Sugar J, Hyndiuk RA et al. Herpetic Eye Disease Study. A controlled trial of oral acyclovir for herpes simplex stromal keratitis. Ophthalmology 1994;101:1871-82.

6. A controlled trial of oral acyclovir for iridocyclitis caused by herpes simplex virus. The Herpetic Eye Disease Study Group. Arch Ophthalmol 1996; 114:1065-72.

7. Wilhelmus KR, Dawson CR, Barron BA, Bacchetti P, Gee L, Jones DB, Kaufman HE, Sugar J, Hyndiuk RA, Laibson PR, Stulting RD, Asbell PA. Risk factors for herpes simplex virus epithelial keratitis recurring during treatment of stromal keratitis or iridocyclitis. Herpetic Eye Disease Study Group. Br J Ophthalmol 1996;80:969-72.

8. A controlled trial of oral acyclovir for the prevention of stromal keratitis or iritis in patients with herpes simplex virus epithelial keratitis. The Epithelial Keratitis Trial. The Herpetic Eye Disease Study Group [published erratum appears in Arch Ophthalmol 1997;115:1196.

9. Acyclovir for the prevention of recurrent herpes simplex virus eye disease. Herpetic Eye Disease Study Group. N Engl J Med 1998;339:300-6.

10. Laibson, P. Avances en la enfermedad del herpes simple ocular. Highlight Ophthalmol 1999;27:50-6.

11. Kudo E, Shiota H, Kinouchi Y, Mimura Y, Itakura M. Detection of herpes simplex virus DNA in tear fluid of stromal herpetic keratitis patients by nested polymerase chain reaction. Jpn J Ophthalmol 1996;40:390-6.

12. Jackson R, Morris DJ, Cooper RJ, Bailey AS, Klapper PE, Cleator GM, Tullo AB. Multiplex polymerase chain reaction for adenovirus and herpes simplex virus in eye swabs. J Virol Methods 1996;56:41-8.

13. Thiel MA, Bossart W, Bernauer W. Klinische Evaluation der impressionszytologie zur Diagnostik viraler Oberflacheninfektionen. Klin Monatsbl Augenheilkd 1998; 212:388-91.

14. Sharif KW. Casey TA. Changing indications for penetrating keratoplasty,1971-1990. Eye 1993; 7(Pt4): 485-8.

15. Holland EJ, Mozayeni RM, Schwartz GS. Herpes simplex keratitis. In: Krachmer JH, Mannis MJ, Holland EJ. Cornea: Surgery of the cornea and conjuntiva. St. Louis: Mosby; 1997. p. 1191-223.

16. Mader TH, Stuulting RD. High-risk penetrating keratoplasty. In Krachmer JH, Mannis MJ, Holland EJ. Cornea: Surgery of the cornea and conjunctiva. St. Louis: Mosby; 1997. p. 1757-72.

17. Moyes AL, Sugar A, Musch DC, Narnes RD. Antiviral therapy after penetrating keratoplasty for herpes simplex keratitis. Arch Ophthalmol 1994;112:601-7.

18. Epstein RJ, Seedor JA, Dreizen NG, Stulting RD, Waring GO, Wilson LA, Cavanagh HD. Penetrating keratoplasty for herpes simplex keratitis and keratoconus. Allograft rejection and survival. Ophthalmology 1987;94:935-44.

19. Beyer CF, Arens MQ, Hill GA, Rose BT, Beyer LR, Schanzlin DJ. Oral acyclovir reduces the incidence of recurrent herpes simplex keratitis in rabbits after penetrating keratoplasty. Arch Ophthalmol 1989; 107:1200-5.

20. Foster CS, Barney NP. Systemic acyclovir and penetrating keratoplasty for herpes simplex keratitis. Doc Ophthalmol 1992;80:363-9.

21. Van Rooij J, Rijneveld WJ, Remeijer LJ, Beekhuis WH. A retrospective study on the effectiveness of oral acyclovir to prevent herpes simplex recurrence in corneal grafts. Eur J Ophthalmol 1995;5:214-8.

22. Larkin DF. Corneal transplantation for herpes simplex keratitis. Br J Ophthalmol 1998; 82:107-8.

23. Cobo LM, Coster DJ, Rice NS, Jones BR. Prognosis and management of corneal transplantation for herpetic keratitis. Arch Ophthalmol 1980;98:1755-9.

24. Vieira L, Pereira JAG, Freitas D. Uso de membrana amniótica no tratamento de defeitos epiteliais persistentes, Comunicação Pessoal; 2000.

25. Kaufman HE, Varnell ED, Thompson, HW. Trifluridine, cidofovir, and penciclovir in the treatment of experimental herpetic keratitis. Arch Ophthalmol 1998;116:777-80.

26. Liesegang TJ. Classification of herpes simplex virus keratitis and anterior uveitis. Cornea 1999;18:127-43.

27. Langenberg AG, Corey L, Ashley RL, Leong WP, Straus SE. A prospective study of new infections with herpes simplex virus type 1 and type 2. Chiron HSV Vaccine Study Group. N Engl J Med 1999;341:1432-8.


Dimension

© 2024 - All rights reserved - Conselho Brasileiro de Oftalmologia